Sarah Nischalke
Jovens dos lugares mais remotos da cadeia de montanhas do Himalaia estão deixando suas casas em busca de oportunidades de renda. Essa tendência migratória tem sido acentuada pelo aumento de mobilidade e acesso à informação, assim como pelos efeitos das mudanças climáticas, incluindo a intensificação de enchentes e de períodos de seca. A agricultura dependente de chuva na região é afetada pelas secas e pela crescente irregularidade das chuvas. Enchentes carregam grande quantidade de sedimentos, cobrindo e arrasando campos cultivados, destruindo a produção de alimentos e sementes e matando o gado. Nessas condições, muitas famílias deixaram de considerar a agricultura como uma atividade viável. Assim, para aqueles cuja principal habilidade é o trabalho agrícola, migrar parece ser a melhor opção. Quando os homens perdem o interesse na agricultura e partem, não só abandonam os estabelecimentos agrícolas, mas também deixam suas famílias para trás. As mulheres são, portanto, confrontadas com o desafio de produzir alimentos sem contar com a força de trabalho de seus maridos. Este artigo descreve a capacidade inovadora das mulheres, não só para se adaptarem a contextos de constantes mudanças, mas também para impulsionarem mudanças sociais positivas por meio da Agroecologia.
Tradicionalmente, tanto as mulheres como os homens contribuíram para moldar a forma como a agricultura é praticada no Himalaia. Os homens decidiam sobre as culturas comerciais e as criações e determinavam as inovações implantadas em suas unidades de produção. Às mulheres cabiam as decisões sobre as culturas destinadas ao consumo das famílias, como os cultivos das hortas e a criação de pequenos animais. Elas não têm permissão para arar a terra, mas realizam outros trabalhos, como o plantio, a capina ou a coleta de lenha e de forragem.
ENFRENTANDO EXTREMOS CLIMÁTICOS
A migração masculina desafia as mulheres a realizar tarefas que são tradicionalmente atribuídas aos homens, tais como a aração. As remessas de dinheiro enviadas por eles muitas vezes não são suficientes para que as mulheres possam contratar trabalhadores e compensar a falta da força de trabalho do marido no estabelecimento agrícola. Muitas estabelecem arranjos de parceria, enquanto outras abandonam a terra e tentam encontrar empregos não agrícolas para poder comprar os seus alimentos básicos. Há ainda raríssimos casos no Nepal de mulheres que vêm transpondo fronteiras culturais e aprendendo a arar a terra, podendo ser vistas conduzindo seus dois bois pelos campos.
Além do aumento da carga de trabalho pela ausência dos homens, as mulheres têm de lidar com desastres provocados pelas mudanças climáticas, muitas vezes sem estar preparadas. Tal situação é especialmente difícil para elas, uma vez que as mulheres não têm o mesmo acesso aos mercados que os homens. Além disso, não contam com serviços de extensão ou com fontes alternativas de renda que poderiam ajudá-las a enfrentar os extremos climáticos. Seu acesso a essas alternativas é mais restrito devido à limitada mobilidade social das mulheres e a outras restrições de ordem cultural. Uma pesquisa de campo conduzida recentemente identificou exemplos interessantes na região, mostrando como as mulheres que enfrentam as instabilidades climáticas e vivem em locais de elevada migração masculina desenvolvem novas práticas agrícolas, impulsionam economias alternativas e criam novos mercados. A seguir, três exemplos da índia, do Nepal e da China.
COMPARTILHANDO RECURSOS EM ASSAM, REGIÃO NORDESTE DA ÍNDIA
No distrito de Tinsukia, às margens do rio Brahmaputra, na Índia, as enchentes anuais prejudicam regularmente as culturas agrícolas. Os agricultores conseguiram se adaptar às enchentes por meio da diversificação de lavouras e criações, bem como por meio do estabelecimento do regime de trabalho em parceria. No entanto, em 2012, uma grande enchente causou danos extraordinários a infraestruturas, gado, culturas e terras agrícolas. Muitas famílias que relataram ter suas terras soterradas avaliaram que não poderiam voltar a cultivá-las nos próximos dois a cinco anos.
A resposta das mulheres à enchente foi a adoção de um sistema chamado bhagi, que incluía a partilha de pequenos animais, de habilidades artesanais e de terras, ao estabelecerem arranjos de produção em regime de parceria. Por exemplo, uma família empresta um casal de aves a seus vizinhos, que assumem a responsabilidade de cuidar dos animais e se comprometem a dividir igualmente as crias que vierem a nascer. Outros arranjos similares foram estabelecidos. Algumas mulheres compartilham seus conhecimentos de tecelagem em troca de material. Outras se envolvem em arranjos de meação, por meio dos quais a família proprietária de terras se encarrega em fornecer os insumos e irrigação, enquanto a outra família fornece a mão de obra. A colheita é então dividida em partes iguais entre as duas famílias.
Dessa forma, as mulheres conseguem aliviar a sua carga adicional de responsabilidades e trabalho provocada pelas enchentes e ainda garantem o bem-estar de suas famílias. Em famílias de migrantes, nas quais as remessas de dinheiro dos homens não são suficientes para compensar a falta de mão de obra no estabelecimento agrícola, tais arranjos tornaram-se extremamente importantes.
INTRODUZINDO ÁRVORES FRUTÍFERAS NA REGIÃO CENTRAL DO NEPAL
No distrito de Kavre, no Nepal, onde houve grande migração masculina e os padrões de chuva são irregulares, os agricultores fundaram cooperativas para facilitar a produção orgânica de vegetais e a captação da água das chuvas. Essa iniciativa recebeu o apoio do centro de formação Alternativas Agrícolas Adequadas (em tradução livre). A produção era comprada a preços fixos e vendida em mercados de Katmandu.
No entanto, devido ao aumento do número de domicílios sem homens chefes de família, o centro de treinamento ampliou suas atividades, passando a promover a introdução de árvores frutíferas e de nozes como amêndoa ou macadâmia, que exigem menos água do que vegetais. O trabalho foi acompanhado por capacitações em agricultura biointensiva, assistência técnica e extensão rural a comunidades locais e pesquisas sobre novas variedades que poderiam se adequar à realidade do Nepal.
Muitas mulheres ficaram motivadas a plantar árvores frutíferas para aumentar sua renda e garantir sua subsistência, já que nem sempre podiam contar com as remessas de seus maridos ou filhos. No entanto, havia dois grandes obstáculos. Em primeiro lugar, o investimento inicial para o plantio de árvores é alto e leva vários anos até gerar resultados e renda. Em segundo lugar, alguns anciãos da região acreditavam que as árvores não deveriam ser transplantadas de um lugar para outro, o que representava uma barreira cultural e social para a inovação. No entanto, algumas famílias conseguiram convencer os mais velhos e agora estão experimentando as variedades de árvores que poderão constituir uma nova fonte de renda para garantir a segurança alimentar das famílias, mesmo sob um clima hostil.
CULTIVANDO ERVAS NA PROVÍNCIA DE YUNNAN, NA CHINA
Do outro lado do Himalaia, na província de Yunnan, na China, a seca é um dos principais problemas enfrentados pelas famílias agricultoras. A poucas horas de Kunming, capital da província, está a pequena aldeia de Weng Mu, que é dominada pela etnia Yi, uma das muitas minorias étnicas de Yunnan. Nessa aldeia, a seca prejudicou a produção de culturas de trigo, milho e batata. Muitas mulheres idosas, encorajadas pela instalação de uma pequena indústria de processamento de ervas medicinais, iniciaram a plantação de maca (Lepidium meyenii) como uma nova fonte de renda. A erva é usada para fins culinários e medicinais, produzindo efeitos energéticos, revigorantes e de aumento da fertilidade.
Essas mulheres vêm cultivando maca há dois ou três anos e, em alguns casos, a planta medicinal chega a ocupar metade de suas terras. A maca não só tem um bom preço de mercado, como também exige poucos cuidados, além de ser mais resistente ao estresse hídrico. As mulheres adquirem as sementes de pequenos bancos de sementes ou por meio de trocas com outras famílias da região. Apesar da maior dependência dos mercados, elas estão orgulhosas por terem desencadeado mudanças nas práticas agrícolas e serem capazes de sustentar suas famílias.
MULHERES: INOVADORAS INATAS
Esses exemplos mostram experiências bem-sucedidas de mulheres lidando com extremos climáticos e com a migração masculina. Ao mesmo tempo, elas conseguem aumentar o seu grau de autonomia, reduzir a carga de trabalho árduo e garantir a segurança alimentar e nutricional de suas famílias. Essas experiências não só revelam que as mulheres são capazes de desenvolver estratégias de enfrentamento de cenários adversos, mas também evidenciam que são inovadoras inatas. Elas começam a experimentar e apostar em novas formas de agricultura quando colocadas contra a parede por contextos de mudanças climáticas e de migração. Essas inovações às vezes implicam romper barreiras culturais, como no caso do Nepal, sinalizando que as relações de gênero estão mudando como parte da transformação social na região.
De modo geral, no entanto, as mulheres não conseguiram muitos avanços no que diz respeito às relações de poder. As decisões sobre o manejo agrícola, as culturas comerciais e forrageiras ou as criações ainda são tomadas principalmente por homens (mesmo que à distância ou por outros homens da família). Essas decisões são muitas vezes tomadas com base apenas em considerações de ordem econômica, enquanto as mulheres tendem a levar em conta fatores sociais, culturais, nutricionais, entre outros. Apesar desse quadro, quanto mais os papéis de gênero mudam, mais as mulheres ocupam novos espaços e criam oportunidades, tornando-se protagonistas de práticas inovadoras e superando passo a passo os desafios.
Sarah Marie Nischalke
Pesquisadora Sênior do Centro de Pesquisa para o Desenvolvimento, em Bonn, Alemanha
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Revista V12N4 – Mulheres impulsionam economias alternativas no Himalaia