O dia amanhece gelado e com uma neblina densa que mal deixa ver os contornos das casas e da vegetação na comunidade da Invernada, na cidade paranaense de Rio Azul. Os caminhos que ligam as propriedades rurais estão vazios e silenciosos. Mas em poucas horas a cena muda totalmente: a cerração se dissipa, o sol brilha quente, e carros, vans e ônibus começam a lotar o estacionamento da igreja local. O movimento é em função da 10a feira de sementes do município, que se fortalece a cada edição e, em 2023, aconteceu em agosto.
O resgate e a multiplicação de sementes estão entre as principais formas que a comunidade tem para preservar sua agrobiodiversidade: “Meus pais sempre foram agricultores e sempre cuidaram com carinho das sementes crioulas. Plantavam milho, feijão, batata, arroz, mandioca, trigo, centeio, para o consumo da família”, lembra Maria Terezinha de Oliveira Skrzcezkiwski, agricultora de 71 anos que manteve essa tradição a vida toda e é uma das guardiãs de sementes do local.
Invernada começou a se estabelecer no início do século 20, com a chegada de imigrantes poloneses e italianos à região. Durante muito tempo, as famílias produziram todo o alimento de que precisavam, além de erva mate. Em moinhos e monjolos coletivos, o trigo e o centeio viravam farinha, o milho virava canjica e o arroz era descascado. Também havia os faxinais, como eram conhecidas as áreas comuns para a criação de animais.
Mas isso mudou a partir dos anos 1960, quando, no auge da chamada Revolução Verde, a produção de fumo começou a se estabelecer na região. Grandes empresas, como a Souza Cruz (hoje BAT Brasil), passaram a contratar agricultores para plantar tabaco, em um esquema que muitas vezes leva as famílias a se enredar em dívidas: as empresas fazem empréstimos aos agricultores, lhes vendem sementes, adubos químicos e agrotóxicos, e se comprometem a comprar as folhas de fumo produzidas. Aos agricultores, cabe cultivar o tabaco com todos os insumos indicados e vender a produção pelo preço que as empresas estipulam no fim da safra.
Hoje, cerca de 120 famílias vivem na Invernada, e o tabaco é uma das principais fontes de renda da população, assim como nas comunidades vizinhas – Rio Azul é o município com a maior produção de fumo no Paraná.
A maior parte das famílias não deixou de plantar alimentos: “Eu plantei fumo por 30 anos, mas sempre plantando também milho, feijão, batata doce, mandioca, tinha ovo, carne de porco. Porque, assim, a gente não precisava comprar comida. A gente também nunca comprou semente, porque sempre tínhamos as nossas”, conta dona Terezinha.
Mas o cultivo do tabaco é extenuante, então, para muitas famílias, o tempo disponível para cuidar da comida foi minguando. Ao mesmo tempo, propriedades antes destinadas só à produção de alimentos passaram a ser ocupadas por fumo. Resultado: no geral, houve redução das sementes crioulas e da agrobiodiversidade.
Substituir o fumo por outros cultivos mais saudáveis é uma dificuldade sobretudo para as famílias que vivem nas terras menores. Héloïse Faivre e Rachel Amouroux, alunas de engenharia agrícola da França, estiveram em Rio Azul ao longo de vários meses para estudar três comunidades – entre elas, Invernada –, e viram que as menores propriedades produziam praticamente só fumo. “O tabaco produz um valor agregado maior por hectare do que outros cultivos, então, para eles, ainda é a melhor maneira de gerar renda. Todo mundo tem um quintal com alimentos para autoconsumo, mas quem planta muito fumo não tem tempo de cuidar do quintal na época de colheita. Essas famílias também não têm espaço para plantar milho para os animais, então também têm menos animais”, observa Héloïse.
Isso é complicado porque, em Invernada, parcela significativa da população vive em terras pequenas, entre cinco e sete hectares.
Apesar das dificuldades, nos últimos 20 anos, um processo de resgate tem se consolidado aos poucos, e dois fatores têm sido fundamentais para isso: a organização comunitária e políticas públicas de apoio à produção de alimentos e à construção de mercados locais, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
“Invernada sempre foi uma comunidade muito organizada e guardiã de sementes, com uma presença forte da agricultura familiar camponesa. Sempre houve o costume de as pessoas se encontrarem e trocarem sementes, essa é uma potencialidade grande”, observa Luiza Damigo, assessora técnica da AS-PTA, organização que trabalha com a comunidade desde o ano 2000.
Ainda em 1989, foram criadas a Associação dos Produtores Rurais de Invernada (a APRI, que hoje conta com 80 famílias associadas) e o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Azul. Para acessar mercados de comercialização de alimentos, elas integram a Cooperativa Agroindustrial dos Agricultores Familiares de Rio Azul (COAFRA) e a Cooperativa Mista de Diversificação da Agricultura Familiar de Rio Azul (COMDAF). Há ainda o Grupo Terra Nossa de agricultores orgânicos, que hoje tem três propriedades certificadas em Invernada e está vinculado à Rede Ecovida de Agroecologia.
Essas formas de cooperação entre as famílias são importantes, do ponto de vista prático, para viabilizar a construção de mercados e, em muitos casos, reduzir custos de produção. “A associação de Invernada tem máquinas que todos podem utilizar”, exemplifica Héloïse.
Segundo Luiza, a organização comunitária também é importante para facilitar o acesso a políticas públicas e, numa dimensão mais subjetiva, para garantir que as famílias tenham uma rede de apoio: “Ninguém fica sozinho”, ela resume.
Dona Terezinha, membro da APRI e também do Grupo de Mulheres da Invernada, conta que esse apoio inclusive extrapola os limites das organizações formais. “Tem pessoas que não participam da associação, mas às vezes vêm, perguntam sobre alguma semente, então a gente pega, doa, troca. Isso é uma riqueza, porque mantém as pessoas juntas”, avalia.
Raquel Torres | Centro de Estudos Sobre Tabaco e Saúde (CETAB/Fiocruz)