Lara Angelo Oliveira e Daniel Firmo Kazay
“Tá vendo este rio aqui? Ele até secou, de tanto que eu cortei as árvores. Mas há dez anos eu comecei a fazer agrofloresta, e agora esse é o rio que abastece a minha casa”. (Sidinei Maciel, agricultor agroflorestal)
A substituição de florestas nativas por áreas agrícolas e pecuárias impacta profundamente os processos ecológicos de ciclagem de água, energia e nutrientes (ODUM, 2001). Essa alteração na cobertura do solo afeta a drenagem do terreno e, consequentemente, os padrões de infiltração, podendo acarretar o aumento de enchentes e inundações, assim como de erosão e assoreamento dos rios. Além disso, o uso das áreas desmatadas pela agricultura convencional e pela pecuária, principais responsáveis pela substituição de florestas, interrompe a provisão de serviços ambientais proporcionada pela biodiversidade.
Segundo Cláudio de Paula, agricultor agroflorestal de Barra do Turvo (SP), hoje em dia, quando chove, o rio fica só três dias cheio [por causa do desmatamento]. Antigamente, ficava 15 dias. A floresta retém água e vai distribuindo aos pouquinhos, e o rio demora mais a esvaziar. Quando só tem pasto, a água escorre toda de uma vez, leva junto aquela camadinha de solo que estava se formando, assoreia os rios e, algumas horas depois, a água já foi toda embora, e o rio baixa de novo.
A Agroecologia restabelece vínculos orgânicos entre a agricultura e a natureza. Agricultores e agricultoras voltam a assumir a função de manejadores conscientes, harmonizando a produção econômica com as dinâmicas naturais.
Por se assemelharem às florestas naturais, os Sistemas Agroflorestais (SAFs) proveem serviços ambientais importantes, entre eles, a economia hídrica, que resulta, principalmente, da manutenção da cobertura vegetal arbórea, condição que também favorece uma melhor reciclagem de nutrientes nos agroecossistemas.
Levando em conta que a observação local e a valorização dos conhecimentos ligados às práticas tradicionais são fundamentais, este artigo aborda os serviços hidrológicos providos pelos SAFs a partir das percepções de agricultores(as) familiares associados à Cooperafloresta, em Barra do Turvo (SP), e de mensurações realizadas em suas propriedades.
O município localiza-se no Vale do Ribeira, na divisa de São Paulo com o Paraná. A região é caracterizada pela cadeia de montanhas e pela densa rede de drenagem formada por rios encaixados nos fundos de vales, possuindo trechos conserva- dos de Mata Atlântica que contrastam com as extensas áreas desmatadas para o plantio de monoculturas de Pinus sp., Eucalyptus sp., banana e pastagens (KAZAY; OLIVEIRA, 2014).
FAZER AGROFLORESTA
Os ecossistemas florestais são largamente utilizados para a produção agropecuária. No entanto, isso não implica, necessariamente, a transformação das florestas em monoculturas, como frequentemente observamos no Vale do Ribeira. A produção pode ser realizada em agroecossistemas compostos por mosaicos de florestas manejadas, os Sistemas Agroflorestais. Diversos estudos no mundo indicam o sucesso desses sistemas na recuperação de áreas degradadas e pouco produtivas, devolvendo-lhes a biodiversidade e a fertilidade do solo. Os SAFs também têm a capacidade de restabelecer a atividade da fauna nativa e dos ciclos hidrológicos, fazendo com que os olhos d’água voltem a verter nas paisagens manejadas.
A prática realizada e difundida pela Cooperafloresta é inspirada nos ensinamentos do agricultor e pesquisador suíço Ernst Götsch. Segundo sua concepção, a prática agroflorestal fundamenta-se na observação da natureza, buscando reproduzir seus princípios de funcionamento para desenvolver sistemas produtivos ecologicamente parecidos com os ecossistemas naturais dos lugares onde são implantados (GÖTSCH, 1995). O manejo agroflorestal intensifica processos naturais por meio de podas de galhos e cortes de árvores inteiras, que são picados e dispostos sobre a terra para facilitar a decomposição e manter o solo permanentemente coberto. Dessa forma, procura-se manter espécies adequadas a cada etapa da sucessão biológica, aumentando a fertilidade do solo e favorecendo a entrada de luz nos diferentes andares da agrofloresta. O objetivo principal é que cada intervenção de manejo proporcione a revitalização do sistema como um todo.
A percepção dos SAFs, nas palavras dos próprios agricultores agroflorestais da região:
“Para mim, agrofloresta é assim: faz uma carpina seletiva, corta todos os matos, joga no chão e planta tudo junto. Planta feijão, planta de tudo. Até alface, rabanete, cebola, tudo, tudo dá pra plantar junto! Sem queimar, né? Aí planta as árvores, as frutas, e as coisas vão crescendo. Quando você acha que tem coisa demais, você vai lá e raleia um pouquinho. Poda umas, deixa outras crescer. Aí a terra vai tendo adubo. (…) Eu percebo que estou melhorando o solo, percebo que a água aumenta”. (José Moreira, agricultor agroflorestal)
“A principal lógica da agrofloresta é plantar muito mais do que vai mesmo virar planta adulta, por- que semear é o mais fácil. Depois, a gente raleia e poda. Nisso, a gente tá adubando e formando o sistema. A gente já planta bastante porque vai ter formiga, vai ter o manejo pra adubação, e vai sobrar o que é mesmo bom para aquele lugar. De fruta, aqui, plantei banana, abacate, graviola, fruta do conde, cabeludinha, jaca, café… Também plantei muito palmito, cedro, jatobá, cajarana, urucurana, ingá, ipê-roxo, tarumã e canela ama- rela. Foi colocada também muita semente de citrus (laranja, mexerica, lima, limão…), junto com milho e guandu, para fazer enxerto na roça”. (Sidinei Maciel, agricultor agroflorestal)
Em 2014, através da participação na Cooperafloresta, mais de 120 famílias se dedicavam ao plantio agroflorestal e à comercialização coletiva, solidária e certificada suas produções. Essas famílias realizam mutirões semanais em grupos de três a cinco pessoas para cuidar coletivamente do manejo das agroflorestas, além de discutir questões relativas à organização e ao funcionamento da associação.
MEDINDO A ÁGUA
Em dezembro de 2013, foi realizada uma pesquisa de campo nas propriedades de três famílias associadas à Cooperafloresta com o objetivo de avaliar comparativamente a capacidade de infiltração em solos ocupados com agroflorestas e com capoeiras. De acordo com os três proprietários, os usos anteriores das áreas estudadas eram, respectivamente, canavial, bananal e agricultura de coivara para o plantio de milho e feijão. Foram avaliadas áreas de agrofloresta com 5, 10 e 15 anos de idade, e capoeiras entre 10 e 70 anos de idade. Todas as áreas situam-se em encostas, possuem o mesmo tipo de solo, que está coberto por espessa camada de serapilheira composta por troncos, galhos e folhas de árvores em diferentes estágios de decomposição. Esse aporte de cobertura se deve, principalmente, ao manejo de poda realizado no rejuvenescimento do sistema.
Para a coleta de dados sobre as taxas de infiltração, foi empregado o Infiltrômetro de Duplo Anel, um método de simples execução e de baixo custo, embora exija acesso à água e bastante tempo para realização de cada mensuração. Considerando as parcelas avaliadas, identificamos que a média das velocidades de infiltração básica (VIB) era de 13,5 mm/min nas agroflorestas e de 11,4 mm/min nas capoeiras. A pesquisa incorporou também entrevistas semiestruturadas com os agricultores para levantar suas percepções quanto aos efeitos da prática agroflorestal. Essas entrevistas ressaltaram a importância atribuída pelos agricultores à melhoria dos solos, à conservação da água (em quantidade e qualidade), à conservação do ambiente, ao aumento do bem-estar das famílias, ao aumento da produção e ao fortaleci- mento das práticas de trabalho cooperativo e solidário.
“Já estava bem acabada essa terra, só tinha capim colonião, até desisti de fazer uma horta, ah, não tinha como lutar contra ele. Com a agrofloresta, o solo está a cada dia melhor”. (Nardo, Reinaldo Batista Moreira, agricultor agroflorestal)
“Quando se tem uma nascente, tem que reflorestar e cuidar das beiradas, pra conservar ela (…). Tem mais seis vizinhos, que não fazem agrofloresta, mas usam da água desse sítio aqui. Então, eu sou comprometido com essas famílias. (…) Eles estão usando a minha água que tem a agrofloresta nossa por trás”. (Sezefredo Gonçalves, agricultor agroflorestal)
“O sucesso das experiências agroflorestais na região está relacionado, em grande medida, à prática dos mutirões. A gente trabalha na irmandade, cada um produz um pouco, ajudando o outro a produzir, por isso que dá certo”. (Sezefredo Gonçalves, agricultor agroflorestal)
TEM ÁGUA PORQUE TEM GENTE
Como os resultados obtidos nos testes confluíram com as percepções dos agricultores sobre suas áreas de manejo, foi confirmada a hipótese de que as áreas de agrofloresta possuem capacidade de infiltração equivalente ou superior às áreas de capoeira. Nas palavras de Sezefredo, que já sabia que encontraríamos esse resultado, a agrofloresta de 18 anos tá até melhor do que a capoeira de 70 anos, porque aqui (na agrofloresta) foi posto serviço. Olha quanta madeira tem no solo. Concluímos, portanto, que os Sistemas Agroflorestais prestam importantes serviços ambientais de proteção hídrica e é um caminho possível para aliar a produção de alimentos à conservação dos recursos naturais.
Diante do quadro de crise hídrica vivenciado no estado de São Paulo no último ano, as evidências colhidas nessa pesquisa apontam para a necessidade de que políticas e programas públicos valorizem os serviços ambientais prestados pelas agroflorestas, buscando desenhos que incentivem os produtores a optarem por práticas conservacionistas em suas propriedades.
AGRADECIMENTOS
Aos agricultores e agricultoras agroflorestais que dão vida a essa experiência. Em especial a Dolíria, Lucas, Nardo, Sezefredo, Jackson, Pedro Baiano e Maria, cuja colaboração foi fundamental para a execução da pesquisa em campo.
Referências Bibliográficas:
COOPERAFLORESTA. Fazer agrofloresta. Barra do Turvo: Projeto Agroflorestar, 2013. 4 p. (Folder)
GÖTSCH, E. O Renascer da Agricultura. Rio de Janeiro: AS-PTA, 1995. KAZAY, D.F.; OLIVEIRA, L.A. Avaliação da Capacidade de Infiltração e do Pagamento por Serviços Ambientais em Sistemas Agroflorestais Sucessionais: o caso da Cooperafloresta. Projeto de Graduação (Engenharia Ambiental) – Escola Politécnica, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2014.
MURADIAN, R.; CORBERA, E.; PASCUAL, U.; KOSOY, N.; MAY, P.H. Reconciling Theory and Pratice: An alternative conceptual framework for understanding payments for environmental services. Ecological Economics, n. 69, p. 1202-1208. 2010.
ODUM, E.P Fundamentos de Ecologia. 6.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
SILVA, R.O. Educação, ambiente e cooperafloresta: um novo mundo na perspectiva das vozes da floresta. Monografia (Especialista em Educação, Meio Ambiente e Desenvolvimento) –Meio Ambiente e Desenvolvimento, Universidade Federal do Paraná, Curitiba. 2011.
Baixe o artigo completo:
Revista V12N3 – Sistemas agroflorestais e a provisão de serviços hidrológicos em Barra do Turvo (SP)