Roberto Malvezzi (Gogó)
A chamada crise da água se espalha por todo o globo terrestre, manifestando-se de múltiplas formas em diversos lugares. Pode haver seca em algum ponto da África ou do Brasil, enchentes em algum lugar da Ásia ou ainda do Brasil, poluição por diversas razões em qualquer lugar do mundo, controle das fontes e mananciais por empresas do ramo, assim por diante.
O fato é que ainda hoje bilhões de pessoas ao redor do mundo têm dificuldade para acessar um simples copo d’água com qualidade para saciar a sua sede. Muito mais para sua higiene pessoal, ou uso doméstico e, sobretudo, para garantir a produção dos alimentos básicos.
Por outro lado, a apropriação da água em todo o mundo gera lucros fabulosos para empresas que já conseguiram fazer dela uma mercadoria, seja por meio de serviços de abastecimento urbano, da água engarrafada ou até do mercado de outorgas de água, como já acontece em vários países.
O desdobramento concreto é que a água, antes considerada um bem abundante e sem valor monetário, agora está atrelada a um discurso em que escassez, mercantilização, privatização e tantos outros termos ligados ao ideário neoliberal se encaixam como luva quando nos referimos à água.
Esse discurso não passa despercebido e suscita reações no mundo inteiro. As múltiplas interfaces da água, seus múltiplos usos, seus múltiplos valores, fazem com que grande parte da sociedade humana –principalmente igrejas, ONGs, sindicatos, defensores dos direitos humanos, etc. – considere-a como um bem essencial a todas as formas de vida, um patrimônio de todos os seres vivos e um direito humano fundamental. Portanto, não deve estar sujeita às regras do mercado e deve permanecer como um bem público.
O que precisamos captar nos detalhes, entretanto, é que a chamada crise da água é umas das expressões – uma das mais graves – da chamada crise civilizacional, em que a mercantilização e a exploração de todas as dimensões da vida – e de seres não vivos – ganham contornos planetários na chamada globalização. A chamada crise da água não está desvinculada da devastação florestal, da erosão da biodiversidade, do empobrecimento dos solos, da fome, da sede e da miséria social que se alastra pelo mundo. Ainda mais, está intimamente conectada com as mudanças climáticas, que alteram o ciclo das águas em toda a Terra.
Portanto, para entendermos o processo devastador das águas, precisamos situá-lo no atual paradigma de civilização que é em si mesmo devastador e, assim, buscar – ao menos enxergar – o que setores da humanidade já vêm fazendo para construir novos paradigmas civilizacionais, mais justos, mais sustentáveis, respeitando todos os ciclos da natureza, inclusive o ciclo das águas. Não teremos um novo paradigma de manejo das águas fora de novos paradigmas civilizacionais que urgem, mas ainda não encontraram a possibilidade de real implementação.
MÚLTIPLAS EXPRESSÕES DA CRISE CIVILIZACIONAL
Pensadores, setores religiosos, militantes sociais assumiram a compreensão de que estamos atravessando uma crise civilizacional. Portanto, não estamos apenas numa época cheia de mudanças, mas numa mudança de época.
Essa expressão significa que a humanidade, e também a Terra, serão muito diferentes até o final do século. Novos paradigmas de convivência humana e de convivência com o ambiente surgirão necessariamente, seja por decisão humana, seja pelos impasses criados pelo sistema Terra.
Um dos indicadores sempre considerado é o avanço da técnica e da ciência, sobretudo no mundo da comunicação e da informação, mas também indo desde as conquistas espaciais até o nível micro, como a manipulação de células, genes e até dos átomos, com a nanotecnologia.
Hoje, a internet, as redes sociais, os smartphones nos inserem numa teia global com inúmeras possibilidades e problemas que esse mundo virtual nos oferece. Fala-se já na internet das coisas, que estará nos óculos, relógios, roupas, eletrodomésticos, corpo humano, assim por diante. Não sabemos exatamente onde iremos parar, mas é certo que as mudanças em processo continuarão.
Velhos paradigmas tecnológicos se tornarão peças de museu. O exemplo clássico é o da máquina de escrever superada pelo computador.
Com o avanço da técnica, da ciência, da informação, mudam as culturas e, em seu seio, os valores. O mundo tende à padronização, à homogeneização, pondo em risco culturas e valores locais. Não se sabe se estes desaparecerão ou se simplesmente ficarão sob o silêncio imposto pela cultura de massas hegemonizante.
Os valores que surgem são contraditórios, porque, ao mesmo tempo em que exigem respeito à pluralidade, às diferenças, também tendem ao individualismo, ao subjetivismo, ao desinteresse pelo coletivo e pelos destinos mais amplos da humanidade.
Porém, nesse mesmo contexto, emerge a consciência ecológica global, a com- preensão do sistema Terra, o respeito pelas gerações futuras, assim por diante (LOVELOCK, 2006).
O terceiro fator em mudança é o intrassocial, o mundo da democracia, da política, da economia. Novas tecnologias permitiram o avanço da financeirização global e do poder do mundo especulativo, alavancaram o poder das grandes corporações e já não sabemos exatamente qual será o destino das democracias, dos governos locais e da política tal como ela se estrutura nos tempos atuais.
Por fim, quanto ao ambiente natural, essas novas técnicas permitem avançar sobre as águas, os solos e as florestas, assim como modificar os mecanismos de efeito estufa que regulam o clima no planeta, elevando as temperaturas e, com isso, desequilibrando todo o sistema Terra, sem que saibamos exatamente quais as consequências sobre a vida e, particularmente, a parcela da humanidade mais empobrecida.
Precisamos da consciência clara de que tudo está interligado. A compreensão da própria Terra como um ente semelhante a um ser vivo, que reage para se defender, enfim, a teoria de Gaia, impõe-se cada vez mais pela força dos fatos e da realidade (LOVELOCK, idem).
Entre todos esses fatores, respeitando metodologicamente a complexidade da teia de relações entre seres vivos e não vivos, vamos nos debruçar mais especificamente sobre a realidade brasileira e a questão da água em nosso território.
A QUESTÃO DA ÁGUA NO BRASIL
O Brasil já foi chamado de país das águas –muitos assim ainda o chamam –, por conta de sua imensa malha hidrográfica, sem considerar os aproximadamente 9.200 km costeiros banhados pelo Oceano Atlântico.
Nos tempos mais ufanistas, sempre era relembrada a frase de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal: Nesta terra, em se plantando, tudo dá.
A frase não é exatamente essa, inclusive porque tinha um complemento: Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem (CAMINHA, 1500).
O primeiro Plano Nacional de Recursos Hídricos, elaborado em 2006, registrou que o Brasil detém 13,8% das águas doces do planeta. Portanto, um país com águas abundantes.
Até pouco tempo atrás, nem mesmo a comentada desigualdade de distribuição em território nacional podia servir de pretexto para sua escassez em algum ponto do país. O fato de a região Nordeste ter menos água que outras regiões não podia explicar a condição subumana de sua população. Os reservatórios nordestinos têm capacidade de armazenar 36 bilhões de m de água, suficientes para abastecer toda sua população com tranquilidade caso fossem bem distribuídos. Mesmo em períodos de longas estiagens, como a que atravessamos neste momento, se bem administradas e manejadas, essas águas garantiriam relativa tranquilidade.
Acontece que dados atuais nos causam surpresa e espanto. A Nasa afirmou que o Sudeste brasileiro perdeu cerca de 56 trilhões de litros de água nos últimos anos, enquanto o Nordeste, cerca de 49 trilhões (UOL, 2015). A pergunta inevitável é: o que está acontecendo com o país das águas?
A RUPTURA DO CICLO DAS ÁGUAS BRASILEIRAS
Talvez agora fique mais claro porque a chamada crise da água é parte da chamada crise civilizacional.
Cientistas de várias áreas do conhecimento têm se debruçado sobre essa expansão da crise hídrica em grande parte do território nacional. Agora, além do Nordeste, o Sudeste passa por período de escasseamento da água doce.
A primeira causa estaria na Amazônia. O processo de desmatamento no bioma estaria enfraquecendo a capacidade da floresta de formar o rio aéreo que resulta de sua evapotranspiração e que, empurrado pelos ventos, bate nos Andes, direciona-se para o Sudeste e o Sul, chegando até Buenos Aires e, segundo alguns, até a Patagônia.
Dessa forma, a origem de parte de nosso ciclo das águas depende da floresta. Sem ela, portanto, rompe-se o ciclo no seu berço.
Outro fator é o desmatamento do Cerrado. Se grande parte de nossas águas se origina na floresta Amazônica, seu depósito se dá exatamente no bioma central do país, por seu solo poroso, formando aquíferos que abastecem grandes bacias brasileiras, como as do Araguaia-Tocantins, Pantanal, Prata e São Francisco.
Porém, com a entrada da agricultura e pecuária intensivas nesse espaço, além da perda de vegetação, o Cerrado está ficando com o solo compactado, não permitindo mais a infiltração normal da água em tempos de chuva para reabastecer os aquíferos. Com a fragilização dos aquíferos, os rios e corpos d’água que deles dependem também perdem volume e perenidade.
O exemplo mais funesto desse processo é o que está ocorrendo com o Rio São Francisco. Como ele depende totalmente das águas que vêm do Cerra- do de Minas Gerais e do Oeste Baiano, para muitos cientistas, a sua extinção é inexorável (FILHO, 2012). Afinal, se o Cerrado não cumprir sua tarefa no ciclo das águas, não há como o São Francisco sobreviver.
Aliam-se a esse fator fundamental os processos de construção de barragens, implantação de mineradoras e geração de toda espécie de dejeto industrial e doméstico. Nossas águas, além de quantidade, perdem qualidade. É o que chamamos de escassez qualitativa. O exemplo maior nesse caso são os rios que cortam a Grande São Paulo.
Toda essa situação tende a se agravar com as mudanças climáticas. A previsão é de que o Nordeste perderá cerca de 20% de sua pluviosidade, enquanto que na região Sul a concentração pluviométrica aumentará, causando enchentes e desastres socioambientais que se tornam cada vez mais frequentes e mais intensos.
NOVOS PARADIGMAS
Cientistas nos dizem que o Brasil deveria promover uma economia de guerra para salvar nossas águas, não só para frear o desmatamento amazônico, mas no sentido de colaborar para que a floresta se recomponha (NOBRE, 2015), valendo-se da sua capacidade de regeneração.
Quanto ao Cerrado, é preciso parar imediatamente seu desmatamento, sob pena de perder sua capacidade armazenadora, colocando em risco todas as nascentes que alimentam as múltiplas bacias brasileiras já citadas. Vale lembrar que, para muitos cientistas, o Cerrado não tem poder de regeneração. Portanto, o que já foi destruído, está definitivamente destruí- do (BARBOSA, 2015).
A Agroecologia pode colaborar – e muito – para essa visão sistêmica, orgânica, holística do ciclo das águas, por sua interação com a vegetação, os solos e a preservação da biodiversidade.
A íntima correlação de todas as interfaces – água, solos, biodiversidade, etc. – pode ser lida aqui no texto síntese de Paulo Petersen e Flávia Londres sobre os conteúdos abordados no Seminário Regional sobre Agroecologia da América Latina e Caribe.
Em um foco mais específico, pode ser lido também o texto sobre a interconexão entre sistemas agroflorestais e as águas, elaborado por Lara Angelo Oliveira e Daniel Firmo Kazay.
O detalhe dos solos, sua importância decisiva, mas raramente lembrada nessas discussões, é abordado no texto de Pablo Tittonell, numa linha hoje considerada avançada – embora antes considerada atrasada – de aprender com a natureza.
Ao mesmo tempo, é fundamental recuperar áreas de encostas, de recarga de aquíferos, matas ciliares, não na medida do novo Código Florestal, mas levando em conta a dinâmica e a demanda próprias de cada um desses entes da natureza.
Precisaríamos ainda de um país saneado, melhorando a qualidade das águas em tantos mananciais brasileiros.
É também necessário replicar por todo o território nacional a tecnologia social de captação de água das chuvas iniciada pela Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA). Essa experiência é relatada aqui na entrevista concedida por Naidson Batista a Rosa Peralta, em toda sua riqueza e detalhe.
Junto a essa política de captação de água das chuvas, é preciso multiplicar ações de reuso da água, novas técnicas de poupança, de gestão, de manejo e, sobretudo, construir uma nova cultura de cuidado e uso dos nossos mananciais.
Nesse sentido, o artigo de Daniel Moss aborda a experiência da cidade de Nova York, meca do capitalismo, mas que soube preservar a qualidade de suas águas em estreita cooperação com produtores rurais de seu entorno.
A sociedade civil consciente, humanitária e democrática precisa manter a luta contra a privatização da água, sob todas as formas. Nesse sentido, pode ser lida aqui a entrevista concedida por Elizabeth Peredo a Henkjan Laats sobre a tentativa de privatização da água em Cochabamba, Bolívia, e toda reação social e política que ela desencadeou.
A tarefa é longa, o desafio é gigantesco, mas, pelas experiências aqui relatadas, sabemos muito bem onde estamos e onde queremos chegar.
Roberto Malvezzi (Gogó)
Graduado em Filosofia, Teologia e Estudos Sociais, colaborador da Comissão Pastoral da Terra (CPT)
[email protected]
Referências Bibliográficas:
BARBOSA, Altair Sales. O Cerrado está extinto e isso leva ao fim dos rios e dos reservatórios de água. Disponível em: <http://www.jornalopcao.com.br/entrevistas/o-cerrado-esta-extinto-e-isso-leva-ao-fim-dos-rios-e-dos-reservatorios-de-agua-16970/>. Acesso em: 7/12/2015. CAMINHA, Pero Vaz de. Carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei de Portugal . 1500. .Disponível em: -<http:// www.memorialdodescobrimento.com.br/lingua_portuguesa/carta-de-pero-vaz-de-caminha-ao-rei-de-portugal/>. Acesso em: 7/12/2015.
FILHO, José Alves de Siqueira (Org.). A flora das caatingas do Rio São Francisco: história natural e conservação. 1.ed. Rio de Janeiro: Andrea Jacobson, 2012.
LOVELOCK, James. A vingança de Gaia. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2006.
NOBRE, Antônio. Novo estudo liga desmatamento da Amazônia à seca no país. Disponível em: <http://g1.glo- bo.com/natureza/noticia/2014/10/novo-estudo-liga-desmatamento-da-amazonia-seca-no-pais.html>. Acesso em: 7/12/2015.
UOL. Sudeste perdeu 56 trilhões de litros de água, mostram dados da NASA. Disponível em: <http://noticias. uol.com.br/ultimas-noticias/reuters/2015/10/30/dados-da-nasa-mostram-que-seca-no-brasil-e-pior-do-que-se-pensava.htm>. Acesso em: 7/12/2015.
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Revista V12N3 – Novos paradigmas para a utilização da água doce