Por Daniel Lamir, do Brasil de Fato
Em meio aos debates do 13º Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA), realizado em Juazeiro (BA), o agrônomo Paulo Petersen, coordenador executivo da AS-PTA – Agricultura Familiar e Agroecologia, e membro da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), falou ao Brasil de Fato sobre sua atuação como Enviado Especial da Agricultura Familiar para a COP 30, que acontecerá em Belém (PA), em 2025.
Na entrevista, Petersen analisa o cenário de disputas políticas e econômicas que marcam as negociações climáticas, destacando o papel do agronegócio e as estratégias de resistência da agricultura familiar e camponesa. “A COP 30 será a COP da implementação. É hora de mostrar não apenas quanto cada país vai reduzir, mas como fará isso — e de onde virá o dinheiro”, afirmou.
Ele alerta para a influência das grandes corporações nas soluções apresentadas e denuncia o risco das chamadas falsas soluções, como a “agricultura regenerativa” proposta pelo agronegócio. “Essas respostas são absolutamente insuficientes para o tamanho do problema. Elas não mudam a questão essencial, que é a concentração de poder”, destacou.
Petersen defende que a agroecologia e a agricultura familiar sejam reconhecidas como pilares de um novo modelo de desenvolvimento rural, capaz de enfrentar simultaneamente as crises climática, alimentar e sanitária. “A agroecologia não é apenas um conjunto de técnicas, mas uma proposta de democratização dos sistemas alimentares — reconectando a agricultura aos ecossistemas e a produção ao consumo, ligando o alimento à saúde”, afirma.
Para o enviado especial, o desafio é fazer com que as vozes dos territórios cheguem aos espaços globais de decisão. “Quem não causou o problema não pode pagar o preço. A justiça climática exige que povos e comunidades vulnerabilizadas tenham protagonismo”, reforçou.
A seguir, a íntegra da entrevista, realizada durante o 13º CBA.
Ato no CBA juntou diversidade de público às margens do Rio São Francisco. | Manuela Cavadas
Brasil de Fato: Como apresentar o cenário de disputas dentro da COP 30 em que a Agricultura Familiar está inserida?
Paulo Petersen: A COP 30 é uma conferência multilateral em que os países apresentam seus compromissos de redução das emissões de gases de efeito estufa. Essa edição vem sendo chamada de “COP da implementação”, porque além de dizer quanto cada país vai reduzir, deve dizer como fará isso.
A grande discussão é como reduzir emissões e como se adaptar às mudanças climáticas, diante de uma urgência global. É exatamente esse “como” que está em disputa. O maior problema é que os setores que são os principais responsáveis pela crise — e que têm grande poder econômico e político — criam narrativas que distorcem o debate. É aí que surgem as chamadas “falsas soluções”. Falsas porque não enfrentam a raiz dos problemas. Pior: em muitas situações contribuem para agravá-los.
A raiz está em um modelo econômico altamente depredador da natureza e concentrador de riqueza. Esse modelo mostra sua cara de forma muito evidente nos sistemas alimentares. Eles são responsáveis por cerca de 50% das emissões globais, se considerarmos a queima de combustíveis fósseis, o desmatamento para abertura de novas áreas de produção, a industrialização, empacotamento, resfriamento e o transporte de alimentos a longa distância. Ao mesmo tempo, a agricultura é o setor econômico mais vulnerável às mudanças climáticas. Portanto, inserir os sistemas alimentares no debate é fundamental tanto pelo desafio da mitigação de emissões quanto pela necessidade de adaptação aos efeitos das mudanças climáticas.
No Brasil, a situação é ainda mais grave: mais de 70% das emissões são geradas pelos sistemas alimentares. O avanço desmedido de monoculturas dependentes de agroquímicos e voltadas à exportação, seguida da industrialização para a produção de ultraprocessados e transporte em longa distância gera um modelo insustentável, altamente consumidor de energia fóssil, de água e de outros recursos naturais finitos, como o fósforo e o potássio. Além disso, a pecuária, sobretudo em sistema de confinamento, é grande contribuinte pelas emissões brasileiras.
Esse modelo é responsável direto pelo desmatamento, pois tem “fome de terra”. É um sistema expansionista, que expropria territórios indígenas, quilombolas e áreas protegidas. É isso o que explica as sucessivas investidas da bancada ruralista sobre as legislações fundiárias e ambientais. Os PLs do Marco Temporal e da Devastação são exemplos emblemáticos dessa sanha expansionista do agronegócio sobre a Amazônia, o Cerrado, o Pantanal e os demais biomas.
E como a agricultura familiar entra nesse cenário de disputas?
Trazer a agricultura familiar para esse cenário é fundamental. Mas é preciso entendê-la não como uma identidade social, mas como um modo específico de praticar a agricultura. Refiro-me aqui à agricultura em seu sentido amplo, o que inclui as práticas de criação, pesca e agroextrativismo. Sob o guarda-chuva da agricultura familiar estão abrigados sujeitos com diferentes identidades, tais como camponeses, quilombolas, pescadores artesanais, povos e comunidades tradicionais e povos indígenas. Todas essas denominações organizam seu trabalho e sua economia em estreita relação com a natureza e com suas comunidades. Portanto, agricultura familiar deve ser entendida como uma agricultura territorial. É uma agricultura diversificada, cooperativa, de base comunitária, que combina produção para o consumo próprio, para doação na comunidade, para a venda em mercados locais e em mercados distantes. Portanto, há nesse modo de praticar agricultura várias economias circulando baseadas no uso múltiplo do espaço agrário. A resiliência da agricultura familiar vem exatamente da combinação da diversidade ecológica com a diversidade econômica em um mesmo território. Nesse sentido, é uma lógica bastante contrastante à do agronegócio, que aposta na economia de escala das monoculturas e grandes criatórios.
Na agricultura familiar temos diversidade econômico-ecológica. É daí que surge a relação intrínseca entre a agricultura familiar e a agroecologia. A agroecologia é um enfoque que valoriza os processos ecológicos para a dinamização econômica em bases sustentáveis — captando a energia solar pela fotossíntese para produzir biomassa, com isso aumentando a eficiência agronômica e reduzindo a dependência de combustíveis fósseis e de agroquímicos.
Além de reduzir o consumo de energia fóssil, a economia da agricultura familiar produz alimentos saudáveis e conserva os ecossistemas. Por essa razão ela precisa ser reconhecida e promovida para o equacionamento conjugado da crise climáticas ambiental, alimentar, de saúde coletiva e para a revalorização das culturas alimentares. Isso significa que a agricultura familiar reproduz uma economia do “ganha-ganha”: ganha no ecológico, no social, no cultural e no climático.
Você fala sobre “soluções ganha-ganha”. Como levar isso para um espaço global como a COP 30, onde há tantos interesses em jogo?
Um dos nossos grandes desafios é fazer com que, a partir da COP 30, as agendas de ações climáticas incluam a agricultura familiar e a agroecologia como parte das soluções reais, e não como um tema lateral.
Hoje, as agendas são fragmentadas: há uma COP do clima, outra da desertificação, outra da biodiversidade… a agenda da segurança alimentar é tratada em outros espaços, e assim por diante. Essa fragmentação só favorece quem propõe falsas soluções. Normalmente elas estão ligadas a inovações tecnológicas somente acessíveis pelos mercados globalizados. Por exemplo, uma proposta climática, como a instalação de parques de energia eólica ou solar, pode acentuar problemas ligados à insegurança alimentar. Ou uma política de combate à fome baseada em monoculturas e ultraprocessados vai impactar negativamente sobre o clima. Não são soluções “ganha-ganha”. Esse é o principal argumento a ser defendido na COP do clima. A agricultura familiar de base agroecológica é um dos principais satisfatores sinérgicos para solucionar as crises geradas pelo capitalismo agrário.
Estamos falando da maior profissão do mundo, ou seja, a maior fonte de ocupação econômica da humanidade. No Brasil, ela só não é mais expressiva porque a terra segue extremamente concentrada. Isso significa dizer que, se quisermos enfrentar a crise climática, a reforma agrária será uma condição indispensável. Para enfrentar a crise climática de forma consistente precisamos ampliar o espaço físico, político e econômico e cultural da agricultura familiar.
Temos bons e maus aprendizados no Brasil a levar à COP30 sobre esse assunto. Dispomos de uma já consolidada experiência em políticas públicas para a agricultura familiar. Desde os anos 1990 essas políticas canalizam recursos públicos especificamente para esse setor. Mas há grandes contradições. A começar pelo fato de que a reforma agrária não avança. Pelo contrário, processos de concentração de terra seguem em todos os biomas. Além disso, parte importante dos recursos públicos direcionados à agricultura familiar acabam por induzi-la a reproduzir em pequena escala a lógica econômica do grande agronegócio. Expressiva proporção do crédito concedido pelo Pronaf é ainda hoje canalizada para produção de commodities, como soja e milho. Entendemos que essa orientação é equivocada porque bloqueia o desenvolvimento de uma vocação econômica essencial em um mundo a beira do colapso climático, a começar pelo seu potencial de geração de postos de trabalho dignos e remuneradores.
E como garantir que novas propostas a partir da agricultura familiar de base agroecológica não acabem concentradas nas mesmas mãos que causaram o problema ambiental e climático?
Esse é um ponto crucial. O agronegócio tem proposto para a COP 30 a chamada agricultura regenerativa. Tal como concebida, trata-se de uma resposta absolutamente insuficiente para o tamanho do problema que temos a enfrentar. Isso porque ela não altera essencialmente a raiz do problema, que é a concentração de poder na regulação dos sistemas alimentares. Com soluções restritas a inovações tecnológicas acessíveis pelos mercados, o poder continuará concentrado nas mãos das grandes corporações geradoras do problema. São elas que seguirão determinando os rumos do desenvolvimento tecnológico. Isso já está claro hoje, com o súbito interesse corporativo pelos bioinsumos com a promessa de redução do uso de agroquímicos, inclusive dos agrotóxicos. A ironia é que essa é uma agenda que sempre defendemos a partir da agroecologia. Mas nossa defesa nunca esteve relacionada a uma simples substituição tecnológica. O foco sempre esteve ligado à construção de soberania tecnológica, com valorização de conhecimentos e recursos locais. Na prática, significa que não abrimos mão da produção autônoma dos bioinsumos pelas comunidades e pelas famílias agricultoras, aliás como sempre fizeram.
Projetos de lei e regulamentações influenciadas por interesses empresariais tendem a impor restrições ao uso de bioinsumos produzidos localmente. Para isso, lança-se mão de uma série de argumentos falaciosos, tais como a existência de riscos biológicos. Trata-se de um processo análogo ao verificado na imposição das regras de vigilância sanitária para produção artesanal pela agricultura familiar. Soluções efetivas não podem ser controladas pelas empresas que criaram o problema.
Por essa razão, a agroecologia não deve ser compreendida como um conjunto de técnicas. É uma proposta de democratização dos sistemas alimentares, já que emprega técnicas destinadas a reconectar a agricultura aos ecossistemas, a produção alimentar ao consumo e o alimento à saúde. Em outras palavras, o seu papel histórico é reconectar o que o agronegócio desconectou.
E quanto à transformação estrutural que precisamos para mudar essa lógica? Como avançar diante da força das corporações e desse sistema econômico que precisa ser superado?
As transformações necessárias não virão de cima para baixo. A agroecologia é uma construção que acontece nos territórios. Então a única possibilidade de mudança estrutural é com uma ampla mobilização social a partir dos territórios. Por isso, defendemos políticas públicas que fortalecem o tecido associativo, as cooperativas, as práticas locais de reciprocidade e de solidariedade. Temos alguns exemplos emblemáticos já conquistamos. Entre eles, podemos citar o programa Ecoforte de apoio a redes territoriais de agroecologia, o PAA, o PNAE e o programa de cisternas no semiárido. Todas são iniciativas que convocam as organizações locais a serem coexecutoras de políticas públicas.
Da mesma forma que não serão os mercados globalizados os portadores das soluções, não será somente o Estado, por meio de suas políticas, o ator capaz de promover as transformações estruturais necessárias. Apenas com o reconhecimento dos sujeitos que atuam nos territórios será possível fomentar a construção de soluções ajustadas às especificidades locais. Inovações tecnológicas universais não transformarão a essência do sistema que precisamos superar. No jargão técnico, chamamos elas de inovações incrementais, feitas dentro do próprio sistema com o objetivo de perpetuá-lo. Precisamos de inovações disruptivas, capazes de romper com as relações de dependência e subordinação impostas pelos agentes do capital.
Isso significa que as soluções para os problemas globais devem nascer da inovação local. Essas inovações são técnicas, sociais e institucionais. Gosto de definir a agroecologia como a economia solidária dos sistemas agroalimentares. Por isso ela é democratizadora. Sem mudança nas relações de poder, não haverá transformações efetivas nos sistemas alimentares. Portanto, a transformação não é apenas técnica, embora a dimensão técnica seja essencial. Os sistemas organizados pelos princípios da agroecologia exibem uma eficiência técnica muito superior aos sistemas dominantes. Embora os defensores destes últimos se vangloriem das elevadas produtividades físicas obtidas, são incapazes de dar resposta aos baixos e decrescentes níveis de eficiência energética, ecológica e social.
Desse ponto de vista, a economia do agronegócio e a da agricultura familiar contrastam em um aspecto central no debate sobre as crises globais. Enquanto a primeira gera benefícios financeiros capturados na escala micro pelo empresariado, produz externalidades negativas nas escalas regional e planetária. Já o trabalho da agricultura familiar gera efeitos multiplicadores sobre as economias locais, além de produzir externalidades positivas em benefício do conjunto das sociedades.
É exatamente com o intuito de compensar suas externalidades negativas, entendidas pelo pensamento econômico convencional como falhas dos mercados, que a agenda climática dominante tem sido orientada pela tentativa de criação de mercados compensadores, a chamada “economia verde”. Criticamos radicalmente essa orientação. Além de reforçar o poder dos mercados globalizados, coloca novos e poderosos obstáculos às iniciativas das populações locais na construção de soluções efetivas a partir de suas capacidades e recursos.
Nesse intrincado debate sobre mercados de carbono e de pagamento de serviços ambientais, importa ressaltar uma obviedade esquecida em meio aos discursos repletos de siglas e jargões incompreensíveis empregados pelos negociadores do clima: a agricultura familiar sempre produziu serviços ambientais e promoveu a saúde coletiva. Embora os frutos de seu trabalho sejam usufruídos pelo conjunto da sociedade, seu trabalho, especialmente o realizado pelas mulheres, é invisibilizado pela economia dominante. Portanto, a falha que precisa ser corrigida não é dos mercados, mas das políticas públicas.
Para corrigi-las, os Estados deveriam reconhecer e valorizar o trabalho produtor de serviços agroecossistêmicos realizado pela agricultura familiar. Não se trata de remunerar financeiramente pelos serviços ecossistêmicos. Além de cuidar da natureza, a agricultura familiar produz e distribui renda, promove ambientes alimentares saudáveis e gera bem estar e dignidade para as suas comunidades. Reconhecer esse trabalho é condição para que a agricultura familiar seja adequadamente posicionada na agenda climática. Não será através do viés neoliberal que a agricultura familiar poderá dar sua contribuição para nos livrar do colapso socioecológico. Esse viés, infelizmente dominante na tecnocracia, destrói o senso de comunidade e cria o fenômeno do “agricultor familiar empresarial”, ou seja, aquele que opera em livre competição segundo as normas estabelecidas pelas cadeias de valor do agronegócio.
Aliás, temos que entender porque após décadas de políticas voltadas para a agricultura familiar fomentadas pelos governos do PT, uma parcela grande desse segmento vota sistematicamente em candidatos da direita. De onde vem essa contradição? A verdade é que boa parte dos recursos públicos investidos nessas políticas, em particular os do crédito rural, induziram a agricultura familiar a altos níveis de dependência a mercados cada vez mais asfixiantes, com custos de produção crescentes e preços dos produtos altamente voláteis e com tendência à queda. Além disso, essas políticas fizeram com que essa parcela da agricultura familiar passasse a gerar externalidades negativas. Ou seja: travou-se a possibilidade de geração dos múltiplos benefícios potenciais que a agricultura familiar poderia gerar para seus próprios territórios e, de forma mais ampla, para o equacionamento das crises planetárias.
Ao ser induzida a ingressar nessa trajetória do empreendedorismo individual, o comportamento econômico e político dessa parcela da agricultura familiar acaba reproduzindo em pequena escala o mesmo padrão adotado pelos agentes do agronegócio, sempre refratários às mudanças estruturais. Portanto, é essencial que se entenda as crises ecológica, econômica, social e política estão intimamente conectadas. A superação de uma não ocorrerá sem a superação das demais.
Temos que nos perguntar também, por que que no semiárido brasileiro o senso de comunidade na agricultura familiar segue mais preservado. Nessa região, as pessoas afirmam o orgulho de serem agricultores e agricultoras familiares. Em contraste, no Sul do país, tem sido cada vez mais frequente escutarmos agricultores familiares se afirmarem como membros “do agro”. Isso não é um pequeno detalhe. Considero uma derrota política imensa e com grandes repercussões. Não se trata de uma questão política reduzida às disputas eleitorais. Trata-se da formação de um bloco conservador no seio da agricultura familiar com capacidade de exercer força contrária às necessárias e urgentes transformações nos sistemas alimentares. É imperativo reverter essa captura das subjetividades por parte do agro se não quisermos assistir parte importante da agricultura familiar contribuindo para o colapso climático. Em síntese: as políticas públicas concebidas para inserir a agricultura familiar nos mercados globalizados contribuem para desenraizá-la de seus territórios, gerando “sujeitos neoliberais”.
E nessa perspectiva de enviado especial da COP 30, como fazer com que as vozes dos territórios cheguem aos espaços globais de decisão?
Essa é exatamente a força deste Congresso Brasileiro de Agroecologia: mostrar que os que não causaram o problema não podem arcar com os seus custos. Essa está sendo a principal mensagem construída neste congresso para ser direcionada à Belém, seja da Cúpula dos Povos e dos espaços oficiais da COP 30. A perspectiva da justiça climática ressalta que os povos e comunidades vulnerabilizadas tenham protagonismo na construção das soluções. Essa é a mensagem principal a ser levada.
O Grupo de Trabalho de Justiça Climática da ANA acaba de concluir a primeira etapa de uma pesquisa-ação que investiga as múltiplas conexões entre a agroecologia e as mudanças climáticas. Entre seus objetivos, a pesquisa busca dar visibilidade exatamente às propostas de transformação construídas desde os territórios, com o protagonismo dos agricultores, principalmente das agricultoras. Com esse esforço coletivo, que mobilizou representações de mais de 500 experiências de agroecologia presentes em todos os estados do Brasil, esperamos deixar claro que os debates oficiais não podem se limitar às fontes de financiamento das políticas climáticas. Tão ou mais importante de saber de onde vêm os recursos, é saber para onde eles serão destinados. Isso significa dizer que não basta captar 1,3 trilhões de dólares ao ano se essa dinheirama for utilizada para financiar falsas soluções. Canalizar parte importante desses recursos para a agricultura familiar de base agroecológica e para a reconstrução de sistemas descentralizados de abastecimento alimentar é uma condição incontornável para equacionarmos a crise climática com a urgência necessária. De quebra, investimentos nessa direção dariam respostas consistentes às crises alimentar e de saúde pública e aos desafios abordados pelas COPs da biodiversidade e da desertificação.
Para que a agricultura familiar seja devidamente assimilada na agenda de ação que se seguirá à COP30, é fundamental romper com fragmentação entre os setores administrativos dos governos. Tomemos o caso brasileiro. A área da saúde, por exemplo, investe parte expressiva de seus recursos no tratamento das doenças depois que elas já estão estabelecidas. Um apoio determinado à agricultura familiar de base agroecológica pelo Ministério da Saúde, o de maior orçamento na esplanada dos ministérios, seria uma excepcional medida de promoção da saúde pública, com efeitos fiscais significativos pela redução dos gastos com medicamentos e tratamentos hospitalares. Integrar o acesso à alimentação saudável ao SUS, com o apoio à produção pela agricultura familiar e a manutenção de cozinhas solidárias em periferias urbanas, onde se formaram os desertos alimentares, seria simultaneamente uma importante política de fortalecimento da agricultura familiar e combate à pobreza rural, de saúde pública e de combate às mudanças climáticas. Portanto, a maior dificuldade encontrada para o enfrentamento de questões sistêmicas complexas, como as mudanças climáticas, não é a falta de recursos públicos, mas falta de sinergia entre as políticas. É fundamental combinar os recursos existentes numa direção coerente.
Em que pesem as dificuldades para a inovação institucional nesse campo, é importante sublinhar que esforços nesse sentido vêm sendo feitos no Brasil. São eles que deveríamos dar visibilidade como contribuições brasileiras na agenda climática. O Ministério do Desenvolvimento Social, por exemplo, lançou aqui no CBA o Marco de Referência de Sistemas Alimentares e Clima para Políticas Públicas. O Guia Alimentar da População Brasileira e o Programa de Redução de Agrotóxicos são também conquistas que ajudam a posicionar a agricultura familiar e a agroecologia na agenda climática. Apesar desses exemplos positivos, não tem sido simples construir um ambiente de intersetorialidade e de participação social em um Estado administrativamente fragmentado e atravessado por disputas internas. Poderosas resistências de grupos de interesse instalados em diferentes esferas do poder público impedem avanços mais significativos nessa direção. No entanto, é preciso ressaltar que com o apoio da academia crítica e a pressão de movimentos sociais, iniciativas como essas vão ampliando as frestas por onde as disputas políticas são feitas.
E nesse ponto, Paulo, além da construção de narrativa para fora, podemos analisar os possíveis impactos dessa narrativa para dentro do movimento agroecológico. Como avaliar também o cenário de conquistas e disputas do movimento dentro desse cenário de uma balança de narrativas?
Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que o contexto é para lá de hostil. Sabemos dos limites de nossas capacidades políticas e o tamanho das forças que bloqueiam as transformações sistêmicas estruturais. Temos que analisar a nossa trajetória com base nesse contexto e não fora dele. Desse ponto de vista, avalio o movimento agroecológico como altamente vitorioso, capaz de acumular conquistas importantes. Conquistar o Pronara em um contexto como esse, não é pouca coisa.
O ministro Paulo Teixeira lembrou aqui no CBA que foram 15 anos de luta para a conquista do Pronara. Nesse período, muita gente de vários setores foi mobilizada, envolvendo movimentos sociais de várias bandeiras luta, representações do campo acadêmico, da mídia e gestores públicos. Foi um processo lento e sofrido, mas que chegou a uma vitória no plano institucional. Vitória parcial e ainda sem consequências práticas. Mas ainda assim uma vitória a ser celebrada. Temos que fazer essas análises das conquistas políticas também pelo lado do copo cheio. Somente com o paulatino acúmulo de forças na sociedade será possível reverter o quadro crítico em que nos metemos enquanto civilização.
Por outro lado, não estamos na condição de protelar por muito tempo a implementação de soluções estruturais. A ciência alerta que estamos nos aproximando perigosamente de alguns pontos de não retorno, o que significa que o colapso socioecológico é iminente. A cada ano que passa temos um novo recorde relacionado ao aumento da temperatura média do planeta. E não é só o IPCC que alerta. Essa é também a percepção de muitas das pessoas de diferentes lugares do Brasil que participaram da pesquisa-ação conduzida pela ANA.
A meta estabelecida na Eco 92, quando já assistíamos a um aumento médio de 0,7 graus na temperatura do planeta, seria frear o processo, de forma a limitar o aumento a 1 grau até o ano 2000. Já naquela oportunidade, na conferência paralela organizada pela sociedade civil, apresentávamos a agricultura familiar e agroecologia como parte importante para o equacionamento das questões ambientais e climáticas em debate. Nos dirigimos para a trigésima COP do clima e, infelizmente, o quadro só se agravou desde então. As emissões cresceram significativamente. No ano passado, pela primeira vez na história, verificou-se aumento de 1,5 graus. Realizar uma COP do clima no Brasil é uma oportunidade para que as forças negacionistas que bloqueiam as efetivas transformações sejam expostas e colocadas em xeque.