Natália Carolina de Almeida Silva e Juliana Bernardi Ogliari
Repentinamente, os grãos começaram a estourar, saltavam da panela com uma enorme barulheira. Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes se transformavam em flores brancas e macias […] a transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação por que devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser.
(Rubem Alves, 1999)
O trecho extraído da crônica A pipoca do escritor Rubem Alves faz uma simples e divertida descrição da característica especial do milho pipoca de se expandir e adquirir uma forma completamente diferente. Em seguida, o autor faz um paralelo com a capacidade transformadora da espécie humana no decorrer da história. Nessa trajetória de espécie, grande destaque deve ser dado às mulheres, considerando que, desde os primórdios, foram elas que comandaram a grande transformação: a domesticação de plantas para a produção de alimentos.
GUARDIÃS DA DIVERSIDADE DE MILHO PIPOCA: CONSERVAÇÃO DE VARIEDADES PELA TRADIÇÃO
Se a pipoca castiçar, vira milho. Essa frase foi repetida muitas vezes pelas agricultoras familiares dos municípios de Anchieta e Guaraciaba, na região Extremo Oeste de Santa Catarina, durante a realização do Censo da Diversidade, projeto de pesquisa conduzido pelo Núcleo de Estudos em Agrobiodiversidade (NEABio) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Em outras palavras, o que elas quiseram dizer é que a pipoca cruzada com outro tipo de milho não estoura. Essa frase revela o conhecimento que as agricultoras construíram ao longo das gerações para conservar, manejar e preparar o milho pipoca. A partir do Censo da Diversidade, foram identificadas 1.513 variedades locais de milho conservadas in situ-on farm, das quais 1.078 eram de milho pipoca. Esses resultados foram surpreendentes em função do elevado número de pipoca encontrado nessa região, mas também chamam atenção porque, diferentemente dos outros tipos de milho, a pipoca é conservada principalmente pelas mulheres.
A pipoca está presente na região há pelo menos 60 anos, período coincidente com o processo de colonização da região por migrantes descendentes de italianos e alemães, vindos do Rio Grande do Sul (ALVES; MATTEI, 2006). Durante esse processo migratório, muitas agricultoras trouxeram consigo sementes de milho pipoca (e também de outras espécies) para iniciarem uma nova vida na nova morada e garantirem a soberania e segurança alimentar das suas famílias. Mas é preciso destacar que nessa região já habitavam populações indígenas e caboclas, que, juntamente com as famílias de imigrantes, conformam sua atual população.
Muitas das variedades de pipoca identificadas em Anchieta e Guaraciaba pelo Censo da Diversidade são mais antigas do que os próprios municípios. Algumas delas são conservadas e repassadas entre gerações de mulheres da mesma família (avó-mãe-filha) há cerca de 100 anos, sendo carinhosamente referidas por algumas agricultoras como as sementes do enxoval. A essas variedades mais antigas pode-se mesmo atribuir um valor de herança, uma vez que as herdeiras zelam pela sua conservação por uma questão de tradição. De fato, de uma amostra de 403 variedades de pipoca desses dois municípios, 72% foram adquiridas por herança de família ou da vizinha. A conservação do milho pipoca está associada, portanto, às tradições de convívio social, em que a pipoca é preparada em dias de chuva para passar o tempo, para comer com chimarrão, para receber os vizinhos e reunir a família, tal como foi mencionado pelas agricultoras durante as entrevistas.
Além do componente cultural, a conservação das variedades locais de milho pipoca está relacionada à sua qualidade culinária. É justamente por serem mais macias, saborosas, por não darem casquinha (presença do pericarpo, após a expansão), por estourarem quase tudo e renderem bastante que as agricultoras continuam motivadas a manter suas próprias variedades, assim exercendo o papel de guardiãs da diversidade.
A diversidade, por sua vez, foi descrita pelas agricultoras a partir das características fenotípicas do grão e da espiga. O Censo da Diversidade identificou algumas variedades cujo tamanho dos grãos assemelhava-se ao de arroz (denominadas pelas próprias agricultoras de pipoca-arroz), enquanto outras variedades apresentavam grãos de tamanho comparável aos grãos de milho comum (dentados, duros, etc.), sem contar a diversidade de cores dos grãos (vermelhos, pretos, alaranjados, amarelos, roxos, brancos e multicoloridos). Com base nessas características associadas à morfologia do grão, as agricultoras selecionam suas variedades e mantêm a sua identidade genética.
Para ilustrar tal fato, dos 16 critérios de seleção indicados pelas agricultoras, 11 foram relacionados às características morfológicas do grão e da espiga, dentre eles, destacam-se cor do grão, forma do grão, forma da espiga, arranjo de fileiras, espiga bonita, etc. Percebe- se, assim, que o conjunto de critérios indicados pelas agricultoras está muito mais associado à manutenção da identidade genética das variedades do que aos aspectos agronômicos, como prolificidade, altura de planta, acamamento, enraizamento ou produtividade.
Mas são os laços de solidariedade entre agricultoras que garantem a manutenção das variedades locais de pipoca. No período de 2011 a 2013, durante o qual a pesquisa foi realizada, foram trocadas 92 variedades entre as agricultoras de Anchieta e Guaraciaba. O número máximo de variedades doadas pela mesma agricultora foi de três, enquanto que uma mesma variedade foi repassada, no máximo, para quatro agricultoras. Mediante a circulação de variedades, ativa-se um sistema de conservação do milho pipoca nesses municípios, ampliando o número de agricultoras, instituições/organizações locais e variedades ao sistema. Se uma mesma variedade passa a ser mantida por duas agricultoras, seu risco de perda se reduz pela metade (SILVA, 2015).
O QUE AS VARIEDADES LOCAIS REPRESENTAM PARA NÓS MULHERES?
As variedades locais representam a nossa alimentação, e alimentação de qualidade, pois sabemos o que estamos plantando. Elas representam nossa autonomia enquanto agricultoras; plantamos para manter a tradição, para preservar nossas sementes para o futuro das próximas gerações (agricultora durante reunião com o Grupo de Mulheres no município de Guaraciaba, 2013).
As variedades locais constituem o principal componente da agrobiodiversidade e a base para o desenvolvimento de sistemas agrícolas sustentáveis. Representam um patrimônio essencial à reprodução dos diferentes modos de vida. Fazem parte de um processo de construção cultural e também de convergência entre a seleção natural e a seleção humana.
Em Anchieta e Guaraciaba, as mulheres não são responsáveis apenas pela conservação do milho pipoca, mas também de uma gama de espécies denominadas por elas de miudezas. As miudezas são entendidas como as espécies destinadas à alimentação da família e que não possuem valor comercial, tal como é o caso do tomate (DA SILVEIRA, 2015), da alface e do radice (OSÓRIO, 2015).
Em um trabalho anterior, Canci et al. (2004) já haviam demonstrado que, além de realizarem diariamente os afazeres domésticos, as mulheres são responsáveis pela conservação de cerca de 70% das espécies cultivadas no município de Anchieta, incluindo milho pipoca, amendoim, mandioca, batatinha, feijão, batata-doce e praticamente todas as espécies olerícolas. Os homens, por sua vez, são responsáveis pelas espécies comerciais, como o milho comum, que, seguindo a lógica de mercado (geração de renda direta), acabam ocupando a maior parte da força de trabalho familiar e da área de terra das unidades de produção.
Historicamente, o papel crucial das mulheres no manejo e no uso da agrobiodiversidade tem sido negligenciado. Sua relação com o ambiente é holística e multidimensional. Embora a Convenção sobre Diversidade Biológica reconheça esse papel, ainda são ignorados os espaços naturais predominantemente utilizados por mulheres, privilegiando aqueles usados por homens, assim como são subestimadas as esferas de trabalho não orientadas à produção mercantil (principalmente femininas), em favor de espaços comerciais (principalmente masculinos).
MILHO PIPOCA: PATRIMÔNIO GENÉTICO E CULTURAL
No Brasil, a pipoca já era cultivada antes do processo de colonização. Na história do germoplasma de milho do país, Brieger et al. (1958) e, posteriormente, Paterniani e Goodman (1977) relataram que entre as etnias indígenas que habitaram/habitam nossas terras, aparentemente somente os Guaranis cultivavam/cultivam milho pipoca. Embora não se saiba exatamente como o milho pipoca era preparado pelos povos indígenas, existem relatos de que a espiga inteira era colocada sobre o fogo. Depois, passaram a colocar só os grãos sobre as brasas até inventarem um método mais sofisticado: cozinhar o milho numa panela de barro com areia quente. Esta última forma de preparo também foi (e continua sendo) muito utilizada nos rituais de Candomblé e Umbanda.
Em algum momento da história, a primeira geração de agricultoras que chegou à região do Extremo Oeste de Santa Catarina incorporou a pipoca em seus hábitos alimentares. O consumo de milho pipoca é, portanto, uma prática que une diferentes culturas e representa o elo entre as mulheres indígenas, a cultura negra e as agricultoras familiares de origem europeia. Trata-se de uma herança genética e cultural que permanece no cotidiano das práticas de conservação e manejo das agricultoras e de suas estratégias agroalimentares.
AGROECOLOGIA E A VALORIZAÇÃO DO PAPEL DAS MULHERES
Apesar da invisibilidade, as mulheres foram originalmente produtoras de alimentos em todo o mundo e continuam a ter importância central nos sistemas de produção alimentares. Em Anchieta e Guaraciaba, os esforços das mulheres no manejo do milho pipoca estão diretamente associados à alimentação da família, uma vez que esse cultivo é utilizado principalmente para o autoconsumo. Na verdade, além do elevado valor para a alimentação, o milho pipoca desempenha um papel interessante na manutenção de aspectos culturais da vida das famílias. O vínculo sociocultural e afetivo das agricultoras com a pipoca e a conservação pelo uso tem garantido a manutenção e a evolução particular da diversidade desse cultivo na região.
Nesse sentido, ao romper com a lógica produtivista de mercado que rege a agricultura, a Agroecologia tem promovido o resgate e a valorização do papel das mulheres na conservação dos recursos genéticos locais, sobretudo quando esses cultivos estão associados aos sistemas culturais e alimentares, que carregam consigo uma história, tradição e identidade cultural.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos a todas as agricultoras pela gentileza e disponibilidade em nos conceder as entrevistas, por abrir não só as portas de suas casas, como também de suas memórias e histórias, para que fosse possível a realização da pesquisa. Agradecemos também aos pesquisadores Rafael Vidal e Flaviane Malaquias Costa, pelos comentários e sugestões, e ao Conselho Nacional de Desenvolvi- mento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (Fapesc), pelo suporte financeiro concedido para a realização do Censo da Diversidade, no âmbito do projeto Mays I.
Natália Carolina De Almeida Silva
Doutora em Recursos Genéticos Vegetais. Professora da UFSC e pesquisadora do
NEABio/UFSC
[email protected]
Juliana Bernardi Ogliari
Doutora em Genética e Melhoramento de Plantas. Professora da UFSC e coordenadora do NEABio/UFSC
[email protected]; www.neabio.wix/ufscneabio
Referências Bibliográficas:
ALVES, P.A.; MATTEI, L.F. Migrações no oeste catarinense: história e elementos explicativos. 2006. Disponível em: <http://www.abep.nepo.unicamp.br/encon-tro2006/docspdf/ABEP2006_598.pdf/>. Acesso em: 26 novembro 2014.
ALVES, R. A pipoca. In: ______. O amor que acende a lua. Campinas: Papirus, 1999.
BRIEGER, F.G.; GURGEL, J.T.A.; PATERNIANI, E.; BLUMENSCHEIN, A.; ALLEO- NI, M.R. Races of maize in Brazil and other Eastern South American countries. Washington, D.C.: NAS-NRC, 1958.
CANCI, A.; VOGT, G.A.; CANCI, I.J. A diversidade das espécies crioulas em Anchieta–SC. Diagnóstico, resultados de pesquisa e outros apontamentos para a conservação da agrobiodiversidade. São Miguel do Oeste: McLee, 2004. 112 p.
DA SILVEIRA, R.P Variedades crioulas de tomate conservadas por camponeses no município de Anchieta, oeste de Santa Catarina. 2015. 168 p. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
OSÓRIO, G. T. 2015. Diversidade de espécies e variedades crioulas no oeste catarinense: um estudo a partir de alface e radice em Anchieta e Guaraciaba. 2015. 117 p. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
PATERNIANI, E.; GOODMAN, M.M. Races of Maize in Brazil and Adjacent Areas. Cidade do México: CIMMYT, 1977.
SILVA, N.C. de A. Conservação, diversidade e distribuição de variedades locais de milho e seus parentes silvestres no extremo oeste de Santa Catarina, Sul do Brasil. 2015. 236 p. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis.
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Revista V12N4 – Milho pipoca: mulheres agricultoras conectando o passado e o presente no Extremo Oeste de Santa Catarina