Juliana Lins
“Para os europeus, [1492] é o ano surpreendente do descobrimento de um novo mundo. Já para os povos ameríndios, é o começo de um holocausto”. (Márcio Souza, 2005, p. 13)
O Brasil conhece pouco sobre a história de seus povos indígenas. À exceção de elementos culturais bem incorporados em nossa língua (como nomes de plantas e animais, e.g., urucum e jabuti) e em nossa gastronomia (e.g., tapioca, farinha e tacacá), o nosso contato cotidiano com a realidade indígena do brasil é muito débil. Quantos sabem que ainda hoje há 178 línguas vivas em nosso país (MOSELEY, 2010)? Quantos sabem que de 90% a 95% da população indígena de todas as Américas foi exterminada com a chegada dos europeus em menos de 100 anos (MANN, 2005)?
Ao nos depararmos com os escritos da Agroecologia em outros países, percebemos quão importantes são os estudos dos sistemas agrícolas nativos (GLIESSMAN, 2009). E no Brasil? Além das espécies domesticadas, como a mandioca, alguns tipos de pimenta, o guaraná e o cupuaçu (CLEMENT, 1999), que legados culturais os povos indígenas deixaram para a construção da Agroecologia?
Este artigo aborda uma das práticas tradicionais de uso e manejo de bens naturais que é pouco conhecida, embora tenha sido adotada há centenas de anos em vastas áreas da Amazônia, deixando marcas na paisagem até os dias de hoje: a terra preta de índio.
AS TERRAS PRETAS DE ÍNDIO
As terras pretas intrigam cientistas dos solos há décadas. São manchas de solos que se depositam acima das matrizes de solos originais, possuindo extensões de um a 350 hectares e chegando a dois metros de profundidade. São muito escuras, bastante férteis – por serem ricas em fósforo, cálcio, magnésio e manganês – e apresentam abundante quantidade de fragmentos de cerâmicas indígenas produzidas há centenas de anos. Por muito tempo, discutiu-se sobre qual a origem dessas manchas de solos. Mas atualmente não há dúvida de que são formações situadas em antigos locais de moradia de po- vos indígenas. Mais do que isso, foram criadas por sociedades complexas, principalmente entre 500 e 2.500 anos atrás. Essa constatação contrasta com a ideia ainda amplamente em voga, mesmo em algumas áreas do meio científico (HECKENBERGER et al., 2007), de que a floresta amazônica é uma vegetação intocada, com esparsas populações indígenas, isoladas, vivendo na Idade da Pedra.
Ainda hoje, a Amazônia mexe com o imaginário das pessoas. Vivem na região cerca de 30 milhões de pessoas (TOLLEFSON, 2013), estando a maior parte concentrada em grandes cidades, como Iquitos, Manaus e Belém. Mas, além das cidades grandes, há muitas pequenas comunidades tradicionais dispersas nas florestas e margens dos rios, tirando seu sustento da pesca, da caça, dos roçados e dos quintais altamente diversificados, com sistemas agrícolas policulturais e itinerantes. Pelo menos 83 espécies domesticadas nativas da região permanecem sendo cultivadas nesses sistemas (CLEMENT, 1999).
Se ninguém tem mais dúvidas de que esses solos são de origem antrópica, a grande questão que permanece é como foram criados. O que se sabe é que sua formação envolvia muito lixo, sobretudo, restos de comida (em um universo onde não havia animais domesticados para se alimentarem das sobras), mas também fezes e fogo. O processo consistia em queima do material em temperaturas relativamente baixas, que, em vez de formar cinzas – altamente lixiviáveis –, produziam carvão, que retém nutrientes, estabiliza a matéria orgânica, aumenta a capacidade de troca catiônica e é resistente à degradação biológica (GLASER; BIRKS, 2012).
Outro aspecto importante, embora menos estudado, refere- se à comunidade de microrganismos presente nesses solos. Acredita-se que os fungos podem ser os principais responsáveis pela durabilidade das terras pretas, junto com muitos tipos de Archaea e bactérias, que não são abundantes em solos adjacentes não antrópicos (GLASER; BIRKS, 2012).
Estudos recentes demonstraram que as capoeiras sobre terras pretas possuem maior número de espécies com algum nível de domesticação e conhecimento botânico tradicional do que as capoeiras presentes em solos não antrópicos (JUNQUEIRA et al., 2010; JUNQUEIRA et al., 2011). Indicam também que os quintais sobre terras pretas estabelecidos em locais que tiveram várias ocupações indígenas no período pré-colombiano são mais diversificados do que os quintais sobre terras pretas que tiveram apenas uma ocupação no passado (LINS et al., 2015). Esses fatos evidenciam que os legados indígenas se mantêm por centenas de anos. As populações tradicionais da Amazônia dão continuidade a esses legados, ao permanecerem usando e manejando essas paisagens.
Considerando o fato de que as terras pretas se mantêm férteis, mesmo se cultivadas por séculos, a compreensão dos processos ecológicos resultantes das práticas ancestrais de manejo é altamente relevante para o desenvolvimento de sistemas agrícolas sustentáveis na Amazônia.
LEGADOS PRÉ-COLOMBIANOS NA PAISAGEM AMAZÔNICA
O acesso e a apropriação pelos povos do presente dos legados antigos na paisagem Amazônica só são possíveis devido a dois fatores: (a) as sociedades pré-colombianas eram muito maiores do que as pessoas normalmente imaginam; (b) a forma que essas sociedades manejavam os solos e as plantas possibilitou a manutenção desses legados. Estudos recentes em arqueologia têm evidenciado sinais da presença de grandes populações na Bacia Amazônica até a chegada dos europeus. Em uma aldeia Kuikuro, no Parque Indígena do Xingu, os indígenas habitam a mesma área de terra preta que seus antepassados de séculos atrás. Escavações encontraram marcas de uma intrincada rede de es- tradas ligando aldeias e vestígios de uma população que deveria ser pelo menos 20 vezes maior que a atual (HECKENBERGER, 2009). Manchas de terra preta (MCMICHAEL, 2014), montículos artificiais, estruturas de guerra em sítios arqueológicos (MORAES; NEVES, 2012), florestas antrópicas (e.g., castanhais, babaçuais) e até mesmo geoglifos (SCHAAN et al., 2007) são elementos na paisagem amazônica que reforçam estimativas populacionais de 6,8 milhões de pessoas antes da presença dos europeus (DENEVAN, 1976). Toda essa gente necessitava produzir alimentos para se sustentar – sem adubo químico, sem agrotóxicos, sem transgênicos –, o que pode suscitar reflexões acerca das muitas formas de relações homem/natureza.
O antropólogo William Balée é um dos responsáveis por uma linha de pesquisa conhecida como Ecologia Histórica, que questiona uma ideia corrente de que a cultura se adapta ao ambiente. Em contraposição, Balée (2006) postula que o que há é uma interpenetração entre essas duas esferas, o que significa que a relação entre natureza e cultura é dialógica, e não dicotômica. Essa interpretação explica o contexto cultural pré-colombiano que levou a floresta amazônica a ser, pelo menos em parte, uma construção humana, ou uma floresta antrópica. Balée (1989) calcula que pelo menos 11,8% da terra firme na Amazônia brasileira é de origem cultural, e há cálculos de que 3,2% da Amazônia é formada por solos antrópicos ou terra preta (MCMICHAEL et al., 2014), o que, para as dimensões amazônicas, representa uma área gigantesca.
Ainda há muito a se descobrir sobre as sociedades pré-colombianas na Amazônia e até mesmo sobre a criação e o manejo das terras pretas. O que já sabemos, entretanto, é suficiente para constatarmos a importância atual das tecnologias tradicionais ancestrais (ALTIERI, 2011). Afinal, é preciso reconhecer que os povos que conviveram/convivem por milhares de anos com a floresta criaram soluções para alimentar suas populações com sistemas de produção que se mantiveram por séculos, sem destruir as condições que os possibilitaram e conservando a base de recursos da qual dependiam (GLIESSMAN, 2009).
Mesmo que as práticas adotadas no passado não possam ser automaticamente reproduzidas através dos tempos, ambientes e culturas (DENEVAN, 1995), certamente a Agroecologia tem grande contribuição a dar, ao sistematizar, desenvolver e atualizar as lições dos povos indígenas para sua aplicação no contexto contemporâneo.
Juliana Lins
Bióloga, Mestra em Botânica e pesquisadora de etnobotânica e domesticação de paisagens pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa)
[email protected]
AGRADECIMENTOS
A autora agradece a colaboração de Charles Clement, Erik Choueri, Helena Lima, Priscila Moreira e das comunidades ribeirinhas que a acolheram durante a realização de suas pesquisas.
Referências Bibliográficas:
ALTIERI, M.A.; NICHOLLS, C.I. O potencial agroecológico dos sistemas agroflorestais na América Latina. Revista Agriculturas, v. 8, n. 2, p. 31-34, 2011.
BALÉE, W. The culture of Amazonian forests. In: POSEY, D.A.; BALÉE, W. (Eds.). Resource management in Amazonia: Indigenous and folk strategies. Advances in Economic Botany, v. 7, p. 1-21, 1989.
BALÉE, W. The Research Program of Historical Ecology. Annual Review of Anthropology, v. 35, p.5.1-5.24, 2006.
CCCCCCC, C.R. 1492 and the loss of Amazonian crop genetic resources. I. The relation between domestication and human population decline. Economic Botany, v. 53, n. 2, p. 188-202, 1999.
DDDDDDD, W. The Aboriginal Population of Amazonia. In: DENEVAN, W. (Ed.) The Native Populations of the Americas before 1492. Madison: University of Winscosin Press, 1976. P. 105-234.
DENEVAN, W. Prehistoric agricultural methods as models for sustainability. Adv Plant Pathol, v. 11, p. 21-43, 1995.
GLASER, B.; BIRK, J.J. State of the scientific knowledge on properties and genesis of Anthropogenic Dark Earths in Central Amazonia (terra preta de índio). Geochimica et Cosmochimica Acta, v. 82, p. 39-51, 2012.
GLIESSMAN, S.R. Agroecologia: processos ecológicos em agricultura sustentável. 4.ed. Porto Alegre: Editora Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2009. 658 p.
HECKENBERGER, M. J. 2009. As cidades perdidas da Amazônia. A floresta tropical amazônica não é tão selvagem quanto parece. Scientific American Brasil, 90. Disponível em: <http://www2.uol.com.br/sciam/reportagens/as_cidades_perdidas_da_amazonia.html>. Acesso em: 25 mai. 2015.
HECKENBERGER, M.J.; Russell, J.C.; TONEY, J.R.; SCH- MIDT, M.J. The legacy of cultural landscapes in the Brazilian Amazon: implications for biodiversity. Phil. Trans. R. Soc. B, v. 362, p. 197-208, 2007.
JUNQUEIRA, A.B.; SHEPARD JR., G.H.; Clement, C.R. Secondary forests on anthropogenic soils in Brazilian Amazonia conserve agrobiodiversity. Biodivers Conserv, v. 19, p. 1933-1961, 2010.
JUNQUEIRA, A.B.; SHEPARD JR., G.H.; CLEMENT, C.R. Soils of the Middle Madeira River: Valuation, Local Knowledge, and Landscape Domestication in Brazilian Amazonia. Economic Botany, v. 65, n. 1, p. 85-99, 2011.
LLLL, J.; LIMA, H.P.; BACCARO, F.B.; KINUPP, V.F.; SHEPARD JR., G.H.; CLEMENT, C.R. Pre-Columbian floristic legacies in modern homegardens of Central Amazonia. PLoS ONE, 2015. (no prelo).
MMMM, C.C. 1491: novas revelações das Américas antes de Colombo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. 471 p.
MCMICHAEL, C.H. et al. Predicting pre-Columbian anthropogenic soils in Amazonia. Proceedings of the Royal Society B -Biological Sciences, v. 281, p. 2013.2475, 2014.
MORAES, C.P.; NEVES, E.G. O Ano 1000: adensamento populacional, interação e conflito na Amazônia Central. Amazônica Revista de Antropologia, v. 4, n. 1, p. 122- 148, 2012.
MOSELEY, C. (Ed.). 2010. Atlas of the World’s Languages in Danger. 3. ed. Paris: UNESCO Publishing, 2010. Disponível em: <http://www.unesco.org/culture/en/endange- redlanguages/atlas>. Acesso em 20 mai. 2015.
PRANCE, G.; NESBITT, M. (Eds.). The cultural history of plants. Nova York: Routledge, 2005. 452 p.
SCHAAN, D. P.; PÄRSSINEN, M.; RANZI, A.; PICCOLI, J.C. Geoglifos da Amazônia Ocidental: evidência de complexidade social entre povos da terra firme. Revista de Arqueologia, v. 20, p. 67-82, 2007.
SOUZA, M. História da Amazônia. Manaus: Valer, 2009. 400 p.
TOLLEFSON, J. Foot prints in the forest. Nature, v. 502, p. 160-162, 2013.
Baixe o artigo completo:
Revista V12N1 – Terra preta de índio: uma lição dos povos pré-colombianos da Amazônia