Reportagem publicada originalmente no site O Joio e o Trigo
Repórter: Julia Dolce
Após 11 anos e diversos adiamentos, Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos foi lançado pelo governo federal. Em entrevista ao Joio, agrônomo que participou da elaboração analisa as oportunidades que se abrem – e as fragilidades para concretizar o Pronara
Nesta segunda-feira (30), após 11 anos de adiamentos, o governo federal publicou o decreto que institui o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara). A década de atraso foi também uma década perdida, como avalia o agrônomo Paulo Petersen em entrevista ao Joio. Membro da mesa coordenadora da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO), responsável pela elaboração do Pronara, ele acompanhou de perto os obstáculos para o lançamento do programa. Não foram poucos.
A primeira tentativa de tirar o programa do papel remonta a 2014, no governo Dilma Rousseff. Após muita discussão e participação de vários ministérios, além da sociedade civil e pesquisadores, a então ministra da Agricultura Kátia Abreu se recusou a ratificar o programa.
Desde então, o Brasil – campeão mundial no consumo de agrotóxicos – se tornou ainda mais dependente dessas substâncias, além de refém de seus impactos socioambientais e econômicos, aponta Petersen.
No plano político, as coisas não ficaram mais fáceis. Os governos seguintes não só trancaram o Pronara na gaveta, como jogaram a chave fora. Em 2016, o orçamento para políticas da CNAPO foi esvaziado por Michel Temer. Em 2019, a comissão foi uma das dezenas de órgãos de participação da sociedade civil extintos por Jair Bolsonaro.
O governo Lula 3 prometia inflexão. Com a retomada da CNAPO, em 2023, o sonho do Pronara voltou a ser possível e um novo texto começou a ser negociado. Mas o lobby também veio com força total, sempre no Ministério da Agricultura. Desta vez, a resistência não era mais do alto escalão. Veio da cadeia hierárquica: a Secretaria de Defesa Agropecuária (SDA), setor responsável pela regulação de agrotóxicos na pasta, buscou impedir o programa no último ano, adiando o lançamento do Pronara por cinco vezes.
Um relatório produzido pelo Joio, em parceria com a Fiquem Sabendo, revelou que a SDA é um dos principais destinos do lobby do setor, tendo sediado 56 encontros com lobistas ou empresas de agrotóxicos entre 18 de outubro de 2022 e 5 de agosto de 2024.
Diante de tantos entraves, Petersen celebra o lançamento do programa como uma grande conquista. “Pela primeira vez, nós temos o reconhecimento do Estado de que é necessário – e possível – reduzir o uso de agrotóxicos. Isso não é pouco.”
Entretanto, o agrônomo destaca que o decreto do Pronara vem em um momento “trágico” no contexto de uso dessas substâncias no Brasil, principalmente com a Nova Lei de Agrotóxicos, resultado da aprovação, em 2023, do projeto de lei que se tornou conhecido como “Pacote do Veneno”. “Não será uma coexistência simples.”, pondera Petersen.
Para o agrônomo, a correlação de forças com o agronegócio segue bastante desfavorável para a efetivação do Pronara. No mesmo dia do lançamento do programa, por exemplo, foram registrados novos 115 agrotóxicos no Diário Oficial.
Petersen não acredita que haja condições políticas para medidas efetivas de curto prazo para a redução do consumo de agrotóxicos no Brasil. Porém, entende o decreto do programa como uma grande oportunidade para se balancear esse embate, ao menos fora dos espaços institucionais.
“É um embate que a gente não pode ficar preso ao mundo da institucionalidade. Na disputa entre ministérios ou entre Executivo e Legislativo. A gente precisa aproveitar essa oportunidade para fazer comunicação pública e agrotóxico é um assunto que mobiliza, que é de interesse coletivo. E a publicação do decreto, sem dúvida, é uma grande oportunidade.”
Confira os melhores trechos da entrevista a seguir.
Qual é a sua avaliação do decreto que instituiu o Pronara?
Eu acho que o decreto é muito genérico – mas, na sua generalidade, ele é uma vitória. Exatamente porque é um reconhecimento público da necessidade [de reduzir o uso de agrotóxicos]. Esse decreto foi negociado palavra a palavra. Foram muitas idas e vindas. O Ministério da Agricultura [ Pecuária, Mapa] tentou descaracterizar de várias formas, inclusive mudando o próprio título do programa. Não queriam aceitar o termo “agrotóxico”. Então, foi uma negociação difícil.
Muitas coisas ali presentes foram introduções do próprio Mapa. Por exemplo, o conceito de uso racional [de agrotóxicos]. Esse conceito, para nós, é uma aberração. Não faz o menor sentido, porque não existe o uso racional. Mas são as terminologias atenuadoras. Quer dizer, o mal necessário. “Agrotóxico é um mal, nós reconhecemos, mas é possível fazer com responsabilidade.” Esse é o discurso. Então, eles conseguiram introduzir isso, que não estava no texto original. Mas nós consideramos que tínhamos que fazer esse tipo de negociação se a gente, de fato, quisesse ter um Pronara. Eu acho que é por isso que a gente está celebrando, mesmo sabendo que é um instrumento com alguma fragilidade.
Como você avalia o significado deste decreto no atual momento político, um ano antes do ano eleitoral?
Tem a ver com um momento específico do governo Lula 3 ou com alguma mudança no Mapa? Ou é, de fato, conquista de toda a mobilização da sociedade civil? Eu avalio como uma grande conquista, sem dúvida. Porque coloca uma luta histórica num outro patamar. Uma luta que se iniciou lá pela década de 1970, quando o próprio conceito de agrotóxicos foi formulado [em contraposição ao termo “defensivo agrícola”]. Pela primeira vez, nós temos o reconhecimento do Estado de que é necessário –e possível – reduzir o uso de agrotóxicos. Isso não é pouco.
Nós sabemos que é num contexto muito difícil, com a aprovação da Nova Lei de Agrotóxicos. Um decreto em si não tem força – inclusive, esse é um decreto que tem diretrizes e objetivos, não é um decreto de ter medidas efetivas como os meios de implementação e até o orçamento. O artigo 8º do decreto deixa muito claro que os recursos vão ser buscados. A gente não acredita que teremos medidas efetivas no curto prazo, nessa correlação de forças.
Mas o decreto cria, por exemplo, um sistema de governança que coloca a Secretaria-Geral da Presidência como órgão gestor. Então, tira a exclusividade do Ministério da Agricultura, que estava como ‘todo poderoso’ nessa matéria dos agrotóxicos. Inclusive, esvaziando competências do Ministério da Saúde e do Ministério do Ambiente. É muito importante que o governo reconheça que é necessário um debate mais amplo. Isso não é só uma questão agrícola. É uma questão de saúde, uma questão ambiental, uma questão climática.
E nós queremos dar resposta a esses grandes desafios sem afetar a produtividade agrícola, é disso que se trata. Não estamos falando de comprometer a produtividade, nós estamos falando que, sim, é possível [reduzir agrotóxicos] sem comprometer a eficiência. Pelo contrário: a gente acredita que a eficiência aumentará, porque alguns dados já mostram que cada vez a gente precisa de mais agrotóxicos e fertilizantes para manter o mesmo nível de produtividade. Então, é uma solução técnica que já não é compatível com os dias atuais.
Esse momento político é difícil porque, na verdade, nós não estamos tratando de uma questão técnica. Nós estamos tratando de interesses econômicos. E esses interesses tentam prolongar o máximo possível o seu tempo de lucro. Não será simples, mas certamente nós estamos diante de uma grande vitória.
“O Brasil está absolutamente dependente, ele entrou numa rota de dependência química muito grande.”
Como nasceu a ideia do Pronara?
A ideia do Pronara nasceu no âmbito da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo). Foi criada uma subcomissão específica, com vários ministérios e organizações da sociedade civil, universidades e tudo mais. E essa subcomissão trabalhou por quase dois anos na elaboração do Pronara. Envolvendo inclusive o Mapa – que tem uma coordenação de agricultura orgânica. Essa coordenação contribuiu bastante para a elaboração do Pronara, com medidas técnicas que permitiam o uso de bioinsumos e outras técnicas, como alternativa aos agrotóxicos.
Já naquela época, o Brasil era campeão mundial no uso de agrotóxicos, um dado que é contestado pelo agronegócio, mas o fato é que é um campeão – e segue sendo. O que a gente tinha muito claramente é que seria possível uma redução bastante acelerada [no uso] de agrotóxicos, simplesmente utilizando técnicas já dominadas pela agronomia brasileira. Mas o que estava em jogo eram os interesses econômicos.
Quando o Pronara já estava pronto [em 2014], todos os ministros assinaram. Mas, na hora da assinatura da ministra Kátia Abreu, essa assinatura não veio. Com isso, o Pronara foi adiado em mais de dez anos.
Foi uma elaboração muito cuidadosa, não é um programa radical absolutamente. Ninguém estava falando em dar um cavalo de pau, até porque isso não é possível. O Brasil está absolutamente dependente, ele entrou numa rota de dependência química muito grande. Então, é preciso pensar um processo de transição. O Pronara considerava isso, a ideia de que é necessário ir dando passos. Mas isso não foi admitido naquela época, então a gente perdeu dez anos.
O lançamento do Pronara foi adiado pelo menos cinco vezes em 2024…
Esse fato se repetiu agora. Durante o terceiro mandato de Lula, o Ministério da Agricultura vinha colocando obstáculos. Por uma série de razões, entre elas o não reconhecimento de que o Brasil precisa reduzir agrotóxicos.
Acho que começa por aí. A ideia de que o agrotóxico sempre foi entendido como um indicador de modernidade, de eficiência… O consumo de agrotóxico ou o emprego de maquinário são os indicadores de modernização do agronegócio. Então, como é que pode você instituir um programa voltado a fazer exatamente o oposto, que é reduzir agrotóxicos?
Evidentemente que o que está em jogo são interesses comerciais muito poderosos. E esses interesses comerciais têm uma presença muito forte, seja no Congresso Nacional, seja no próprio Ministério da Agricultura. Em particular na Secretaria de Defesa Agropecuária, onde esses interesses se manifestam. Então, a razão evidente é o interesse da indústria de o Brasil seguir um grande mercado para seus produtos – muitos deles, inclusive, proibidos em outros países.
“A gente tem que ver essa questão do agrotóxico dentro de um quadro mais amplo de expansionismo do agronegócio. Expansionismo sobre territórios indígenas, quilombolas, da própria agricultura familiar e sobre florestas, ecossistemas de forma geral. O agrotóxico é uma necessidade para viabilizar esse expansionismo.”
Você comentou que a gente perdeu uma década com o adiamento do lançamento do Pronara. Na sua visão, o que a gente perdeu, considerando que o Brasil é campeão no consumo dessas substâncias?
Perdemos em várias dimensões. Por exemplo, na questão tributária, nós saímos de R$10 bilhões para R$26 bilhões em renúncias tributárias federais para uso de veneno. Entre janeiro de 2024 e fevereiro de 2025, foram R$26 bilhões [de renúncias tributárias para a indústria dos agrotóxicos]. Quando o Estado abre mão de arrecadar R$ 26 bilhões, ele está sinalizando que é para usar – e é para usar de forma desmedida.
Do ponto de vista do papel do Estado, nós tivemos uma clara orientação liberatória. Nos primeiros cinco meses de 2025, foram liberados 415 novos agrotóxicos. Foram 56 a mais do que todo o primeiro governo Lula. Agora, na semana passada, foram liberados vários. Então, é uma desregulação completa.
Eu não acredito que a gente vai conseguir reverter esse quadro com a publicação do decreto. Nós estamos num quadro trágico com relação a essa matéria. Mas esse decreto nos coloca diante de um conjunto de possibilidades, inclusive do envolvimento de vários outros ministérios que agora entram no debate a partir de um sistema de governança que tira a exclusividade do Mapa, de definir uma espécie de ‘libera geral’ para consumo de agrotóxicos.