Ana Paula Lopes Ferreira e Emma Siliprandi
Este texto tem como base uma investigação feita junto a agricultoras acompanhadas pela Casa da Mulher do Nordeste (CMN) no Sertão do Pajeú em Pernambuco. Ressalta a importância da dimensão econômica nos trabalhos de organização dessas mulheres, em especial porque, dentro da CMN, o empoderamento econômico é entendido como o primeiro passo para a construção de sua autonomia e superação de situações de violência.
Assim como a maioria das mulheres rurais, as agricultoras do Pajeú, em geral, enfrentam um contexto de relações de gênero desfavoráveis. Mesmo assim, vêm demonstrando força em sua auto-organização e reivindicações por direitos em várias frentes, como proteção social ao trabalho, crédito, assistência técnica, documentação, políticas de saúde e de combate à violência contra a mulher. Essas práticas demonstram a capacidade de resiliência dessas mulheres, a despeito de todas as adversidades de suas duras rotinas.
Envolvidas em um cenário de lutas no Pajeú, elas vêm experimentando melhorias em suas vidas. Essas conquistas se devem, em parte, ao acesso, nos últimos 12 anos, a algumas políticas públicas, como o Programa Bolsa Família, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), mas também devem ser atribuídas ao seu envolvimento nas ações desenvolvidas pela Casa da Mulher do Nordeste.
A IMPORTÂNCIA DA DIMENSÃO ECONÔMICA
A oportunidade de participar em atividades econômicas, como feiras, mercados locais e institucionais, a exemplo do PAA e do Pnae, é muito relevante para o processo de empoderamento das mulheres rurais do Pajeú. Dessa forma, muitas delas passaram a ter uma renda e uma inserção em espaços públicos que antes lhes pareciam inatingíveis. Além disso, a possibilidade de ter autonomia econômica abriu e continua abrindo caminho para o alcance de outras autonomias, como a política.
O ACESSO AO DINHEIRO
A frase pouca coisa na vida é pior do que pedir dinheiro a homem é comum na maioria das conversas com as agricultoras do Pajeú. Para elas, a situação ideal é quando podem gerir seus próprios recursos financeiros, escolhendo livremente a forma como irão gastá-los.
Ao sentir que existe a possibilidade de sair da condição de subordinação financeira, as mulheres não se importam, de imediato, com o valor monetário desse dinheiro, se é muito ou pouco. O que importa são os outros valores que o dinheiro traz para a vida delas, como a liberdade. Para elas, não precisar mais pedir dinheiro ao marido (ou pelo menos diminuir essa necessidade) é uma conquista importante e incomensurável, conforme explicitado no depoimento a seguir.
“Nunca vou esquecer do tempo que comecei a ter meu dinheiro. Eu não sabia o valor das notas, nem sabia o quanto era aquilo que tinha na minha mão. Mas tudo bem, fui aprendendo aos pouquinhos. Ficava mesmo era animada porque passei a ter uma carteira com dinheiro e podia gastar com as coisinhas que eu achava importantes pro meu filho, pra mim, pra minha casa, sem precisar mais pedir pro homem. Eles pensam que a mulher gosta de gastar dinheiro à toa. Nunca tinha me sentido tão livre (agricultora do Pajeú).”
O sentimento de liberdade também é experimentado pela maioria das mulheres entrevistadas quando deixam de ouvir perguntas que as faziam se sentir parecidas com crianças ou pessoas sem a menor responsabilidade: Você vai usar esse dinheiro pra quê? Pra que vai comprar isso? Cadê o dinheiro que te dei? Já tá precisando de dinheiro novamente? Elas relatam essas experiências com indignação: Não depender de si própria é muito ruim.
Há depoimentos de agricultoras que viveram anos sem saber nem mesmo diferenciar as cédulas de dinheiro e não se sentiam capazes de reverter a situação de total subordinação econômica. Não tinham a compreensão de que trabalhavam tanto quanto os homens e que, portanto, o dinheiro produzido na propriedade também era seu.
As mulheres apontam que o crescimento da renda e da participação nos espaços políticos beneficia não só a sua vida, como a de suas famílias. Segundo elas, a partir do momento em que vivem numa condição melhor, passam a desejar o melhor para as pessoas ao seu redor, lutando também pelo desenvolvimento de seus filhos e marido.
Todas relatam que, ao ter acesso ao dinheiro, além de gastar com artigos pessoais e para seus filhos, contribuem com as despesas da casa, algumas das quais, segundo elas, os homens têm dificuldade de enxergar, como contas de celulares e de energia elétrica, manutenção dos freezers, contribuições ao Sindicato de Trabalhadores Rurais (STR) e à Associação e uma série de outros gastos. Essa participação nos custos, consequentemente, melhorou a relação com seus maridos, que começaram a olhar para elas de maneira diferente, passando a valorizá-las mais. As mulheres afirmam que até as brigas diminuem quando passam a ter condições de ajudar os maridos: Ao podermos até dar um dinheiro nosso pra eles, tudo fica mais tranquilo. Para elas, o acesso ao dinheiro permite que se sintam vivenciando uma verdadeira relação de parceria. A melhoria na relação é apontada como um fato muito importante, que acaba trazendo benefícios para sua vida como um todo.
As agricultoras ressaltam que o trabalho da CMN nas comunidades fortalece a autonomia econômica das mulheres. Afirmam que, mesmo aquelas que não participam diretamente das ações da CMN, ao conversarem com as que participam, têm a consciência de que também devem se envolver na administração do dinheiro da família.
As mulheres afirmam ainda que a CMN despertou nelas o desejo e a certeza de que poderiam ter e administrar seu próprio dinheiro, o que mudou a visão que tinham delas mesmas (autoestima) e a relação com suas famílias. Uma mirando-se no exemplo da outra gerou um efeito cascata, que acabou fortalecendo todas. Com a proximidade da cidade e a dificuldade na agricultura devido à seca, algumas trabalham como domésticas. No entanto, elas afirmam que a maio – ria das mulheres nas comunidades, seja trabalhando como doméstica, na produção da horta, na criação de galinhas, no beneficiamento de frutas ou até mesmo administrando o dinheiro que recebem do Programa Bolsa família, conseguem ter sua própria renda. Segundo elas, antes os homens administravam todo o dinheiro da casa, mas agora não.
“Nas reuniões da CMN sempre somos orientadas a ter nosso próprio dinheiro. Estudamos e entendemos que as mulheres têm medo de mexer em dinheiro por falta de costume. Mas a gente consegue. E não entregamos mais o dinheiro nas mãos dos homens, não. Começamos também a fazer sabão, água sanitária, a pasta de ariar alumínio. Eu oriento todas as mulheres para sempre guardar um pouco do dinheiro para poder comprar material, sem precisar pedir pra ninguém (agricultora do Pajeú).”
Percebe-se, porém, que o enfrentamento dessas questões faz aflorar uma preocupação latente de que o empoderamento gerado pelo acesso ao dinheiro sirva para subverter as relações de poder dentro da própria família. Afinal, a mudança de postura das próprias mulheres significa a quebra de hierarquias historicamente estabelecidas e o compartilhamento das decisões familiares.
ACESSO AO CRÉDITO
Dada a invisibilidade do trabalho reprodutivo no cotidiano da unidade familiar, o acesso ao crédito tem grande importância porque pode favorecer a criação de atividades produtivas protagonizadas pelas próprias mulheres, seja individual ou coletivamente. Nesse sentido, abre um caminho para o empoderamento e a autonomia econômica das agricultoras, possibilitando que elas contribuam efetivamente para a renda familiar, o que, consequentemente, permite também um aumento da participação em espaços públicos e políticos.
Se, por um lado, o acesso ao crédito público representa a possibilidade de mudanças positivas para as mulheres, por outro, implica ônus e responsabilidades a mais a serem assumidas por elas. Para que se possa desenvolver mecanismos de crédito dentro de uma perspectiva de construção de autonomia para as mulheres, é preciso entender, em primeiro lugar, a relação com as entidades financeiras. Nesse sentido, as organizações da agricultura familiar vêm se empenhando em garantir que os avanços institucionais e legais obtidos, fruto das reivindicações do movimento de mulheres, venham gerar resultados concretos na vida das mulheres e de suas famílias.
Essa preocupação é relevante porque, embora existam políticas governamentais de acesso ao crédito, é bastante comum ouvirmos agricultores e agricultoras familiares do Sertão do Pajeú dizer que não gostam de ficar devendo dinheiro a ninguém, principalmente ao banco ou que dever é a pior coisa do mundo. Percebe-se, assim, que esses homens e mulheres são prudentes e até avessos a se endividar com os bancos. Porém, a situação é ainda mais grave no caso das mulheres, porque, além do medo natural de não conseguirem gerir a dívida e honrar o compromisso, elas se sentem incapazes de definir estratégias de planejamento para pagar as parcelas e de entender as regras e o funcionamento dos mecanismos de crédito. Dizem: não entendemos nada disso; isso é coisa para a cabeça dos homens; eles é que conseguem entender e lidar com essas coisas de banco. Algumas chegam a expressar que são menos inteligentes que os homens.
Ao conversar sobre o acesso ao crédito público, as mulheres entrevistadas se reportam com muita frequência a dois sentimentos contrastantes: medo e coragem. Umas dizem que sentiam medo de várias coisas, da ida ao banco, de como proceder para solicitar o crédito, de como seriam recebidas, de serem ignoradas, de terem seu pedido recusado. Outras falam que foram ao banco movidas por uma coragem, que lhes deu força para falar com o gerente. Há também quem admita que levou muitos anos para criar coragem para enfrentar o banco. Ou seja, ir ao banco, analisar as linhas de crédito existentes, escolher a linha mais conveniente e dialogar com o gerente não é uma situação tranquila para as mulheres. Segundo elas, precisa ter coragem para deixar o medo de lado.
Cabe ressaltar que a dificuldade para acessar o crédito público é um problema para as mulheres rurais como um todo. Corrobora para isso o fato de muitos gerentes ainda desconhecerem o funcionamento de linhas de crédito destinadas para a mulher, como o Pronaf Mulher, e acabam desestimulando as mulheres a acessar essa e outras modalidades.
Assim, mesmo existindo uma linha de crédito específica para as mulheres, elas continuam tendo menos facilidade que os homens para acessar esses recursos públicos. Muitas vezes, desde que chegam ao banco, as mulheres são desestimuladas a usar o crédito no que querem. Por exemplo, uma agricultora quer adquirir materiais necessários para fazer a instalação de um galinheiro, mas os gestores bancários são acostumados a liberar crédito apenas para a compra de cabeças de gado e rolos de arame para fazer cerca. Tentam então convencê-la de que a instalação do galinheiro não vai reverter em dinheiro para que ela consiga pagar sua dívida. Outras vezes, por simples desconhecimento do funcionamento ou até por má fé, o gerente afirma que o Pronaf Mulher só existe no papel ou que não está disponível naquele município. Dessa forma, muitas mulheres que procuram o banco têm histórias negativas para contar, como a relatada a seguir:
“As mulheres da minha comunidade já acessaram, mas quase todas têm experiências um pouco difíceis com o banco. Eu já acessei para comprar gado. Paguei antes da data limite. E depois fui novamente ao banco para acessar o crédito pela segunda vez. Dessa vez, o banco não liberou, alegou que minha terra era pequena para tal empreendimento. Me senti triste e envergonhada. Tentei uma terceira vez para comprar freezer para armazenar as polpas que vendo, e mais uma vez não tive a autorização do banco. Agora tomei a decisão que nunca mais tentarei acessar créditos. A gente se sente humilhada com decisões como essa por parte dos bancos. (Agricultora assessorada pelo Centro Sabiá na comunidade Carro Quebrado).”
Além das dificuldades relacionadas ao banco, outro impedimento para a obtenção do crédito por parte das mulheres é o comportamento de seus maridos. Algumas contam que ainda hoje existem muitos casos em que a mulher consegue obter o crédito para seus projetos, como comprar pequenos animais ou investir em sua horta, mas acaba entregando o recurso nas mãos de seu marido, que usa o dinheiro para o que ele quer.
“Aqui na minha comunidade, elas faziam o Pronaf em nome da mulher, mas era para o homem comprar uma junta de bois, ou até uma moto, e ficava a responsabilidade nas costas da mulher pra pagar a dívida. A gente sabe que uma moto não paga dívida de um projeto. E muitos ainda hoje fazem isso. Mas se a mulher fizer o projeto para comprar a junta de bois, compra os bois e daqui a dois anos ela tem o dinheiro para pagar. Ela vai se organizando com o que ela se comprometeu. E muitos homens não pensam desse jeito, ah, é projeto a fundo perdido (Agricultora assessorada pelo Centro Sabiá na comunidade de Pereiros).”
A IMPORTÂNCIA DE UMA ABORDAGEM FEMINISTA
A mulher agricultora sofre uma dupla subjugação perante a sociedade brasileira. Primeiro, por fazer parte de uma classe de trabalhadores pouca valorizada no país, segundo, pelo simples fato de ser mulher em um contexto em que o machismo predomina.
Ao longo dos últimos 30 anos, a Agroecologia vem demonstrando potencial para abrir espaços para que as mulheres agricultoras enfrentem sua condição de vulnerabilidade e conquistem mais poder nas esferas pessoal, produtiva, familiar e política. Todavia, o trabalho na perspectiva agroecológica, por si só, não é suficiente para que a desvalorização e a invisibilidade das mulheres sejam devidamente problematizadas. O diálogo entre as perspectivas agroecológicas e feministas é um importante caminho para o enfrentamento político de alguns dos dilemas vivenciados pelas mulheres no meio rural.
O engajamento de organizações feministas na construção do campo agroecológico tem contribuído para a ampliação de seu alcance para além das questões tecnológicas e ambientais, ressaltando sua dimensão social e de equidade de gênero. Ao mesmo tempo, as organizações feministas são influenciadas pela discussão sobre sustentabilidade ambiental trazida pela Agroecologia, ampliando seus discursos e práticas nesse campo.
Nessa convergência entre o feminismo e a Agroecologia, por- tanto, as mulheres encontraram espaços para a desconstrução das bases insustentáveis do modelo de poder instituído, não somente do ponto de vista ecológico e político, mas também social, incluindo a busca da equidade nas relações de gênero.
É recorrente, nas organizações mistas, o discurso sobre uma falta de preparo para o trabalho com gênero, bem como a justificativa de que há o receio de que esse tipo de trabalho possa ser desestruturador das famílias, por ser um tema polêmico, que pode causar desavenças no seio familiar. Entretanto, é importante ressaltar que essas mesmas organizações são fortalecidas ao terem posicionamentos claros sobre outras questões ainda polêmicas e difusas para o conjunto da sociedade, porém relevantes na perspectiva agroecológica, tais como: o uso de insumos químicos, a forma de mercantilização da produção, a importância política das feiras agroecológicas, os riscos dos transgênicos, a transposição do Rio São Francisco, etc. Muitas organizações ainda são reticentes em trabalhar a Agroecologia numa perspectiva transformadora das relações sociais de gênero, por estarem imersas numa cultura patriarcal em que a maioria das mulheres é subordinada, subjugada e dominada. Dessa forma, é fundamental que as organizações agroecológicas, feministas ou não, encarem o desafio de entender e trabalhar numa perspectiva mais inclusiva, de combate às desigualdades de poder enfrentadas pelas mulheres dentro da sociedade.
No caso do Sertão do Pajeú, essa transformação social vem ocorrendo pela inclusão econômica das mulheres agricultoras, gerando autonomia e maior participação em diversos espaços no âmbito público e privado.
Ana Paula Lopes Ferreira
coordenadora da área de Direito das Mulheres da Actionaid Brasil
doutora pela da Universidade de Córdoba, Espanha
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Emma Siliprandi
doutora em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília (UNB) e consultora do Escritório Regional da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação para a América latina e o Caribe (RLC/FAO)
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Revista V12N4 – A importância da dimensão econômica no trabalho organizativo com mulheres rurais do Sertão do Pajeú (PE)