Juliana Dias e Mònica Chiffoleau
Os processos de produção, circulação e apropriação da informação sobre alimentação vêm ganhando importância entre organizações da sociedade civil e nas políticas públicas na área de segurança alimentar. Nesse contexto, consideramos emblemática a Carta Política do III Encontro Nacional de Agroecologia (ENA) ao indicar que a comunicação é um direito fundamental a ser defendido para a efetivação da democracia em nosso país e para a consolidação da agroecologia como o único modelo viável e sus- tentável para a agricultura brasileira (ENA, 2013, p. 16).
O documento propõe o enfrentamento do sistema de comunicação dominante, que legitima ideologicamente os padrões de desenvolvimento geradores de desigualdades sociais e reforça estereótipos de mulheres, jovens, negros, povos e populações tradicionais. Esse sistema está alicerçado em um forte e imbricado setor de mídia, umbilicalmente ligado ao grande capital e relacionado às forças mais conservadoras e reacionárias de nossa política (ENA, 2013, p. 16), afirma a carta.
Na contracorrente desse sistema hegemônico, destacamos também o Marco de Referência de Educação Alimentar e Nutricional (EAN) para as Políticas Públicas.
Lançado em 2012, o documento aponta que a forma como a comunicação se desenvolve é fundamental e influencia de maneira decisiva os resultados para a promoção da alimentação adequada e saudável. A valorização do conhecimento, da cultura e do patrimônio alimentar; a construção partilhada de saberes, de práticas e soluções; e as relações horizontais estão entre as qualidades desse modo insurgente de comunicar. Assim, a comunicação ultrapassa os limites da transmissão de informações e a forma verbal, compreendendo o conjunto de processos mediadores da Educação Alimentar e Nutricional. (BRASIL, 2012, p.35).
O marco da EAN está em sintonia com as propostas dos movimentos sociais representados pela carta do ENA, ao reivindicar um sistema de comunicação que revele os conflitos, as violações de direitos e as injustiças sociais e ambientais como condição prioritária para outro projeto de nação. A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) propõe uma comunicação plural, dialógica, horizontal e em rede. Esse modelo já é desenvolvido por inúmeras organizações, redes e movimentos que integram a ANA, entre os quais, o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), cuja experiência no uso de ferramentas de comunicação para sensibilizar e mobilizar a sociedade abordaremos aqui.
COMIDA É PATRIMÔNIO: A CAMPANHA
Partindo desse esforço em elaborar abordagens teórico-metodológicas sobre comunicação e alimentação, o objetivo deste artigo é apresentar a experiência do Fórum com a campanha Comida é Patrimônio e problematizar as implicações entre comunicar e comer.
Desde 1998, o FBSSAN articula pessoas, organizações, redes, movimentos sociais e instituições de pesquisa na luta pelo Direito Humano à Alimentação Adequada e Saudável (DHAAS). Esse panorama alerta para os graves impactos das mudanças de práticas alimentares e sua indissociável relação com o sistema alimentar hegemônico altamente envenenado e artificializado.
A ideia da campanha surgiu durante o VII Encontro Nacional do FBSSAN, em 2013, que teve como tema: Que alimentos (não) estamos comendo? De acordo com a integrante da coordenação do FBSSAN, Vanessa Schottz, a questão formulada para o evento levou os membros do Fórum a perceber como a defesa da comida como um patrimônio pode fazer da dimensão cultural da SAN um elemento articulador para despertar a consciência alimentar. A carta política do evento registra que, apesar das conquistas na área da SAN, ainda faltam mecanismos de efetivação desses direitos em face da persistência e mesmo agudização de modelos alimentares responsáveis por danos sociais e ambientais que ameaçam tanto a diversidade cultural quanto a biodiversidade.
A campanha é uma plataforma de comunicação para a divulgação e a mobilização de um sistema alimentar mais justo, equitativo, sustentável e saudável. Um dos objetivos é estimular a população a repensar sua relação com os alimentos, considerando a agrobiodiversidade, o saber-fazer culinário e as representações do comer como bens a serem preservados. Na maioria das vezes, porém, esse debate fica restrito aos ambientes acadêmicos e espaços de controle social de políticas públicas. Assim, buscando ampliar seu alcance, a campanha optou por utilizar as redes sociais como geradoras de novas formas de participação cidadã. Na visão de Bentes (2005, p. 11-12), a discussão que interessa é como as redes sociais, com sua miríade de singularidades e processos de subjetivação, rompem com a lógica da reprodução através da informação e da comunicação.
COMO VER, VIRALIZAR E POLITIZAR PARA RELIGAR
O escritor e educador mineiro Rubem Alves (2012, p. 9) afirmava que as ideias, assim como as pimentas, têm o poder de provocar incêndios: basta uma brasa. Um único pensamento-pimenta… Inspirada nessa linguagem artística do pensamento-pimenta, a campanha associou o peso das palavras ao choque das imagens para provocar a reflexão e iluminar os sentimentos e a ação. O projeto foi desenvolvido pelo Fórum em parceria com a agência de conteúdo e relacionamento Malagueta Comunicação, formada por jornalistas e pesquisadoras na área de fotografia, arte, filosofia e alimentação. A colher de pau foi eleita como símbolo da identidade visual, por fazer parte do ritual culinário, com seu acervo de gestuais e saberes.
Na busca por partilhar uma compreensão mais abrangente dos modos de comer, lançou-se mão das artes visuais, da poesia e da literatura, por serem capazes de traduzir a complexidade da condição humana e da condição do mundo. Foram garimpados pensamentos-pimentas de poetas, literários, militantes, cozinheiros, agricultores, antropólogos, gastrônomos com a finalidade de colocar brasas na comunicação sobre alimentação. As frases selecionadas foram agrupadas em quatro eixos: comida é bem material e imaterial; comida é afeto, memória e identidade; comida é diálogo de saberes; e transformados em cartazetes digitais. A provocação das ideias-brasas foi aprofundada com a publicação de artigos sobre os eixos. Aludindo a Bentes (2015, p 16), cada artigo trazia uma causa, um afeto, um horizonte de mundos; e essa comunicação por afetação, e não por discurso de verdade, é uma distinção, assumindo o desafio de produzir narrativas plurais e estéticas.
A primeira fase da campanha foi realizada exclusivamente pela internet. Os pensamentos-pimentas e os artigos foram publicados no site e na página do Facebook do FBSSAN, de janeiro a outubro de 2014. Os cartazetes podem ser considerados como memes, pois permitem explorar o potencial multiplicador e viralizante de ideias, ou parte de ideias, imagens, desenhos, valores estéticos e morais, que puderam ser transmitidos e replicados. Observou-se que a campanha mobilizou uma audiência orgânica, aumentando consideravelmente os acessos nas páginas virtuais do Fórum.
Seguindo a lógica de que as redes digitais ocupam também o espaço físico, a segunda fase da campanha ganhou oficinas, deixando fluir o pensamento colaborativo e com o intuito de cocriar novos pensamentos-pimentas. Outra frente de trabalho foi uma exposição itinerante com os cartazetes impressos em tamanhos 30×30 cm, 40×40 cm e 60×60 cm. O visitante é estimulado a contribuir com seus pensamentos-pimentas e interagir com a mostra, seja com receitas, sementes ou ideias num muro de papelão de seis metros de largura e três de altura. A exposição passou pelo Rio de Janeiro, por Brasília e por Buenos Aires, na Argentina. Outra estratégia foi imprimir os pensamentos-pimentas na forma de cartão postal, estimulando o participante a criar suas brasas e espalhá-las em outros espaços.
A campanha promove, assim, o pensamento participativo, que enxerga o todo nas partes e as partes no todo. Esse modo de pensar nos conduz a perceber que todo ser participa da Terra, de que não há um ser independente. Tornamo-nos cientes de que a comida religa. É o mesmo que dizer que somos nutridos pela Terra. Consideremos os alimentos – nós os compartilhamos, literalmente. A comida, que parece ser um objeto separado, transforma-se em nós mesmos. Como se vê, há algo errado com o fato de considerarmos, de modo literal, a comida como objeto separado. A literalidade mental tende a fragmentar as coisas, enquanto o pensamento participativo tende a juntá-las (BOHM, 2005, p.154).
COMUNICAÇÃO DIALÓGICA
A experiência de comunicação do FBSSAN encontra sinergia na perspectiva de Freire que define essa ciência multidisciplinar como uma relação social e política de sujeitos em diálogo (1971b, p. 66-67, passim, apud LIMA, 2011, p. 89). Assim, prescinde da coparticipação dos sujeitos; implica reciprocidade; é diálogo, não transferência de saber; é um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados. Nesse sentido, a comunicação torna possível a organização social. O modelo dominante de comunicação sobre alimentação parece se desvincular do diálogo, atendendo prioritariamente a interesses econômicos e mercadológicos e negligenciando as dimensões não econômicas da comida. (ibidem , p. 90).
A plataforma comunicacional Comida é Patrimônio se propõe dialógica, não emerge da unidade e do consenso, mas da diversidade e do pluralismo de ideias. A problemática alimentar demanda soluções interdisciplinares e intersetoriais, daí a importância de experiências de comunicação que desenvolvam novas linguagens ao invés de mimetizar os veículos comerciais, os quais, como apontam Deleuze e Guattari (1995, p.12;14), trabalham com comandos: ordenar, interrogar, prometer, afirmar, não é informar (…) A informação é apenas o mínimo estritamente necessário para a emissão, transmissão e observação das ordens consideradas como comandos.
A campanha está comprometida com estratégias da EAN, que favorecem a aproximação das instituições de ensino e pesquisa com a sociedade por meio do diálogo de saberes. No Manifesto Comida de Verdade, enfatiza-se a importância da educação para o resgaste do alimento como patrimônio sociocultural, promovendo consciência crítica sobre o consumo como ato político que influi em todo o sistema alimentar. Dessa forma, o FBSSAN continua com seu histórico empenho político de mobilizar a sociedade para valorizar as diversas dimensões da alimentação, a partir de criações narrativas coletivas que permitam gerar emoções, que tornem a causa da SAN e do DHAA compreensível e de fácil adesão para todos os públicos, gerando um vínculo de pertença diferente da militância política clássica.
A comunicação hegemônica aparece como um obstáculo para a tomada de consciência e o engajamento da população em problemas vitais da sociedade. É, portanto, urgente sistematizar e fomentar novos modelos de comunicar, pautados numa relação social e política, com a coparticipação dos sujeitos em diálogo, como assinala Freire (1971b, p. 66-67, passim, apud LIMA, 2011, p. 89). É uma pauta que definitivamente precisa encampar as lutas pela soberania e segurança alimentar.
Juliana Dias
[email protected]
Mònica Chiffoleau
[email protected]
Doutorandas em História das Ciências, das Técnicas e Epistemologia (HCTE/UFRJ)
Referências Bibliográficas
ALVES, R. Pimentas. Para provocar um incêndio não é preciso fogo. São Paulo: Ed. Planeta, 2012.
ANA. Carta política do III Encontro Nacional de Agroecologia (ENA). Juazeiro, Bahia, 2014. Disponível em: <http://enagroecologia.org.br/files/2014/05/Carta -Pol%C3%ADtica-do-III-ENA.pdf>. Acesso em: 17 fevereiro 2016.
BENTES, I. Mídia-multidão – estéticas da comunicação e biopolíticas. Rio de Janeiro: Ed. Mauad x, 2015.
BOHM, D. Diálogo: comunicação e redes de conveniência. São Paulo: Palas Athena, 2005.
BBBBBB. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Marco de referência de educação alimentar e nutricional para as políticas públicas. Brasília, DF: MDS; Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, 2012.
CCCCCC. Manifesto Comida de Verdade. V Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSAN). Brasília (DF), 2015. Disponível em: <http://goo.gl/ QRxOht>. Acesso em: 17 fevereiro 2016.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
FBSSAN. Carta política do VI Encontro Nacional. Porto Alegre (RS), 2013. Disponível em <http://goo.gl/AwFv- NA>. Acesso em: 17 fevereiro 2016.
LIMA, de L.V. Comunicação e cultura: as ideias de Paulo Freire. 2. ed. rev. Brasília: Ed. UNB: Fundação Perseu Abramo, 2011.
SODRÉ, M. A ciência do comum. Notas para o método comunicacional. Petrópolis: Ed, Vozes, 2014.
Baixe o artigo completo:
Revista V13N1 – Mutações político-estéticas na comunicação da soberania e segurança alimentar e nutricional