Priscila Facina Monnerat, Natália Almeida Souza e Bernardo Amaral Vaz
No idioma dos projetos, o termo público-alvo é utilizado de forma automática. A maioria dos editais pergunta de antemão: qual é o público-alvo? Na praticidade do dia a dia, naturalizamos essa expressão, referindo-nos às pessoas como alvos, ou seja, objetos e destinatários das ações, e não sujeitos.
Essa inquietação surgiu após o processo de avaliação do primeiro ano do Projeto Flora. Percebemos que enquanto o plano de formação falava em educadores e educandos e de uma relação horizontal, o plano de comunicação falava em alvo. Seria então uma forma bancária de pensar a comunicação, em que as ações são simplesmente depositadas em recipientes vazios? Tratamos então de entender essas diferenças e buscar novos referenciais na comunicação para além da Publicidade e Propaganda (HENRIQUES, 2003; PERUZZO, 2004; DE LIMA, 2011). Em paralelo, fizemos um esforço para conhecer mais experiências em comunicação de outras organizações do campo da reforma agrária popular, da Agroecologia que enfrentavam desafios parecidos.
RAÍZES DO FLORA E COMUNICAÇÃO DIALÓGICA
Por mais que agrofloresta seja uma palavra nova para muita gente, o que ela propõe tem raízes. Aprender uns com os outros, observar a natureza, dar valor à fartura (biodiversidade) e à vida coletiva não soa estranho para famílias camponesas, pois são raízes presentes em sua memória e modos de vida. Assim como ainda está presente a geração que conta a história de um Paraná coberto de florestas e de agricultura em harmonia com a natureza.
Então, os elementos para questionar o jeito público-alvo de pensar são raízes do Projeto Flora: um amplo processo pedagógico em rede para implementar sistemas agroflorestais em áreas de reforma agrária no Paraná. A proposta consiste em envolver centros de formação em Agroecologia, institutos, universidades e outros parceiros comprometidos com a agricultura camponesa e com a reforma agrária.
Ao aliar conservação e recuperação ambiental à produção saudável de alimentos nos assentamentos de reforma agrária, o Flora está – ainda mais – inserido em um cenário de conflitos históricos. A comunicação, compreendida para além de suas ferramentas e operações de marketing, assume, portanto, caráter de ação política e, enquanto tal, não é neutra. Está completamente imersa em amplas disputas, assim como a terra, a agricultura, a alimentação e as próprias práticas agroflorestais.
INSPIRAÇÕES E NOVAS EXPERIMENTAÇÕES
Os métodos tradicionais de análise de públicos na comunicação, em geral, levam em consideração duas variáveis: gênese e localização (HENRIQUES; BRAGA; MAFRA; 2007). Nessa lógica, uma campanha ou um boletim passa a ser compreendido como uma flecha para acertar um determinado alvo (objeto), com origem, características e lugar específicos. O que descobrimos é que existem bons motivos para apostar em outros elementos.
O campo das Relações Públicas nos convida a perceber a importância das interações entre sujeitos, estabelecendo diferentes vínculos, que definem o tipo e a intensidade de envolvimento dos sujeitos com as causas, movimentos e projetos. Referenciais construídos também pela comunicação popular nos ajudam ainda a construir uma ação comunicativa que vai além de tentar enviar flechas a um alvo. Ela deixa de ser unidirecional e centralizada e passa a servir à criação, à manutenção ou ao fortalecimento de vínculos necessários para a realização plena da comunicação humana em todos os seus níveis.
Esse jeito de pensar fez as ações de comunicação e educação ficarem muito mais próximas, quase inseparáveis. Pois, no fundo, estávamos falando de diálogo. Esse olhar da educação e da comunicação como diálogo nos remete às ideias de Paulo Freire e de uma comunicação interativa antes mesmo da revolução digital, vale dizer, antes da internet e de suas redes sociais (DE LIMA, 2011).
O campo da Agroecologia permite identificar muitas experiências com esses princípios e (re)inventar, para o nosso contexto, outros caminhos – conectando e aprendendo com o que já foi feito. Foi assim que O Candeeiro, boletim da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), ajudou a construir o Roça e Floresta, um boletim possível de ser feito por qualquer pessoa que queira registrar uma história, mas que privilegia o jeito próprio camponês de contar, em poucas páginas, causos e experiências.
COMUNICAÇÃO QUE TEM GOSTO: COMIDA COMO SÍNTESE
Quando afirmamos que existe Agroecologia no Paraná, estamos na verdade reconhecendo a existência de muitos circuitos de comunicação, uma vez que não há Agroecologia sem diálogo de saberes e sem a valorização das mais diversas vozes atuantes no processo. E foi justamente envolvendo essa rede presencial e pulsante nos assentamentos do Paraná, para além de curiosos profissionais da comunicação, que novos sentidos foram sendo aguçados.
Percebemos que, assim como as cozinhas, os quintais são um bom lugar de conversa. E quando as agroflorestas começam a crescer e dar frutos, trocar receitas é conversar sobre esse novo jeito de fazer agricultura. Notamos que a comida tem grande poder de florescer e fortalecer vínculos, criar e restaurar nascentes por onde correm memórias.
Começamos então a experimentar no- vos sabores na comunicação, em que reforma agrária e Agroecologia convergem para a produção agroflorestal, tornando ainda mais possível produzir e comer conservando o meio ambiente. Nesse trabalho, a comida deixa de ser apenas uma ilustração ou ornamento para os materiais de comunicação. Felizmente, também nos distanciamos da onda da gourmetização que vem ressignificando, de forma elitizada e despolitizada, o debate sobre a comida e seus modos de produção. Dá gosto de ver e viver! Comida na cozinha. Comida no prato. Comida no canteiro. Comida na escola. Comida no acampa- mento. Comida na varanda. Comida de verdade.
Compreendemos que a fundação da cozinha (fogo, técnicas, suas alquimias de produção) está ligada à fundação da própria civilização (LÉVI-STRAUSS, 2010). Assim, a comida pode dizer muito sobre uma cultura (local e global). Alguns autores chegam até a interpretá-la como um idioma por meio do qual se expressa e se constrói uma cultura (MONTANARI, 2008).
Sob essa ótica, o livro Receitas da floresta que a gente planta é mais do que um compilado de ingredientes e jeitos de preparo. É a expressão de uma agriCultura em implementação nas áreas de reforma agrária do Paraná.
O primeiro filme da série Mesa camponesa mostra o preparo de uma polenta de milho verde com galinha caipira em um assentamento do norte do estado. Num lugar onde um ano antes só se poderia filmar monocultura de soja, cana e trabalhadores boias-frias, agora, com as agroflorestas, já é possível fazer cinema, café, almoço e janta de dar água na boca.
Esses são exemplos de mudanças que foram ocorrendo na forma e no conteúdo do plano de comunicação do Projeto Flora, à medida que o democratizamos – assim como a terra – e à medida que o diversificamos – assim como a agrofloresta. A partir de então, provocamos um deslocamento importante: o alvo se tornou a própria comunicação: mediada pelo trabalho cotidiano e comprometida com nosso projeto de sociedade que tem diferentes sotaques, ritmos, cheiros e sabores.
Ao nos permitir experimentar novas combinações, percebemos que comunicação tem gosto e que, assim como a cozinha, as agroflorestas e a recuperação ambiental podem ser feitas com carinho, parceria e compromisso.
Priscila Facina Monnerat
Coordenadora do Projeto Flora
[email protected]
Natália Almeida Souza
Equipe de comunicação do Projeto Flora
[email protected]
Bernardo Amaral Vaz
Equipe de comunicação do Projeto Flora e da produtora Aicó Culturas [email protected]
Referências Bibliográficas:
DE LIMA, Venício Artur. Comunicação e cultura: as ideias de Paulo Freire. Brasília/São Paulo: Editora UnB/Editora Fundação Perseu Abramo, 2011.
HENRIQUES, Márcio Simeone; BRAGA, Clara Soares; MA- FRA, Rennan Lanna Martins. Planejamento da comunicação para a mobilização social: em busca da co-responsabilidade. In: HENRIQUES, Márcio Simeone (Org.). Comunicação e estratégias de mobilização social. 2 ed. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2007.
LEVY-STRAUSS, Claude. O Cru e o Cozido: mitológicas I. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008.
PERUZZO, Cicília Maria Krohling. Comunicação nos movimentos populares . Petrópolis: Vozes, 1998.
Baixe o artigo completo:
Revista V13N1 – Comunicação em gosto? As experiências do projeto flora – reflorestando a reforma agrária no Paraná