Taísa Lewitzki, Ana Alice Eleuterio e Antonio de la Peña García
A confecção de livros de pano é uma ferramenta artística e participativa que busca difundir e fortalecer ações coletivas. Como técnica, valoriza práticas de costura e tecelagem geralmente desenvolvidas por mulheres. Como processo, contribui para dar um significado crítico a construções baseadas em saberes artísticos e práticos ligados à esfera privada ou familiar e, por associação, ao que comumente se considera o âmbito feminino. O livro de pano, visto assim, tem a faculdade de introduzir as práticas em tecido na comunidade e legitimar seu uso como instrumento educativo e político dentro e fora dela. A valorização de práticas e construções coletivas femininas contribui para visibilizar grupos tradicionalmente excluídos das esferas decisórias em diversas comunidades, incentivando formas mais inclusivas de organização social.
Através do projeto de extensão Livros de pano: confeccionando narrativas da paisagem socioambiental faxinalense, apoiado pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) e desenvolvido em faxinais próximos à zona metropolitana de Curitiba (PR), mediamos a confecção de livros que representassem memórias, relatos e práticas da vida faxinalense. O processo de confecção, realizado em parceria com lideranças de comunidades membros da Associação Articuladora dos Faxinalenses da Região Metropolitana de Curitiba (Asafaxim), objetivou a produção de materiais artísticos e pedagógicos para a difusão da cultura local que não só permitissem, como também priorizassem o protagonismo de seus autores.
As histórias, narradas predominantemente por mulheres, mostraram as diversas formas de interação com tradições e práticas relacionadas à agrobiodiversidade presente nos faxinais. A importância das mulheres em processos de produção, sistemas alimentares locais e integração de redes familiares e comunitárias foi um ponto central nos relatos criados. A natureza participativa da confecção de livros levou os participantes a refletir sobre seu papel como indivíduos e em seus contextos socioambientais, com características específicas que inspiram narrativas e estéticas visuais.
AGRICULTURA E SOCIEDADE NOS FAXINAIS
Os faxinais são comunidades tradicionais de produtores rurais localizadas na região metropolitana ao sul de Curitiba e no centro-sul do Paraná. Diferenciam-se de outras comunidades camponesas pela forma de organização social e espacial de seus territórios, os quais são divididos em áreas comunitárias destinadas à criação de animais e extrativismo vegetal e áreas destinadas à roça.
Nas áreas comunitárias estão situadas as residências das famílias, com suas hortas e quintais. Embora essas terras sejam de uso ou propriedade privada, a sua apropriação é coletiva, sendo regulamentada por normas localmente estabelecidas. Tradicionalmente, o único espaço cercado é o das unidades familiares. Os animais, principalmente suínos e bovinos, transitam livremente pelas áreas de floresta remanescente que compõem essa extensão de uso coletivo. Essas práticas de manejo florestal integrado à criação de animais são responsáveis pela conservação de extensas áreas de floresta ombrófila mista na região (LOWEN SAHR; CUNHA, 2005).
OS LIVROS DE PANO E A REIVINDICAÇÃO DO TERRITÓRIO E DA CULTURA FAXINALENSES
Para compreender o contexto no qual se inseriram as oficinas de construção dos livros de pano, é importante conhecer a história de luta dessas comunidades tradicionais. Os faxinais vêm passando por intensos processos de mudança cultural e pressão territorial que ameaçam frontalmente os modos de vida locais e, sobretudo, as áreas de uso comum. Os faxinais próximos à região metropolitana de Curitiba sofrem diretamente os efeitos da expansão urbana e da conversão do uso do solo em monocultivos e plantações florestais (SOUZA, 2009). Essas pressões têm ocasionado, segundo relatos, tensões locais, discriminação de pessoas e modos de vida, êxodo rural, entre outros abalos.
Na última década, a organização política dos faxinalenses em torno de uma identidade étnica e coletiva possibilitou avanços jurídicos. No entanto, acirrou ainda mais os conflitos entre moradores ou detentores de terras rurais que se posicionam a favor ou contra a existência e a continuidade das áreas de uso comum.
A formação, em 2005, da Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses pode ser vista como um marco no enfrentamento das violências produzidas pelo sistema dominante de produção, caracterizado pela intensiva capitalização e privatização da natureza. Através dessa Articulação, os faxinalenses buscam formas de visibilizar seu modo de vida e reivindicar políticas públicas que atendam às suas especificidades sociais e identitárias. Para tanto, lideranças faxinalenses têm proposto, entre outras medidas, a produção de materiais educativos representativos do modo de vida local e a inserção dos mesmos nos currículos das escolas locais.
Nesse contexto, a criação de produtos de comunicação contribui não só para visibilizar as demandas e empoderar grupos historicamente excluídos, mas também para o conhecimento das práticas tradicionais na região. O uso do tecido nessas construções oferece diversas possibilidades de expressão, por aliar a escrita a elementos artísticos e lúdicos. Elaborar narrativas nesse meio é um processo social que fomenta a participação coletiva, particularmente das mulheres, e, indiretamente, trabalha a resolução de conflitos. Fundamentalmente, permite que relatos pessoais, muitos deles relacionados à execução de práticas agroecológicas, sejam transformados em relatos coletivos relevantes no âmbito das reivindicações de grupos específicos e da comunidade em geral.
PREPARAÇÃO DAS OFICINAS
As oficinas para a construção dos livros de pano foram realizadas durante o primeiro semestre de 2015, nos faxinais de Espigão das Antas e Meleiro, ambos localizados ao sul da região metropolita- na de Curitiba. Inicialmente, fez-se em cada comunidade uma reunião aberta informativa, para convocar os membros interessados em participar das oficinas. Estas ocorreram em horários, periodicidade e locais decididos coletivamente, contando, em média, com 15 participantes. No faxinal Espigão das Antas, o grupo foi composto exclusivamente por mulheres, enquanto que no Faxinal Meleiro a participação foi mista, embora com maioria de mulheres.
O processo que culminou na confecção dos livros de pano foi gradativo. Em uma primeira etapa, as oficinas objetivaram a apresentação da proposta e a troca de expectativas e experiências que pudessem ser úteis na elaboração dos livros (como habilidades com bordados e costura). Esses momentos foram essenciais para a construção de uma identidade coletiva e para que o grupo se apropriasse do processo.
Posteriormente, as oficinas enfocaram as temáticas que seriam abordadas e as tarefas necessárias para a elaboração dos livros. Temas, divisão de trabalhos e autoria dos livros foram decididos coletivamente em diversas reuniões. As histórias que compuseram os livros foram escritas e narradas individualmente, mas foram debatidas pelos grupos de participantes. O término da confecção dos livros foi celebrado com uma cerimônia de lançamento, que envolveu integrantes dos dois grupos, em um momento de intercâmbio de experiências vivenciadas durante o processo. A metodologia é flexível, podendo ser atualizada constantemente para contemplar as singularidades dos grupos e pessoas. Além das oficinas, visitas e conversas privadas foram importantes para acolher os anseios pessoais dos participantes.
O principal desafio nessa ação foi a elaboração das narrativas, visto que os saberes e conhecimentos faxinalenses são pouco valorizados, gerando dúvidas quanto ao mérito e importância dos mesmos. Além disso, as mulheres, que têm limitada participação nos processos decisórios locais, inicialmente não se mostravam confortáveis em compartilhar experiências ou mesmo em falar em público. Porém, as oficinas ofereceram um espaço social fecundo para a reflexão sobre o valor social e cultural das práticas cotidianas consideradas triviais.
COSTURANDO A AGROBIODIVERSIDADE
Apesar de elaborados a partir de metodologias similares, os livros de pano das duas comunidades abordaram temáticas distintas. A comunidade de Faxinal Meleiro optou por costurar, pintar e bordar dois livros: o primeiro conta a história da comunidade por meio de narrativas construídas a partir de vivências individuais. Em treze páginas, o livro Faxinal Meleiro: viver em comunidade traduz práticas do dia a dia, entre elas, formas de plantar e colher, conhecimentos tradicionais e a criação de animais à solta.
O segundo livro, intitulado Receitas da roça – Faxinal Meleiro, apresenta receitas que evidenciam práticas artesanais na produção e no preparo de alimentos tradicionais. O texto e a simbologia enaltecem o modo de produção nos faxinais, destacando atividades e conhecimentos predominantemente de domínio das mulheres. Descrevem a seleção de sementes e mudas, os processos e espaços de produção e criação, os períodos e formas de coleta e armazenamento dos alimentos e o preparo e partilha dos mesmos.
Já o livro elaborado no faxinal Espigão das Antas retrata trajetórias de mulheres que formam o Grupo Juntas Somos Mais, ressaltando a diversidade de seus fazeres e saberes e a relevância do grupo em suas vidas. Os textos em rima, prosa e versos manifestam a poesia faxinalense incorporada às histórias e sonhos das mulheres do Espigão.
POTENCIALIDADES DOS LIVROS
Inicialmente, o objetivo do Projeto Livros de Pano era fomentar a criação de materiais educativos a partir de um processo coletivo. Como facilitadores do processo, acreditamos que esses materiais podem ser usados e valorizados em espaços sociais e educativos da comunidade, incluindo escolas públicas. As oficinas e trocas de histórias e saberes, no entanto, mostraram que o próprio processo de elaboração coletiva de narrativas e confecção dos livros correspondeu a uma das principais potencialidades do projeto: oferecer às mulheres uma oportunidade para entender e consolidar, a partir de suas práticas, sua importância política nos faxinais.
Os livros abordaram histórias pessoais que permeiam o processo de produção de alimentos e percepções sobre a vida em comunidade. As narrativas que compõem os livros foram geradas a partir de debates que envolveram temas como produção agroecológica, segurança alimentar, métodos tradicionais de produção, identidade e luta das mulheres na comunidade. Desde a perspectiva política e organizativa, o livro de pano é uma ferramenta que pode ser utilizada em conjunto com outras metodologias de sistematização de experiências agroecológicas de mulheres (CARDOSO; RODRIGUES, 2009).
Assim, os processos de construção dos livros representaram uma importante ferramenta de diálogo e reflexão local, possibilitando a discussão e o intercâmbio de conhecimentos entre indivíduos e grupos. Além disso, evidenciaram a importância das mulheres nos vínculos entre meio ambiente e formas de organização. Nesse sentido, ofereceram às participantes a oportunidade de refletir sobre seus papéis como mulheres em uma produção agroecológica firmemente baseada em práticas e crenças locais.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos a todos os homens e mulheres participantes das oficinas nos faxinais Meleiro e Espigão das Antas, em especial ao sr. Amantino de Beija. O projeto foi financiado pela Pró-Reitoria de Extensão da Unila.
Taísa Lewitzki
Antropóloga e bolsista do projeto de extensão Livros de Pano, Unila
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Ana Alice Eleuterio
Profa. do curso de Desenvolvimento Rural e Segurança Alimentar, Unila
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Antonio De La Peña García
Prof. do curso de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em
Estudos Latino-Americanos, Unila
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Referências Bibliográficas:
CARDOSO, E; RODRIGUES, V. Mulheres construindo a Agroecologia no Brasil. Revista Agriculturas, v. 6, n. 4, p. 12-16, 2009.
SOUZA, Roberto Martins de. Mapeamento Situacional dos Faxinais no Paraná. In: ALMEIDA, A.; SOUZA, R. (Org.). Terras de Faxinais. Manaus: Edições da Universidade do Estado do Amazonas, 2009.
SAHR C.; CUNHA L. O significado social e ecológico dos Faxinais. Revista Emancipação, v. 5, n. 1, p. 89-104, 2005.
Baixe o artigo completo:
Revista V13N1 – Livros de pano: costurando e comunicando práticas agroecológicas faxinalenses