Steve Gliessman e Jim Cochran
A costa central da Califórnia, com seu clima mediterrâneo, é reconhecida por sua importância no cultivo de morangos. Assim como em muitas outras localidades, a produção de morango nessa região é altamente dependente de insumos externos caros, intensivos em energia e nocivos ao meio ambiente.
O atual caráter industrial e convencional do sistema de produção de morangos na Califórnia remonta ao início dos anos 1960. Antes dessa data, os produtores cultivavam os morangos como uma cultura perene, fazendo a rotação em cada campo para conferir um intervalo de vários anos entre um plantio e outro. No entanto, quando a fumigação com brometo de metila (BM) foi introduzida na década de 1960, os produtores passaram a manejar os morangos como uma cultura anual, utilizando a mesma parcela de terra para o plantio ano após ano e realizando a fumigação com o BM. No início dos anos 1980, os agricultores começaram a rever suas práticas, à medida que o interesse em alimentos orgânicos foi demonstrando grande potencial de mercado. Outro fator que contribuiu para essa mudança de postura dos produtores foi a crescente preocupação quanto à segurança do uso de agrotóxicos para a saúde e a qualidade ambiental. Há 30 anos, a Universidade da Califórnia em Santa Cruz vem estudando esse processo por meio de um trabalho conjunto com agricultores.
Nesse contexto, surgiu uma parceria particularmente frutífera entre um acadêmico (Steve Gliessman) e um produtor de morangos (Jim Cochran). Foi um feliz acaso que apenas uma cerca separasse as primeiras plantações de Jim em sua propriedade em Davenport, Califórnia, da casa onde Steve vivia naquela época. As conversas entre os vizinhos sobre a transição para a produção orgânica de morangos levaram ao primeiro estudo comparativo colocando lado a lado os manejos orgânico e convencional. Contando com os campos de cultivo, as variedades e práticas, os trabalhadores e muitos dos recursos das terras de Jim, nosso pensamento e nossas práticas puderam evoluir.
O artigo conta a história dessa jornada de construção coletiva de conhecimentos agroecológicos. A partir desse trabalho de colaboração, nosso pensamento foi se desenvolvendo e possibilitou elaborar uma teoria fundamentada sobre os diversos níveis no processo de transição para a sustentabilidade. Acreditamos que esses níveis oferecem valiosos indicativos sobre formas para disseminar ou intensificar processos de transição agroecológica, bem como para imprimir mudanças nos papeis desempenhados pela ciência.
NÍVEL 1: REDUÇÃO DE INSUMOS
Mesmo antes do início da parceria, uma extensa pesquisa foi realizada para descobrir maneiras mais eficazes de controle de pragas e doenças visando à redução de insumos industriais e, por consequência, dos seus impactos ambientais negativos.
NÍVEL 2: SUBSTITUIÇÃO DE INSUMOS
Durante os primeiros anos de nossa parceria agricultor-pesquisador, que começou em 1986, trabalhamos juntos em um ensaio comparativo entre campos de produção de morango durante os três anos de conversão exigidos pelas normas para a certificação orgânica. O cultivo de morangos com insumos e práticas de manejo convencionais foi conduzido por Jim lado a lado com o cultivo manejado segundo métodos orgânicos. Nas parcelas orgânicas, cada insumo ou prática convencional foi substituído por um equivalente orgânico. Por exemplo, em vez de controlar o ácaro-rajado com um acaricida, Jim liberou ácaros predadores benéficos (Phytoseiulus persimilis) e passou a monitorar os resultados. Ao final do terceiro ano, já haviam sido estabelecidas as taxas e as quantidades de liberação ideais de predadores – que agora se tornaram a norma para a indústria.
No entanto, o agroecossistema continuava sendo basicamente uma monocultura de morangos, e os problemas com doenças aumentaram. A grande questão era se o sistema de produção de morangos poderia ser fortalecido por meio da diversificação.
NÍVEL 3: REDESENHO DO SISTEMA
Foi nesse momento, no início dos anos 1990, que começou a ser feita uma abordagem integral do sistema. Partindo do conceito de que a estabilidade do agroecossistema é atingida quando há interação dinâmica de todos os seus componentes, concebemos em conjunto formas de resistência aos problemas criados pela lógica de plantio em monocultura. Jim percebeu que precisava retomar parcialmente práticas tradicionais de rotação de culturas que costumavam ser empregadas antes do aparecimento do brometo de metila.
Com base em pesquisas sobre alelopatia anteriormente conduzidas por Steve, foi feito o redesenho do sistema, buscando imprimir maior diversidade e complexidade, o que contribuiria para que as rotações se tornassem mais eficazes e, em alguns casos, de mais curta duração. O esquema que elaboramos consistiu em utilizar culturas da família da mostarda como parte integrante das rotações e como culturas de cobertura, de modo que seus produtos tóxicos naturais pudessem ser produzidos na propriedade. Foi preciso fazer mais pesquisas para escolher as espécies mais adequadas, que apresentassem os melhores impactos, e para compreender a ecologia das interações.
Em vez de apostar na aquisição nos mercados de produtos naturais para combate aos insetos-praga, foram incorporados ao sistema agentes de controle natural, mantendo-os continuamente presentes e ativos. Talvez a ideia mais inovadora no redesenho do sistema tenha sido a introdução de linhas de alfafa nos campos de morango para servir como armadilhas para o percevejo da espécie Lygus hesperus. Algumas dessas mudanças se originaram em pesquisas acadêmicas, mas outras se basearam no reaprendizado de práticas utilizadas na produção de morangos antes dos anos 1960.
NÍVEL 4: REDES ALIMENTARES ALTERNATIVAS
Os consumidores têm desempenhado um papel muito importante na transição para a sustentabilidade. Jim começou a frequentar mercados de agricultores, onde ele po- dia vender seus morangos orgânicos diretamente aos consumidores e reter uma maior porcentagem do preço de venda. Mais tarde, ele adotou outras abordagens ainda mais diretas, como a colheita de seus morangos pelos consumidores e uma banca na propriedade na qual vende também produtos processados, como tortas e geleias. Posteriormente, estudantes da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, convenceram os responsáveis pela alimentação do campus a integrar itens locais, orgânicos e de comércio justo – incluindo os morangos orgânicos de Jim –nas refeições servidas.
NÍVEL 5: RECONSTRUINDO O SISTEMA ALIMENTAR
A troca de conhecimentos promovida pela parceria trouxe enormes mudanças. No entanto, o aumento expressivo na produção de morangos gerou vários desafios de sustentabilidade que só podem ser tratados no nível seguinte. Por exemplo, a erosão do solo e a lixiviação de nutrientes têm sido observadas em sistemas de produção orgânica de morangos que cobrem extensas áreas. O esgotamento das águas subterrâneas e a intrusão de água salgada nos aquíferos também foram fenômenos verificados em regiões de cultivo de morangos. O que pode ser chamado de nível 5 de pensamento deve abranger tais questões ao considerar a saúde de todo o sistema, as- sim como deve incluir questões sociais mais complexas, tais como justiça alimentar e direitos trabalhistas. Desde 1998, Jim incorporou o princípio da justiça social em suas práticas agrícolas por meio de um contrato com o sindicato United Farm Workers (Trabalhadores Rurais Unidos, em tradução livre). Quinze anos mais tarde, ele também recebeu o selo de certificação de comércio justo do Agricultural Justice Project (Projeto Justiça Rural, em tradução livre).
VÍNCULO CONTÍNUO ENTRE PESQUISA, PRÁTICA E MUDANÇA SOCIAL
Os frutos da parceria tiveram um alcance que foi muito além da propriedade de Jim. Já nos primeiros dias de nosso trabalho de colaboração, abrimos a propriedade para visitas de agricultores, a quem mostramos os nossos resultados de pesquisa e as práticas agrícolas. O sucesso de Jim tornou-se um incentivo para que outros produtores locais iniciassem a transição em suas propriedades, especialmente utilizando a substituição de insumos, a fim de obter a certificação orgânica. Ao longo dos anos, os resultados da pesquisa foram publicados, participamos de uma série de oficinas, conferências e cursos de curta duração sobre a produção orgânica de morangos. Também utilizamos a propriedade de Jim como local para manter um vínculo contínuo entre pesquisa e prática.
Nos dois condados da região da costa central dos EUA, onde se encontram tantos campos de morangos, havia um total de 14.418 hectares com certificação orgânica em 2012, mais de sete vezes a área certificada em 1997. A receita total da exploração orgânica nesses condados foi de US$ 247,7 milhões em 2012, representando um aumento extraordinário de mais de 2.000% em relação a 1997.
Quando Jim decidiu fazer a transição, todo mundo dizia que ele não teria sucesso com o cultivo comercial de morangos orgânicos. E quando unimos nossas forças em 1986, fomos considerados demasiado radicais, ou mesmo loucos, por nossas ideias. Mas, na verdade, um dos aspectos mais valiosos da parceria tem sido ter um amigo com a mesma linha de pensamento. Realmente foi um pro- cesso de construção de duas vias, com os resultados da pesquisa sendo apresentados para Jim, argumentos vindos dos dois lados sobre possíveis mudanças no sistema e nas práticas agrícolas, ideias de pesquisa trazidas de outras iniciativas e projetos, o compartilhamento de impressões, a elaboração de possíveis formas de implementar tudo isso na Fazenda Swanton Berry, etc. Nesse processo, um ajudou o outro a se manter firme e enfrentar os desafios que surgiram ao longo de 30 anos. Por meio dessa parceria, os dois evoluíram em sua compreensão e raciocínio sobre os processos de mudança rumo à sustentabilidade.
Construir essa relação exigiu tempo, confiança, flexibilidade e vontade de partilhar conhecimentos, valores e crenças. Mas esse relacionamento participativo e orientado para a ação é um componente essencial da maneira que a Agroecologia deve operar para promover um maior alcance junto a outros agricultores e um aumento de escala no sistema alimentar para gerar uma mudança real. Tivemos de estar constantemente atentos para as diversas formas de cooptação e concentração vindas da indústria de morangos, que se caracteriza pela produção em larga escala, de integração vertical e exclusivamente orientada para o mercado. Também tivemos cuidado com a aproximação de universidades que conduzem pesquisa agrícola sob o viés convencional.
Tivemos muitas conversas ao longo dos anos sobre a forma como temos feito Agroecologia juntos. Ambos estamos empenhados em manter e nutrir a nossa forte crença na necessidade de mudar o sistema alimentar como um todo. Aprendemos juntos que a Agroecologia não é apenas uma atividade acadêmica. Ela consiste na ampla integração da pesquisa, da prática agrícola e das ações de transformação social. Se um desses três componentes estiver ausente, não se pode dizer que é realmente Agroecologia.
Steve Gliessman
Diretor-fundador do Programa em Agroecologia da Universidade da Califórnia em Santa Cruz
[email protected]
Jim Cochran
Proprietário da Fazenda Swanton Berry e o primeiro agricultor a realizar o cultivo comercial de
morangos orgânicos na Califórnia
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Baixe o artigo completo:
Revista V13N1 – Campos de morango para sempre: uma experiência de parceria agricultor-pesquisador