No dia 04 de setembro, em sua sede, no Centro Agroecológico de São Miguel, em Esperança-PB, a AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia, promoveu um debate com parceiros na ação do seu Núcleo de Infância e Educação, como o Polo da Borborema e educadores de escolas do campo da região sobre a sua Política de Proteção às Crianças, Adolescentes e Adultos em Situação de Vulnerabilidade que está em fase de elaboração. Este foi o segundo momento de construção coletiva, que tem contado com a assessoria de Desirée Ruas e Fernanda Clímaco, ambas especialistas na cultura da criança e atuam como consultoras na elaboração da Política.
Desde o ano de 2002, a AS-PTA, em parceria com os 13 Sindicatos de Trabalhadores Rurais que formam o Polo da Borborema e, mais recentemente, com as secretarias de educação dos municípios, realiza a Campanha pelo Fortalecimento da Vida na Agricultura Familiar, que tem como público milhares de crianças, filhos e filhas das famílias agricultoras que participam da dinâmica e do trabalho de promoção da agricultura familiar agroecológica no território da Borborema, no Agreste da Paraíba.
A Campanha tem como principal ação as Cirandas da Borborema, um dia de aprendizagem assentado na ludicidade, que acontecem duas vezes ao ano em escolas do campo, igrejas ou associações comunitárias de mais de 50 localidades rurais nos 13 municípios. O objetivo é trabalhar com as crianças os temas que mobilizam o movimento social da agricultura familiar agroecológica da região, dialogando com os seus saberes e promovendo a sua identidade camponesa.
Em 2019, a instituição e seus parceiros dão um novo passo nesta caminhada com a elaboração de uma Política de Proteção às Crianças, Adolescentes e Adultos em Situação de Vulnerabilidade em conjunto com um Plano de Ação e Cuidado, responsável por traçar estratégias de mobilização e comunicação para a Política, que, por sua vez, tem como objetivos: a) divulgar, promover e garantir os direitos de crianças, adolescentes e adultos em situação de vulnerabilidade; b) definir condutas, procedimentos para a prevenção, o combate e a resposta à situações de violação nos contextos em que a AS-PTA atua; c) promover e fortalecer a escuta de crianças, adolescentes e adultos em situação de vulnerabilidade; d) estimular e fortalecer o combate às violências contra crianças, adolescentes e adultos em situação de vulnerabilidade.
Abuso sexual de crianças e adolescentes
O debate teve início com uma discussão sobre o preocupante problema do abuso sexual de crianças e adolescentes, provocado a partir da exibição do vídeo do canal do Youtube “JoutJout Prazer”, da blogueira Júlia Tolezano. No filme, ela fala sobre os casos de abuso sexual de crianças e adolescentes que acontecem dentro das famílias e como estes não chegam a virar estatísticas para que se tenha a real noção do problema no país e como as crianças se tornam vulneráveis por não compreenderem de fato que determinadas situações são abuso, pois vêm de parentes ou pessoas em quem elas deveriam confiar.
Muitos participantes se emocionaram, ao lembrar de abusos que eles próprios sofreram ou casos que acompanharam de perto. “Nos oito meses em que estive à frente da Secretaria de Ação Social do meu município, acompanhei três casos como estes. Um dos mais chocantes, foi o de um menino estuprado por oito homens. Uma coisa muito grave também nesses casos é a culpabilização da mãe ou da própria criança, que ampliam o sofrimento”, observou Roselita Vitor, liderança do município de Remígio e da Coordenação do Polo da Borborema.
“Na minha condição de gestora escolar, pretendo a partir de agora chamar uma reunião na minha unidade para tratar dessa discussão, pois percebo que muitas vezes o comportamento de algumas crianças muda completamente e nós chamamos a família, mas nem sempre é possível identificar o problema. Sei que pode estar acontecendo uma situação dessas e nós não ficamos sabendo e nem temos como intervir, então esse debate é muito importante”, disse Ozanilda Braga da Costa, diretora da Escola Municipal de Ensino Fundamental José Pereira da Cruz, na Comunidade Olho D’água, município de Solânea.
Eleições dos Conselhos Tutelares
O debate levantou ainda uma discussão sobre a eleição dos novos conselheiros e conselheiras tutelares, previstas para o dia 06 de outubro em todo o país, para um mandato de quatro anos. Assessores técnicos da AS-PTA, lideranças agricultoras e educadores presentes concordaram que é necessário provocar o debate nos municípios sobre o papel do conselho e o perfil das pessoas que vão ocupar as vagas. Cláudia Maria da Silva, do município de Montadas, falou sobre a sua experiência enquanto conselheira tutelar: “A situação é gravíssima, só no meu município esse ano houve 20 casos. Repensei a minha candidatura nesse ano, pois recebi ameaças na época por minha atuação em casos onde crianças abusadas precisaram ser retiradas dos lares onde foram vítimas”, disse.
“A nossa ideia com o vídeo era justamente essa, nos indignar, pois não estamos reunidos aqui à toa. Proteger as crianças é uma obrigação não só da família e do Estado, mas de toda a sociedade. E a gente só age quando se sente incomodado”, comentou Fernanda Clímaco. Em seguida, a consultora apresentou as premissas, princípios e diretrizes que formam a Política de Proteção de Crianças e Adolescentes: “Começamos reconhecendo que as crianças, adolescentes e jovens são sujeitos ativos que aprendem pela relação, pesquisa, experimentação e interação, se comunicando e transformando o mundo. Eles são potentes, capazes e a partir do momento que começamos a enxergá-los dessa forma na nossa abordagem, tudo muda”, disse.
Digo sim ou digo não
Um momento provocador do encontro foi quando os participantes puderam debater sobre possíveis situações de violações de direitos nas ações do Polo da Borborema e da AS-PTA. Organizadas em pequenas tarjetas, as perguntas foram distribuídas entre os presentes: “As crianças começam a brincar de dança da laranja ou da dança do balão. Digo sim ou digo não?” A partir de situações como essa, aprofundou-se a reflexão sobre a conduta dos adultos envolvidos, ao passo em que também se provocava exercitar um novo olhar sobre as crianças e os adolescentes. “Quando passamos a considerar as crianças e os adolescentes como sujeitos de direito, passamos também olhar para eles de forma mais completa. Precisamos considerar que aquela criança tem um corpo, tem desejos e tem direito sobre seu corpo. Será que é confortável para ela o contato da outra pessoa?”, provocou Fernanda Clímaco, durante o debate. Esse exercício coletivo de análise de situações corriqueiras como essa, foi um momento ímpar para a sensibilização dos participantes sobre a necessidade de se construir uma política de proteção com um protocolo claro de ação.
O trabalho continuou com a apresentação das diretrizes da Política em construção: os compromissos, princípios, valores, condutas em situação de risco, um organograma de para consultas e denúncias, além do monitoramento e avaliação da sua implementação. Ao final, como resultado, os participantes foram divididos em três grupos de forma a ser produzida uma carta de intenção assinada pelo conjunto de parceiros com os compromissos assumidos na concretização do Plano de Ação e efetivação da Política.
“Cuidar da infância é, além de uma obrigação constitucional, uma ação ética urgente para toda a sociedade. Assim como a Agroecologia nos convida a mudar os padrões tradicionais que exaurem o solo e contaminam o ambiente, uma cultura de cuidado para com a infância exige rever comportamentos, práticas e discursos. Em uma sociedade envenenada por condutas não saudáveis, violentas, desumanas e artificiais, as crianças nos pedem uma outra realidade. Elas pedem sobretudo atenção em uma realidade que invisibiliza as necessidades de meninos e meninas e não enxerga a infância nos processos decisórios familiares e sociais”, encerra Desirée Ruas um dia intenso de reflexão e de construção de uma nova cultura.