João Carlos Canuto e Mário Artemio Urchei
Este artigo procura discutir os processos de comunicação em curso no contexto das experiências dos últimos anos da equipe de agroecologia da Embrapa meio ambiente em assentamentos rurais e unidades familiares do estado de São Paulo. Para tanto, buscamos apresentar os condicionamentos e espaços de avanço no trabalho de construção coletiva do conhecimento agroecológico em um ambiente institucional de pesquisa como a Embrapa.
Ao problematizar os diferentes paradigmas de comunicação em disputa, evidenciamos lógicas e contradições internas, mas também destacamos estratégias desenvolvidas para potencializar o trabalho orientado ao envolvimento e ao atendimento das necessidades socioeconômicas e ecológicas dos agricultores familiares em processos participativos de transição agroecológica e de transformação de suas vidas.
ROMPENDO PARADIGMAS DA COMUNICAÇÃO
A primeira edição do livro Extensão ou comunicação?, de Paulo Freire, foi publicada em 1969, mas a obra continua extremamente atual, uma vez que não houve mudanças significativas no comportamento e na conduta concreta dos técnicos e intelectuais das instituições que trabalham com pesquisa e desenvolvimento agropecuário de nosso país. Já naquela época, o autor desvelava o caráter de invasão cultural embutido no trabalho do extensionista, investido de uma lógica mecânica e difusionista que supõe, de um lado, um detentor do saber (o cientista, o extensionista) e, de outro, um ser passivo e oco que deve ser preenchido de conhecimentos e tecnologias (o agricultor). O paradigma difusionista ignora, assim, que o agricultor também detém saber e deve ser o protagonista do processo, se quisermos que ele efetivamente faça parte da transformação social. Uma das expressões retóricas desse paradigma é a referência a uma suposta resistência do agricultor à adoção de tecnologias modernas, justificando a sua exclusão do processo, frente às suas inatas incapacidade e ignorância.
Institucionalmente, gerou-se e consagrou-se a máxima mecanicista de que existe um processo evolutivo linear e unidirecional, a partir do qual as instituições de pesquisa geram as tecnologias, as de extensão rural as difundem e os agricultores aptos as adotam. Em coerência com esses postulados, criam-se estruturas organizacionais, metodologias, eventos de treinamento técnico e uma parafernália de outros procedimentos para dar efetividade à ação dos extensionistas. No entanto, sabemos que, historicamente, esses mecanismos falharam flagrantemente, atingindo uma pequena parcela dos agricultores, os chamados médios agricultores empreendedores, cujo capital material constituía um fator facilitador da apropriação das tecnologias propostas.
EXPERIÊNCIAS INSTITUCIONAIS DE CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO AGROECOLÓGICO E DE COMUNICAÇÃO
Apesar de todas as mazelas e limitações, sobrevivem dentro das instituições públicas de pesquisa e desenvolvimento agropecuário experiências interessantes. Frequentemente desenvolvidas por pequenas equipes, tais iniciativas demonstram que, com obstinação, comprometimento e determinação, é possível produzir resultados positivos. Por vezes, os avanços aparecem como simbólicos, por não se traduzirem em amplas e imediatas transformações, mas ao menos geram certo incômodo no sistema institucional dominante, ao sinalizarem que há caminhos alternativos e, de alguma forma, provando a viabilidade das mudanças.
As experiências da nossa equipe contaram com recursos ora oficiais, ora de fontes externas, sendo outras vezes realizadas por meio de ações pura- mente voluntárias. Desenvolveram-se com vitalidade em algumas regiões e períodos e estiveram quase hibernando em outros. Na sua evolução, estiveram cercadas de otimismo ou à beira da frustração. Apresentaram descontinuidades, em decorrência do encerramento de projetos e da escassez de novas fontes de financiamento, pondo em risco a própria confiança dos agricultores (e a nossa) no processo. Em muitos momentos, padeceram da falta de compreensão e apoio dos gestores institucionais, mas o que manteve viva a chama foi a coesão, a identidade compartilhada e o consenso entre os membros da equipe em torno dos preceitos da Agroecologia, considerada o enfoque para a transformação social e ecológica mais adequado à nossa sociedade, sobretudo aos camponeses e às comunidades rurais.
Para dar consistência às práticas de comunicação democrática implementadas, recorremos a diversos métodos e conceitos de pesquisa participativa e pesquisa-ação preconizados pela literatura (BRANDÃO, 1999; PETERSEN; ROMANO, 1999; MAELA, 2000; BUCKLES, 1995). No entanto, quando necessário, promovemos importantes adequações e mesmo inovações metodológicas. A realidade multifacetada assim exigia – as condições econômicas, ecológicas e culturais dos variados territórios em que trabalhamos estiveram sempre balizando o método. Assim, construímos nossa própria forma de trabalhar, tendo como raio de ação o que denominamos de Unidade de Referência (UR).
Como UR, entendemos qualquer espaço, especialmente parcelas ou unidades agrícolas, onde possam se materializar a observação, a experimentação, a validação, a capacitação, a disseminação, o intercâmbio e a apropriação social do conhecimento sobre o desenho e o manejo de sistemas agroecológicos. Em nosso trabalho, as unidades visam à troca de saberes entre os sujeitos sociais, por meio de processos de socialização do conhecimento, visitas técnicas, dias de campo, oficinas, seminários e outros eventos focados na Agroecologia.
Mas as URs não são obrigatoriamente espaços físicos. Podem ser também qualquer espaço de inovação, em que alguma ideia interessante esteja sendo exercitada, no contexto da participação e da comunicação popular. Nesse sentido, podem consistir em fóruns de debate, reflexão e aprendizado, dando oportunidade para o exercício da transdisciplinaridade e, mais importante, para a apropriação dos conhecimentos gerados no decorrer do processo, de modo dialeticamente natural.
Assim, as unidades constituem o lócus privilegiado da comunicação, onde as trocas – as organizadas e as caóticas – formam um manancial complexo de ideias, práticas, processos, princípios e recursos, ou seja, as referências que poderão inspirar mudanças para a comunidade e o entorno da rede, tanto no âmbito produtivo como no relacional. Portanto, não se identificam de modo algum como receitas. A partir do contato direto com as experiências e por meio de ambientes de comunicação horizontal, os agricultores (e técnicos) têm encontrado a possibilidade de filtrar, a seu modo, segundo suas condições e em função das necessidades concretas de sua realidade, os conhecimentos apresentados, que, em sua posterior aplicação, certamente passarão por inúmeras adaptações, supressões ou novos desenvolvimentos.
A intensa comunicação nesses processos participativos permite o aprofundamento das relações dentro e entre as comunidades, que, a partir do convívio, passam a ter uma maior compreensão acerca da diversidade socioeconômica e cultural existente no meio rural. Outro fator positivo tem sido a promoção da autoestima dos agricultores, colocando-os como verdadeiros protagonistas. A comunicação propiciada por esses processos cria também laços entre agricultores e técnicos, reforçando o diálogo entre o saber técnico-científico e o saber popular, ambas formas válidas de conhecimento.
Processos mais abrangentes de comunicação vêm tendo lugar, igualmente, à medida que as URs tornam-se referências para a irradiação local e regional do conhecimento. Além disso, os resultados têm mostrado conter em si grande significado, evidenciado por sua utilidade prática e imediata para os agricultores, diferentemente da maior parte do conhecimento acadêmico, que, via de regra, acaba se perdendo em estoques de publicações, muitas vezes herméticas, inacessíveis e descontextualizadas da realidade dos agricultores.
O PAPEL CENTRAL DO CONHECIMENTO
O conhecimento, especialmente o gerado em organizações públicas de pesquisa e desenvolvimento agropecuário, não deveria ser canalizado para um pequeno número de latifundiários e empresas privadas, muitas delas com domínio oligopolista sobre o sistema agroalimentar mundial e a serviço da concentração da riqueza e do lucro desenfreado. Subverte-se, com isso, o caráter público das instituições governamentais. Urge que os recursos da sociedade sejam revertidos em benefícios para os cidadãos. Não se trata de desvalorizar o conhecimento institucional, mas apenas atentar para a necessidade de uma mudança de foco, do ponto de vista técnico-científico, e de sua direção no que se refere aos sujeitos de direito da pesquisa pública.
Independentemente disso, o conhecimento continua sendo um dos pilares estratégicos da transformação social. O conhecimento agroecológico é, nesse sentido, o ponto de inflexão, o salto de qualidade para a inserção dos agricultores familiares brasileiros em um movimento maior de transformação da realidade.
Temos defendido e trabalhado para inverter a lógica dominante, colocando como prioridade a geração de conhecimento voltada para contextos reais e evitando a proliferação de documentos científicos de alto grau de especificidade, formatos herméticos e divulgação restrita ao próprio mundo acadêmico.
Mesmo com as limitações próprias de ambientes de institucionalização rígida, podem-se constatar avanços, como a participação efetiva de diversos atores sociais e a valorização das diferenças. Temos observado impactos produtivos positivos, como resultado da geração de conhecimento adequado às particularidades e especificidades de cada local e região. A seguir, apresentamos três exemplos que ilustram o es- forço de aproximação entre o saber técnico-científico e o tradicional, embora ainda haja bastante a caminhar no sentido de tornar mais efetivo esse diálogo.
1. Notável aprofundamento do conhecimento sobre os mecanismos que comandam certos procedimentos técnicos (ainda mais considerando a origem urbana de parte dos agricultores): práticas de compostagem; atributos especiais das árvores enxertadas; funcionamento da adubação verde; razões para o surgimento das denominadas pragas; sombreamento ideal para as espécies econômicas; estratégias de reposição da fertilidade, etc.
2. Avanços no sentido de que os próprios agricultores assumissem a introdução de alguns procedimentos mais rigorosos de observação ou experimentação: apropriação pelos agricultores de metodologias simples de delineamento experimental; importância das parcelas testemunha e das repetições; certa padronização de manejos; entre outras questões relacionadas ao emprego da estatística experimental.
3. Consenso entre agricultores e técnicos sobre a importância de protocolos de monitoramento como forma de geração de informação relevante para o diagnóstico continuado e a correção de problemas detectados.
Em qualquer caso, o que fica evidenciado é que, quando a comunicação se efetiva, cria-se para os agricultores a oportunidade da apropriação de princípios, e não somente de técnicas.
PERSPECTIVAS
Há dez anos, a publicação do Marco referencial em agroecologia da Embrapa (EMBRAPA, 2006) tornou mais visível a temática da Agroecologia na instituição e abriu caminho para alguns projetos estratégicos. Nos últimos anos, porém, em que pese a criação da Política e do Plano Nacionais de Agroecologia e Produção Orgânica (Pnapo e Planapo, respectivamente), observa-se um declínio da importância da Agroecologia nas instituições de pesquisa, o esfacelamento das redes construídas e a falta generalizada de recursos para o tema.
De toda maneira, as perspectivas de futuro precisam ser construídas hoje, tendo como pedra fundamental a comunicação. A Carta Política do III Encontro Nacional de Agroecologia (ENA) diz que a ampliação da escala das experiências agroecológicas passa, necessariamente, por uma mudança de enfoque, procurando articulá-las entre si por meio da conformação de redes territoriais de construção do conhecimento agroecológico (ENA, 2014). Seguindo essa linha, temos trabalhado para transformar as unidades de referência em nós de redes de referência, ao buscar articular saberes, capacidades e interesses comuns de organizações, comunidades e pessoas. Dessa forma, desencadeamos dinâmicas mais abertas de comunicação e troca entre ricas experiências, antes isoladas, promovendo um interessante processo de irradiação, que extrapola os limites individuais e de comunidades para obter um alcance territorial e regional. E é esse esforço de trabalhar em redes que tem impulsionado soluções criativas que não seriam produzidas sem a contribuição de diversos pontos de vista.
João Carlos Canuto E Mário Artemio Urchei
Pesquisadores da Embrapa Meio Ambiente, Jaguariúna (SP)
[email protected]; [email protected]
Referências Bibliográficas:
BRANDãO, C.R. (Org.). Repensando a pesquisa participante. São Paulo: Brasiliense, 1999.
CANUTO, J.C. Investigación en agroecología: instituciones, métodos y escenarios futuros. In: MORALES HERNÁN- DEZ, J. (Coord.). La agroecologia en la construcción de alternativas hacia la sustentabilidad rural. México: Siglo xxI: Instituto Tecnológico y de Estudios Superiores de Occidente, 2011. 318 p.
EMBRAPA. Marco referencial em agroecologia . Brasília- DF: Embrapa Informação Tecnológica, 2006. 70 p.
ENCONTRO NACIONAL DE AGROECOLOGIA –III ENA. Carta Política. Juazeiro, 2014.
PETERSEN, P.; ROMANO, J. Abordagens participativas para o desenvolvimento local. Rio de Janeiro: AS-PTA/ Actionaid, 1999. 144 p.
MAELA. Metodologías participativas hacia el diálogo de saberes. Memoria del Curso-Taller: Metodologías de investigación participativa para el rescate de tecnologías locales. Cochabamba: MAELA, 2000. 117 p.
BUCKLES, D. (Org.). Caminhos para a colaboração entre técnicos e camponeses. Rio de Janeiro: AS-PTA, 1995. 125 p.
Baixe o artigo completo:
Revista V13N1 – Comunicação para a transição agroecológica: desafios e avanços institucionais