“Estarmos aqui hoje é mais uma vitória do Polo da Borborema. Trazer os sindicalistas para conhecer a história de luta pela terra, que não é brincadeira. A reforma agrária surgiu no Brasil depois das Ligas [Camponesas] que assombraram o capitalismo”, destacou Manoel Oliveira, conhecido como Nequinho, do Sindicato de Alagoa Nova e da coordenação do Polo da Borborema.
A visita que ele se refere foi ao Memorial das Ligas e Lutas Camponesas (MLLC), no município paraibano de Sapé, na última quarta-feira (28) de agosto. O intercâmbio faz parte do projeto Caminhos da Luta Camponesa que o Polo da Borborema está realizando e prevê a visita a mais outros quatro lugares, na Paraíba, com história de resistência camponesa: Alagoa Grande, para conhecer de perto a região e história da Sindicalista Margarida Maria Alves; Alagoa Nova para conhecer a história de luta pela terra nos anos de 1980, Guarabira, berço do Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais do Brejo e Lagoa Seca, para conhecer a história do primeiro sindicato do território que teve relações diretas com as Ligas Camponesas.
Berço das Ligas Camponesas na Paraíba e cortada pelo rio Gurinhém, “Sapé é um dos municípios com terras mais valorizadas da Paraíba e também onde há muita violência com os/as agricultores/as”, assegura Weverton Rodrigues, historiador do Memorial. “Aqui temos um conflito pelo uso das terras da Fazenda Antas que dura mais de 60 anos”, acrescenta ele.
Vizinha à fazenda Antas, está a casa que pertenceu à Elizabeth Teixeira e João Pedro Teixeira, dois expoentes das Ligas Camponesas. Em abril de 1962, João Pedro foi assassinado e Elizabeth assumiu a liderança da luta que seu marido conduzia.
A casa de taipa e tijolo maciço, tombada em 2012, é considerada o berço das Ligas, que começou com força na Paraíba e em Pernambuco. As terras ao redor da propriedade do casal serviam de espaço para as famílias, que tinham sido expulsas das fazendas, plantarem em forma de mutirão para ter o que comer. “Aqui é uma terra simbólica”, sustenta Weverton.
Hoje, os sete hectares de terra que pertencem ao MLLC seguem tendo o mesmo uso coletivo para 25 famílias que moram na comunidade Tradicional Ribeirinha Barra de Antas. “O Memorial representa a continuidade não só do contexto histórico, mas também seguimos em várias frentes de luta e educação”, sustenta Alane Lima, presidenta do MLLC, ressaltando que a iniciativa tem, pela primeira vez, a diretoria formada 100% por camponeses e camponesas.
“Nós somos o único Memorial com projeto para a agricultura. Queremos nos aproximar da realidade das pessoas para que sejamos enxergados. Os municípios ao redor não trazem a agricultura como referência”, reforça Weverton. Na entrada das ruas centrais de Sapé, como parte dos monumentos alusivos às Ligas Camponesas, há uma enxada fixada. “É um dos símbolos do nosso trabalho e também das Ligas”.
Depois da construção de um Centro de Formação Educação Popular e Agroecologia, Elizabeth Teixeira ao lado da casa antiga de Elizabeth e João Pedro, onde funciona o espaço das formações e reuniões, as famílias camponesas dos arredores passaram a frequentar o espaço, antes evitado por elas. “Estamos vendo que pouco a pouco, as famílias começam a reconhecer este espaço como deles. Muitas pessoas vêm fazer fotos aqui para postar nas redes sociais e temos muitos pedidos para fazerem aniversários no salão”, comenta Alane com alegria.
Depoimentos e reflexões – “João Pedro Teixeira e as Ligas Camponesas representam a primeira vez que o campo se levantou para enfrentar o poder oligárquico”, frisa Nelson Ferreira, da diretoria do sindicato de Lagoa Seca e da coordenação política do Polo da Borborema. “Nunca eu tinha vindo aqui, mas João Pedro Teixeira está na minha memória porque é um patrono da luta por direitos. Talvez, o nosso esforço seja trazer para a reflexão que o sindicalista precisa ter o sangue dos que vieram antes”, opina.
“Depois de tudo o que vimos hoje, fico me perguntando: Será que tô defendendo o povo rural como deve ser, como esse povo defendeu?”, compartilhou para o grupo Zeneide Granjeiro Balbino.
“Margarida Maria Alves é uma inspiração pra gente. Elizabeth Teixeira nos ensina muito. O medo nos traz pra trás. É preciso ter coragem de seguir. O sindicalismo deve beber desta experiência para defender os nossos direitos”, atesta Marizelda Salviano, sindicalista de Esperança que disputa uma vaga na Câmara dos Vereadores do município.
“A gente tá vendo que tudo o que chega na comunidade é fruto de muita luta”, destaca Edson Johnny, um jovem que faz parte da diretoria do Sindicato de Esperança e da Comissão de Juventude do Polo.” Isso aqui é alimento pra gente se fortalecer. Vim conhecer a história viva e pulsante e pisar neste chão é algo valioso”, complementa.
“Fico me perguntando sobre meu papel como sindicalista. Me inquieto no Polo quando as empresas estão chegando e o sindicato fica com medo. Como enfrentamos de forma coletiva os latifundiários de hoje que são as empresas de energia renovável que ameaçam nosso território. Precisamos de ousadia pra romper as estruturas de poder que nos impedem de avançar”, questionou Roselita Vitor, do sindicato de Remígio e da coordenação do Polo.
“Sou muito grata por fazer parte do Polo e dessa visita. Me lembrei muito da minha infância. Meu pai trabalhava no engenho. Ele levava eu e minhas irmãs para trabalhar para melhorar o apurado no final de semana. Sempre ouvi falar das ligas porque minha mãe fez parte do movimento de mulheres do Brejo”, testemunha Maria do Céu Silva, da diretoria do Sindicato de Solânea e também da coordenação do Polo, acrescentando: “Tenho 46 anos, 20 de luta, mas nunca tinha vindo aqui”.
Da AS-PTA, Luciano Silveira fez reflexão dialogando com o que foi dito na roda de impressões da visita. “Ao vocês compartilharem que essa história que aconteceu no Brasil há 60 anos tem relação direta com as nossas memórias, nós percebemos como as desigualdades estão presentes. As relações de poder, apesar das lutas, conseguem se manter sem ou com pouca mudança. O Grupo da Várzea [nome dado aos latifundiários envolvidos nos assassinatos de camponeses na região] ainda consegue ser muito forte e ter muita riqueza. Mas a riqueza não se produz sem trabalho. Foi uma riqueza apropriada pelos detentores dos meios de produção que é a terra. Quando Rose fala que o pai dela, que sempre trabalhou em terra de fazendeiro e nunca teve uma terra sua, só consegue ver o fazendeiro como uma pessoa boa porque deixou a família morar ali, isso tem a ver com o processo de alienação da realidade.”
E complementa: “As Ligas foram criando um movimento social e o processo de federalização permitiu ganhar outra dimensão. A repressão trazida pelo golpe civil militar do Brasil de 1964 representa uma resposta da elite preocupada com as estratégias que as ligas estavam usando para quebrar as relações de poder. A forma como as Ligas se organizaram para lutar nos dá muito orgulho e elas não estão desconectadas com a história do sindicalismo da Borborema. O Sindicato de Campina Grande foi formado por iniciativa da igreja católica [vertente da Teologia da Libertação] e alguns dirigentes das Ligas que estavam preocupados com o movimento.”
Uma luta de classe – Após a rodada de falas dos/as visitantes, foi a vez da anfitriã Alane Lima interagir. E uma das primeiras coisas que ela reconheceu é que a luta por terra e direitos das famílias camponesas é uma luta de classe e que carece da corresponsabilidade de todos os territórios da Paraíba “Ou estamos fadados a desaparecer.”
E seguiu dizendo que a luta dos sindicatos não está dissociada da luta das Ligas. “Quando foi que os camponeses da Várzea foram no território da Borborema? É a continuidade da classe camponesa que está em jogo. Elizabeth, em um dos momentos mais doídos [quando João Pedro foi assassinado] disse ‘eu marcharei a tua luta’. É isso que devemos seguir fazendo. Aqui sofremos com um megaprojeto que é uma barragem e com a autoridade do Estado que segue negando a classe camponesa, que tem direito sobre essa terra. As comunidades [próximas ao Memorial] gritam por socorro. Como a comissão de mulheres do Polo pode, por exemplo, ajudar no enfrentamento à violência?”
A história da resistência da Paraíba – Na apresentação do espaço do Memorial e da história das Ligas Camponesas, o historiador Weverton reportou ao período colonial do Brasil. “Os portugueses e espanhóis levaram 85 anos para ocupar as terras que pertenciam aos povos potiguares. “Aqui, em Sapé, não fala hoje das Ligas Camponesas, quanto mais dos povos indígenas.”
“Quando as Ligas foram criadas, no ano de 1958, só havia se passado 70 anos do dito fim da escravidão no Brasil. A sociedade seguia olhando pra gente como gente que pode ser explorada. E quando eles deixam de ser escravizados vão morar na grande propriedade com as regras dos donos. Eles pagavam um valor anual, o foro, e ainda metade da produção era fazendeiro e a outra metade vendida no barracão por mercadoria, sem pagamento em dinheiro. Era um regime extremamente exploratório. Os grandes proprietários eram donos da vida e da morte das famílias. Hoje, eles mexem muito mais com a nossa cabeça do que com o nosso corpo. E foi através das Ligas, nos anos de 1950, que o Brasil começou pela primeira vez a discutir a questão da terra, numa sociedade presa aos grandes proprietários e cujas leis só funcionavam da porta pra fora”.
E segue: “O embate das Ligas foi tão forte que conseguiram eliminar várias forças de exploração, como o cambão e o foro anual. E houve outras conquistas no campo do atendimento primário à saúde. Foram formalizados 75 Sandú no Brasil, que funcionavam parecido como as atuais UBS [Unidades Básicas de Saúde]. “Essa foi a primeira experiência de saúde democrática do país que conseguiu chegar na casa dos camponeses, assim como da população urbana”.
Alguns números das Ligas Camponesas:
. A Liga Camponesa era um movimento formado pela união de várias associações rurais. A de Sapé chegou a reunir cerca de 13 mil sócios depois da morte de João Pedro Teixeira e foi a primeira associação de trabalhadores rurais da Paraíba. “Não por acaso, a Paraíba tem muitas associações”, afirma Weverton.
. No Estado, dos 270 municípios, 42 organizaram suas associações vinculadas às Ligas em apenas seis anos (de 1958 a 1964).
. No Brasil, as Ligas conseguiram eleger vereadores em 25 municípios, cujos mandatos foram cassados com a instalação da Ditadura Civil-Militar. Hoje, a Comissão Nacional da Verdade revogou a cassação como forma de reparar a história.
. No país, mais de mil camponesas e camponeses foram mortos e estão desaparecidos pela Ditadura, 14 delas/es na Paraíba.