Catarina de Angola, Daniel Lamir, Fernanda Cruz, Gleiceani Nogueira, Monyse Ravena, Veronica Pragana e Ylka Oliveira
A articulação Semiárido brasileiro (ASA) nasce de um processo cultural e político construído ao longo de anos por organizações da região que atuavam com um objetivo comum: a convivência com o semiárido.
Motivada por um desejo coletivo de construir novas formas de organização, visando ao desenvolvimento de políticas públicas compatíveis e adequadas à região, a ASA colocou o direito à água no centro de sua atuação. Essa bandeira, além de atender uma demanda real do povo, tem funcionado como agente catalisador de outros processos e como janela para outros direitos, entre eles, o direito à comunicação.
A partir de 1999, o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) surge como um elo entre a pauta da convivência com o semiárido e o direito à comunicação, materializado e fortalecido nos processos de mobilização social e participação cidadã.
Para Márcio Simeone Henriques (2004, p. 20), a comunicação adequada à mobilização social é antes de tudo dialógica, libertadora e educativa. Na dissertação de mestrado Comunicação popular na construção de políticas de acesso à água no semiárido: a experiência da ASA, Viviane Brochardt afirma que a comunicação dialógica considera o homem um ser de relações, sujeito de saberes. Não transfere conhecimento, mas propõe um encontro de interlocutores (2013, p. 79).
A partir desse prisma, a comunicação possibilita a construção de diálogos problematizadores dos contextos nos quais a população rural da região está inserida. Ao perceberem a realidade – o seu funcionamento e as forças que a sustentam –, as pessoas mudam sua relação com o entorno e acionam a sua capacidade de interagir com uma determinada situação. Diante de seu poder catalisador, esse exercício de comunicação apresenta-se como um recurso defendido e legitimado nos movimentos de Educação Popular e de Comunicação Popular, que acreditam que os processos de transformação, para serem reais, devem ser endógenos, protagonizados por quem almeja a transformação.
Em sua prática, a ASA reconhece a comunicação popular como estratégia e elemento importante para a convivência com o semiárido, ao garanti-la como componente metodológico dos seus programas. A comunicação popular norteia a concretização de ações, como os encontros de comunicação, de onde surgem as cartas políticas; a produção de programas de rádio; os intercâmbios de experiências entre famílias; e as sistematizações de histórias de vida dos agricultores e agricultoras, possibilitando que ganhem visibilidade e sejam propagadas pelo mundo afora.
Ao assumir politicamente uma comunicação voltada para os interesses das classes populares, nesse caso, os povos do semiárido, a ASA contribui para a efetivação do direito humano à comunicação. Graças à capacidade de descentralização e capilaridade da ação da ASA, são criados novos canais para a troca de saberes, assim como são revitalizados práticas e valores que se enraízam semiárido afora. Mais que isso, a articulação reconhece que os sujeitos das suas ações não são meros receptores de in- formação e conteúdo, mas também produtores e multiplicadores de conhecimentos.
É também através da comunicação que o Brasil passa a compreender melhor a lógica da convivência com o semiárido e enxerga as transformações sociais e políticas na vida de milhares de mulheres, homens, jovens e crianças. Gradualmente, a capacidade de inovação, a resiliência e o potencial da região vão se sobrepondo à imagem de uma terra destinada à extrema pobreza, dependente de ajuda externa e lugar de um povo sem valor. Assim, por meio da construção de outra imagem do semiárido, a relação da região com as demais do Brasil, bem como a do espaço rural com o urbano, é ressignificada.
RUMO AO DIREITO À COMUNICAÇÃO NO SEMIÁRIDO
Helena Martins, jornalista e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, explica que o conceito de direito humano à comunicação foi sendo construído, ao longo do século 20, devido ao fato de termos passado a viver em um mundo com um fluxo de informação cada vez maior. Acontecimentos como as guerras mundiais e escândalos políticos envolvendo a mídia deixaram claro que a comunicação se tornou elemento central para a constituição de uma sociedade democrática.
Na prática, o direito humano à comunicação está relacionado ao direito de todas as pessoas de ter acesso à informação e à liberdade de expressão. Alguns teóricos e organizações que militam pela garantia desse direito têm debatido a ampliação desse conceito, incluindo o acesso ao poder de comunicar através da mídia. Segundo Peruzzo (2004)
“As liberdades de informação e de expressão postas em questão na atualidade não dizem respeito apenas ao acesso da pessoa à informação como receptor, ao acesso à informação de qualidade irrefutável, nem apenas ao direito de expressar-se por quaisquer meios – o que soa vago –, mas de assegurar o direito de acesso do cidadão e de suas organizações coletivas aos meios de comunicação social na condição de emissores – produtores e difusores – de conteúdos. Trata-se, pois, de democratizar o poder de comunicar. Os maiores expoentes dessa nova concepção são uma gama de estudiosos da comunicação, ativistas, movimentos e organizações da sociedade civil.”
Essa questão foi assumida politicamente no VIII Encontro Nacional da ASA (EnconASA), ocorrido em Minas Gerais, em 2012. A partir da vivência em alguns estados e das discussões ocorridas no evento, a Carta Política demarcou a importância de garantir esse direito aos povos do semiárido. O documento afirma: … não podemos ignorar a exclusão que sofrem os povos do semiárido aos diversos meios de comunicação, especialmente, às rádios e televisões comunitárias, que funcionam como um instrumento de reafirmação da identidade e de fortalecimento das lutas pelos seus direitos. Sonhamos com o dia em que nosso povo exerça o seu direito de comunicar com a mesma autonomia, força e resistência com que constrói sua história de convivência com o semiárido.
Para Martins, o direito à comunicação deve também incorporar a promoção da diversidade cultural, apoiando a produção regional e combatendo os preconceitos e distorções na forma como a mulher, o negro e os povos tradicionais e tantos outros e outras são retratados na mídia (MARTINS, 2014).
Nessa perspectiva, vemos o tamanho do desafio para o semiárido pautar na mídia suas especificidades, explicitando a interdependência entre os direitos à comunicação, à água, à terra e ao território.
Portanto, apesar de a luta pelo direito à comunicação não ser a parte mais visível da ação da ASA, sua trajetória institucional demonstra que a defesa da vida e dos povos do semiárido está intrinsecamente alicerçada nos valores da educação-cidadã e da comunicação comunitária.
O ENRAIZAMENTO DA COMUNICAÇÃO PARA A MOBILIZAÇÃO E A FORMAÇÃO POLÍTICA
A partir de 2007, com a chegada do Programa Uma Terra e Duas águas (P1+2), a construção coletiva do conhecimento e a valorização do saber de agricultores e agricultoras familiares ganham força enquanto elementos inspiradores para a ação da ASA. Ao aproveitar as dinâmicas estabelecidas pelo novo projeto, em especial a sistematização de experiências e seus desdobramentos, o tema da comunicação popular toma corpo político nos estados em que a ASA está presente.
Sobre essa comunicação popular e democrática, a autora Cicilia Peruzzo descreve: É meio de conscientização, mobilização, educação política, informação e manifestação cultural do povo. É canal por excelência de expressão das denúncias e reivindicação dos setores organizados da população oprimida. Deve estar vinculada à luta pela conscientização [e integrada] num processo de luta com perspectiva de [uma] nova sociedade (PERUZZO, 2004, p. 125).
O conceito de Peruzzo dialoga diretamente com a comunicação que a ASA já praticava, embora esta ainda fosse bastante focada nos instrumentos e pouco pautada politicamente. Mas O Candeeiro, boletim informativo do P1+2, utilizado para registrar as mais variadas experiências de convivência com o semiárido, desafia a ASA a comunicar de um novo jeito, envolvendo de forma direta cada vez mais atores, entre eles, homens e mulheres protagonistas das experiências e os comunicadores e comunicadoras populares.
Essa Rede de Comunicadores e Comunicadoras Populares está descentralizada nas diversas microrregiões e territórios do semiárido, desenvolvendo processos de comunicação junto às organizações que compõem a ASA. Entre esses processos, está a sistematização de experiências de agricultores, agricultoras, grupos, associações, coletivos. Para Oscar Jara Holliday (2006), a sistematização é aquela interpretação crítica de uma ou várias experiências que, a partir de seu ordenamento e reconstrução, descobre ou explicita a lógica do processo vivido. Nessa perspectiva, os (as) comunicadores (as) contribuem para que a comunicação da ASA visibilize histórias de um semiárido diverso, plural, com uma série de questões a serem ainda conquistadas em diversos campos, mas com um grande potencial de vida, riqueza e sabedoria.
A comunicação da ASA está a serviço do povo do semiárido, anunciando suas belezas e demandas e denunciando as opressões. No entanto, os desafios para essa dinâmica são muitos. A compreensão da comunicação como direito das pessoas é uma realidade na ASA, mas que ainda precisa ser amadurecida. É preciso o envolvimento de diversos outros sujeitos para fortalecer esses processos de comunicação.
A EXPERIÊNCIA DA ESCOLA DE COMUNICAÇÃO POPULAR DO SEMIÁRIDO MINEIRO
A ASA Brasil, como rede que atua em dez estados, é formada por coletivos estaduais com singularidades, dinâmicas próprias e graus diversos de amadurecimento com relação a determinados temas e práticas. No campo da comunicação popular, a ASA Minas possui uma experiência interessante conduzida pela Rede de Comunicadores e Comunicadoras Populares do estado: a Escola de Comunicação Popular do Semiárido Mineiro.
A escola é um espaço de formação e troca de experiências para fortalecer as comunidades tradicionais, as famílias agricultoras, as organizações sociais e suas lutas, a partir de estratégias de comunicação popular. Os conteúdos são abordados em cinco módulos itinerantes, que ocorrem de forma alternada nas regiões do Norte de Minas e do Vale do Jequitinhonha, sempre mesclando um tema técnico com uma reflexão política, iluminada pelo contexto e experiência local.
O projeto mineiro está documentado em vídeo produzido recentemente pela ASA, intitulado O Semiárido contado por sua gente. O documentário apresenta essa e outras experiências de comunicação popular protagonizadas pelos povos da região semiárida em seus territórios.
Catarina De Angola
Daniel Lamir
Fernanda Cruz
Gleiceani Nogueira
Monyse Ravena
Verônica Pragana
Ylka Oliveira
Jornalistas, integrantes da Assessoria de Comunicação da ASA (ASACom)
[email protected]
Referências Bibliográficas:
ASA. P1MC, Recife, 2003.
BROCHARDT, Viviane dos Santos. Comunicação popular na construção de políticas de acesso à água no semiárido: a experiência da ASA. 2013. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Universidade de Brasília, Brasília.
HENRIQUES, Márcio S. et al. Comunicação e Estratégias de Mobilização Social. 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
HOLLIDAY, Oscar Jara. Para sistematizar experiências. Brasília/DF: MMA, 2006.
MARTINS, Helena. Comunicação também é direito fundamental. Blog Intervozes. 9 dez. 2014. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/blogs/intervozes/comunicacao-tambem-e-direito-humano-fundamental-7938. html>. Acesso em: 20 dez. 2015.
PERUZZO, Cicilia Maria Krohling. Direito à comunicação comunitária, participação popular e cidadania. In: OLIVEIRA, Maria José da Costa (Org.). Comunicação pública . Campinas: Alínea, 2004, v. 1, p. 49-79.
______. Revisitando os conceitos de comunicação popular, alternativa e comunitária. In: Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 29, 2006, Brasília, Anais… São Paulo: INTERCOM, 2006.
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Revista V13N1 – A construção de uma comunicação libertadora no semiárido