Conheci Margarida em 1983, durante um seminário organizado pelo CENTRU, dirigido por Manuel da Conceição, líder camponês do Maranhão e realizado em Guarabira (PB), em um local da diocese. Éramos uns 60 participantes, a grande maioria lideranças sindicais ou das oposições sindicais de todo o Nordeste. Estava no mesmo grupo de trabalho de Margarida discutindo a questão da luta pela terra e as formas de produção que viabilizassem a economia camponesa. Eram os primeiros tempos do Projeto Tecnologias Alternativas, hoje a ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA). Margarida era uma militante aguerrida e inteligente, curiosa e interessada nas novidades que eu apresentava sobre o que hoje se conhece como agroecologia. No dia do seu assassinato ela discutiu comigo sobre a necessidade de nos prepararmos para enfrentar a violência dos latifundiários e donos de usinas, se necessário com armas. Então como hoje o risco de vida era um fato do quotidiano de cada militante social, mais ainda nos rincões do Norte e Nordeste onde a lei da selva imperava sem limites.
Ao final dos trabalhos neste segundo dia Margarida decidiu ir dormir em casa para ver como estava seu marido adoentado. Nos despedimos na porta do seminário, no mesmo lugar onde eu estava, duas horas depois, conversando depois do jantar com o presidente do sindicato de São Sebastião do Umbuzeiro, município do extremo oeste da Paraíba, Luiz Silva, e seu filho adolescente. Uma moto chegou em disparada e o piloto saltou gritando: “mataram Margarida”. Mandei-o entrar para avisar os outros e saí direto para Alagoa Grande, num carro dirigido por Luís. Me impressionou a naturalidade com que pai e filho sacaram pistolas 38 de suas capangas e checaram os carregadores, sinal dos tempos perigosos em que vivíamos. Com dois anos de treinamento no Corpo de Fuzileiros Navais eu sabia manejar armas e pedi ao filho do Luís a sua, o que ele aceitou. Partimos voando e em pouco tempo estávamos no município vizinho.
Na porta da casa de Margarida havia uma pequena multidão, mas nenhuma autoridade, embora já tivesse transcorrido mais de uma hora do evento. Interroguei várias pessoas para recolher informações sobre o assassinato, com detalhes sobre os dois matadores (com descrição de aspecto, altura, cor, roupas) e como agiram e o carro que utilizavam (com identificação da marca e placa). Um dos matadores ficou no carro estacionado a 20 metros da porta da casa enquanto o outro foi à porta que tinha a parte superior aberta e chamou por Margarida. Ela veio atender e o assassino tirou de uma sacola um fuzil de cartucho com o cano serrado e disparou quase a queima roupa na cabeça de Margarida. Era um típico ato de um profissional da morte, tanto pelo armamento como pela frieza. Segundo as testemunhas ele saiu andando sem pressa e sem se esconder em direção ao carro e os dois criminosos partiram sem correria nem alarde. Margarida teve o crânio esfacelado pelo disparo e morreu imediatamente.
Saí dali para a delegacia onde os policiais pareciam alheios ao fato e fiz a denúncia cobrando que pedissem imediatamente que as autoridades policiais dos municípios vizinhos fizessem barreiras nas estradas que saíam de Alagoa Grande. Dei uma enquadrada no delegado usando a minha carteira de oficial da marinha de guerra (da reserva, mas ele não reparou) e o susto que levou o fez se mexer, mandando policiais para a casa de Margarida e telefonando para a capital para pedir o cerco. Me parece mais do que claro que havia senão um conluio, pelo menos pouco interesse em fazer alguma coisa.
Quando voltei à casa de Margarida um policial me disse que ninguém tinha visto nada do atentado. Cheguei a falar com um dos meus entrevistados de primeira hora, mas ele negou o que disse antes afirmando que nem estava lá. Era claro que as potenciais testemunhas temiam a polícia tanto quanto os assassinos e não estavam dispostos a se expor.
Nos meses e anos que se seguiram após muitas denuncias e pressões a justiça fechou o caso sem concluir sobre os mandantes. Em Alagoa Grande todo mundo acreditava que a ordem para matar tinha vindo de um usineiro que havia publicamente ameaçado Margarida pela atividade do sindicato nas suas fazendas. O dito acusado era político importante no PMDB, se não me engano o presidente do diretório local e ligado a deputados e senadores da Paraíba. Ficou impune.
Como um poeta já disse há muitos anos: “podem matar algumas flores, mas não podem matar a primavera”. Virou lugar comum, mas segue sendo uma linda imagem poética de forte conteúdo. Margarida está viva nas lutas das mulheres e de todos os homens do campo e a Marcha do dia 13 mostrou a força destas lutas. A brutalidade governamental ou privada que se alastra por todo o país não deve nos fazer lamentar as derrotas, mas aprender com elas e seguir adiante nesta travessia do deserto que mais cedo do que tarde chegará ao seu fim.
Jean Marc
Fundador da AS-PTA
Assista ao vídeo Margarida Sempre Viva