Jean Marc von der Weid
O governo Lula tem divulgado com orgulho os resultados da sua política de apoio à agricultura familiar. Os números frios, de fato, impressionam. O crédito para custeio e investimento foi multiplicado quase sete vezes entre 2002/2003 e 2010/2011, passando de R$ 2,4 bilhões para R$ 16 bilhões. Nesse período, o número de operações de crédito passou de 890 mil para dois milhões. Além disso, criaram-se programas de seguro agrícola, de assistência técnica e extensão rural, de aquisição de ali- mentos, de produção de agrocombustíveis, entre outros. Um amplo leque de políticas de apoio à agricultura familiar foi o saldo dos quase oito anos de governo e seus efeitos foram consideráveis… mas discutíveis.
Houve, por exemplo, aumentos globalmente significativos de produção com consequentes melhoras na renda dos agricultores familiares. Entretanto, essa apreciação global não deve esconder alguns fatos preocupantes. Em primeiro lugar, é perceptível a crescente vulnerabilidade dos sistemas familiares frente a desequilíbrios naturais (variações no clima, surgi- mento de pragas e doenças, etc.). É certo que antes de toma- rem o crédito os agricultores corriam os mesmos riscos, mas estes não estavam diretamente associados a compromissos de natureza financeira. A política de seguro agrícola surgiu justamente para tentar minimizar o risco do financiamento bancário, uma vez que, sem o seguro, os agricultores pensariam duas vezes antes de se endividarem com os bancos. Já os riscos associados aos mercados deveriam ser atenuados pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), mas o programa foi sempre aplicado em escala reduzida, atingindo o seu auge na última safra, com não mais do que 120 mil operações de compra. Mesmo em escala muito inferior ao seu potencial, mobilizando um montante financeiro que corresponde a me- nos de 5% daquele alocado nas operações de crédito, o PAA demonstrou ser um instrumento estratégico para o reforço da agricultura familiar.
Podemos também nos perguntar o que de concreto significou a entrada de mais de um milhão de agricultores familiares no sistema de crédito Pronaf. Pesquisa realizada pelo Ibase no estado do Paraná, assim como observações de representantes de organizações e redes vinculadas à Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) em todo o país, indicam que a expansão do Pronaf funcionou como mola mestra para a disseminação da lógica técnica e econômica do agronegócio em meio às unidades familiares – por isso ganhando o nome de agronegocinho. Isso significou um aumento das áreas de monoculturas, a perda da diversidade dos sistemas produtivos, o emprego crescente de insumos comerciais (sementes, adubos químicos, agrotóxicos) e maquinário e equipamentos motomecanizados. Esse mergulho na modernização agrícola levou os agricultores familiares a uma crescente dependência dos mercados de capitais (bancos) e de mercados de produtos agrícolas dominados por agentes monopolísticos (empresas agroindustriais, grandes atacadistas, etc.).
Tal como vêm sendo concebidas, as políticas de apoio à agricultura familiar acabam sendo convenientes para o grande agronegócio. De um lado, elas não competem com as políticas para a agricultura patronal que alocam recursos financeiros em escalas muito maiores. Por outro, a agricultura familiar modernizada representa um mercado expressivo para a expansão da venda de agrotóxicos, adubos químicos e maquinário. Além disso, vários setores da agricultura familiar assumem funções importantes como produtores de matérias-primas para empresas agroindustriais dos ramos da fumicultura, suinocultura, avicultura, laticínios, papel e celulose, agroenergia, entre outros.
Políticas complementares promovidas pela Secretaria de Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário (SAF/MDA), tais como o seguro agrícola, foram elaboradas a partir da tomada de consciência dessa maior vulnerabilidade a que as famílias agricultoras estavam submetidas. No entanto, apesar da proteção dessas políticas, a expansão do crédito foi acompanhada pelo aumento significativo dos níveis de endividamento e inadimplência da agricultura familiar. Não sem razão, as organizações da Via Campesina, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar do Brasil (Fetraf) têm centrado suas reivindicações este ano na renegociação ou no perdão das dívidas contraídas junto aos bancos. Aliás, esse também é o mote das organizações patronais, com a diferença de que o endividamento da agricultura familiar situa-se em torno dos R$ 25 bilhões, com uma inadimplência da ordem de 4%, enquanto o setor patronal deve cerca de R$ 200 bilhões, com um índice de inadimplência de 13,5%.
Os defensores do agronegócio poderiam argumentar que o que vem ocorrendo com a agricultura familiar está dentro do esperado. Afinal, tanto no Brasil como no mundo inteiro, esse modelo vem se sustentando às custas de pesados apoios públicos na forma de subsídios, barreiras tarifárias, preços garantidos, etc. E, como conclusão, diriam: se é assim que funciona para a agricultura comercial no mundo inteiro, por que não repetir o mesmo com a agricultura familiar no Brasil?
A grande questão, porém, é que esse padrão produtivo é insustentável. Já são bem conhecidos os seus efeitos sobre o esgotamento dos recursos naturais não-renováveis dos quais depende (petróleo, gás, fosfato, potássio), assim como sua ação destrutiva sobre recursos naturais renováveis (solo, água, biodiversidade) e sua contribuição decisiva nas mudanças climáticas globais. Mas essa insustentabilidade não se expressará apenas nos médio e longo prazos. Já há algum tempo, a necessidade de grandes subsídios oferecidos pelo poder público indica que existe algo de errado. Alinhando-se às concepções convencionais dos promotores desse modelo em todo o mundo, as políticas implantadas pela SAF/MDA exerceram importante papel ao sustentar o insustentável. Esse artifício funcionará enquanto houver recursos públicos para manter o modelo ou enquanto a crise do esgotamento dos recursos naturais não inviabilizá-lo por completo. O cresci- mento exponencial dos custos dos adubos químicos nos últimos cinco anos, bem como a disparada dos preços do petróleo em 2008, evidenciaram a vulnerabilidade do sistema, fazendo com que em muito pouco tempo se multiplicasse o número de famintos e subnutridos no mundo, que saltaram para mais de um bilhão.
O PAPEL DAS POLÍTICAS DE FINANCIAMENTO
Ao longo dos anos 1970, o processo de modernização da agricultura brasileira foi fortemente induzido pelas políticas públicas, em particular o crédito subsidiado para a aquisição de maquinário e de insumos agroquímicos. O emprego desses fatores de produção era o principal indicador adotado para aferir o sucesso dos programas de desenvolvimento rural. A combinação entre a pesquisa agrícola e a extensão rural, ambas apoiadas no crédito facilitado, deu o impulso necessário para o avanço do agronegócio. Nos anos 1980 e no início da década seguinte, esse apoio público foi reduzido, o que fez com que as taxas de crescimento do agronegócio caíssem. A partir do governo FHC, verificou-se a retomada do crédito para a agricultura patronal e a criação do Pronaf, este dirigido especificamente para a agricultura familiar.
É importante reparar que a expansão do crédito rural se deu com base em uma engrenagem já muito bem azeitada. Trata-se de um sistema que articula os bancos operadores do crédito, as empresas produtoras de insumos e equipamentos, as lojas de produtos agropecuários e os serviços de assistência técnica e extensão rural (Ater). Os agentes financeiros foram condicionados a operar a partir de manuais de instrução de risco baseados em pesquisas científicas oficiais (sobretudo da Embrapa). Estas determinam tanto as atividades produtivas que podem ser realizadas em uma determinada região como os métodos de manejo técnico adequados para que ela seja desenvolvida. Assim concebido o sistema, é natural que os projetos de crédito (que dependem, aliás, da assinatura de um técnico) sejam orientados para o fomento a unidades produtivas modernizadas.
Dessa forma, ao facilitar o acesso aos recursos financeiros e aliviar os riscos desses empréstimos, as políticas do governo criaram condições suficientes para que mais de um milhão de agricultores optassem por esses modelos produtivos. Prova disso é que a maioria dos agricultores que acessaram o Pronaf empregou os recursos do crédito para a aquisição de agroquímicos, de sementes comerciais e de maquinário para implantar sistemas produtivos monocultores. Entretanto, em- bora não se deva desprezar o poder de indução dos agentes de crédito e de Ater na adoção de projetos de financiamento voltados para a agricultura convencional, deve-se reconhecer igualmente que há um número crescente de casos em que esses agentes apoiam a elaboração de projetos voltados para a produção orgânica ou para a transição agroecológica.
AS PROPOSTAS DA SOCIEDADE CIVIL
A visão crítica do agronegócio, de seus efeitos negativos e de sua insustentabilidade não se disseminou nas bases dos movimentos sociais, cujas agendas de negociação com o governo federal raramente abordam esse tipo de questão. Para não falar da grande massa de agricultores familiares que não se encontra organizada e participando de processos de reflexão sobre os modelos de produção agrícola. Pelo contrário, para boa parte da agricultura familiar, o padrão convencional permanece como referência de progresso, haja vista a imagem positiva disseminada pela mídia e pela aparência de prosperidade de grandes produtores que produzem segundo o modelo. A crítica, portanto, permanece circunscrita a parcelas reduzidas do universo da agricultura familiar e a lideranças dos movimentos sociais do campo. Diante dessas condições, é natural que a demanda espontânea dos agricultores familiares esteja orientada para a execução de projetos produtivos convencionais.
Caso o governo houvesse optado por implantar um efetivo processo de transição na agricultura brasileira em busca de maiores níveis de sustentabilidade, seriam necessárias políticas muito mais inovadoras e incisivas. É certo que as condições técnicas, sociais e políticas para tanto não estavam dadas. Mas poderíamos certamente ter avançado mais nessa direção se fossem construídos e multiplicados espaços de exercício e inovação que pudessem criar referências em escalas visíveis, tanto para produtores quanto para os formuladores de políticas e a opinião pública.
Essa ideia de implantação de nichos de inovação com apoio de políticas públicas surgiu no Grupo de Trabalho sobre o Financiamento da Transição Agroecológica da ANA em 2003.
Em negociações com os responsáveis do Pronaf, o GT- Financiamento apresentou duas propostas: 1) o esverdeamento do Pronaf; e 2) a criação de uma linha especial de crédito voltada para apoiar processos de transição agroecológica. A primeira proposta visava a valorizar as modalidades já existentes de crédito Pronaf, fazendo com que fossem utilizadas também para financiar sistemas produtivos manejados com princípios agroecológicos. A possibilidade de uso de sementes crioulas de variedades locais nos projetos Pronaf era um dos aspectos mais importantes.
A segunda proposta seria a criação de linhas de financia- mento com condições específicas para as famílias interessadas em desenvolver a transição agroecológica em suas unidades de produção. Para tanto, foram definidos sobre-tetos, prazos de pagamento, períodos de carência e juros especiais. No entanto, as negociações não chegaram à definição de recursos carimbados para o financiamento das experiências-piloto nas várias regiões do país. Sem essa garantia, temia-se que os agentes financeiros não priorizariam projetos de transição agroecológica, o que acabaria por inviabilizar o acesso a essas modalidades inovadoras de crédito. E foi exatamente o que ocorreu na grande maioria dos casos em que agricultores buscaram acessar as modalidades mais diferenciadas, tais como o Pronaf Agroecologia, o Pronaf Semiárido e o Pronaf Mulher.
Além da resistência dos agentes financeiros, outros fatores dificultaram o acesso a essas novas modalidades. O primeiro deles foi a natural complexidade dos projetos concebidos pelo enfoque agroecológico. O segundo foram os prazos de carência e de pagamento. O terceiro foi o montante que se propunha investir. Os três fatores estão relacionados com a ideia de que é viável e conveniente definir um plano de transição agroecológica antes que o processo se inicie e de que é possível prever o seu tempo de duração.
AS DIFICULDADES DO PLANEJAMENTO DA TRANSIÇÃO
A Agroecologia se baseia no manejo sustentável dos recursos naturais renováveis, como o solo, a água e a biodiversidade. A combinação desses recursos varia enormemente de uma região para outra e mesmo de uma unidade produtiva para a sua vizinha. Além disso, cada família agricultora possui condições e projetos distintos, quer pela composição da força de trabalho, quer pela vocação ou pelas preferências que desenvolveu.
Por essas razões é que se diz que não existem projetos padrão na Agroecologia. Ela é específica a cada lugar, ou site specific, como dizem os de língua inglesa.
Devido a essa característica peculiar dos sistemas de base ecológica, a modelagem ou desenho da unidade produtiva deve ser realizado a partir da combinação de opções técnicas e econômicas adaptadas às condições físicas e ambientais específicas de cada propriedade. O melhor arranjo entre essas opções é desenvolvido por meio de processos contínuos de aprendizagem com base na experimentação local e na interação com outros experimentadores e com a assessoria técnica. Isso significa que não é possível definir previamente e com precisão as etapas da transição agroecológica e o seu tempo de duração. Aliás, os agricultores experientes no manejo agroecológico costumam afirmar que a transição dura para sempre.
Nessas condições, como é possível elaborar um projeto de crédito que deve necessariamente prever começo, meio e fim? Além disso, como prever os custos de cada prática e as respostas agronômicas e econômicas de um sistema complexo e em experimentação contínua? Devido a esses altos graus de complexidade e diversidade dos processos de transição agroecológica, torna-se impraticável normatizar os mecanismos de financiamento a partir de manuais para uso universal. Ao contrário, torna-se essencial projetar a concessão dos recursos do financiamento da transição com alto grau de flexibilidade. Como fazer?
MAIS INVESTIMENTO QUE CUSTEIO
Muitas lições podem ser aprendidas com as famílias agricultoras que avançaram na transição agroecológica nos vários biomas que compõem a paisagem brasileira. Estudos de caso apontam para o uso de diversos mecanismos de financiamento da transição agroecológica, sendo, possivelmente, o auto- financiamento o mais importante deles. Os Fundos Rotativos Solidários (FRS) se apresentam como outro mecanismo relevante, sobretudo na região Nordeste. Alguns financiamentos in natura (sementes, pós de rochas, mudas, etc.), fornecidos em pequenas quantidades por entidades de promoção do desenvolvimento agroecológico para fins de experimentação, também fomentam a transição. Em alguns casos, mais numerosos na região Sul, os agricultores captaram créditos do Pronaf nas suas modalidades mais usuais (antigos C e D), mas sem identificar as práticas agroecológicas que iriam aplicar. Trata- se de um procedimento de risco, uma vez que, em caso de fracasso na safra, esse desvio do uso dos recursos impediria o pagamento do seguro. Apesar disso, os resultados vantajosos obtidos pelos agricultores ecologistas no Planalto Norte Catarinense mostram que valeu a pena o risco, já que, mesmo em anos de seca, seus sistemas em geral resistiram melhor que os dos agricultores convencionais, que tiveram que apelar para o seguro.
Independentemente da estratégia de financiamento adotada, essas experiências concretas indicam que o tipo de recurso mais importante para a transição agroecológica é aquele que permite orientar investimentos para a aquisição de equipamentos ou a construção de infraestruturas produtivas. Uma vez reestruturado o agroecossistema, o agricultor não necessita acessar o crédito ano a ano para o custeio de suas lavouras, pois os insumos produtivos dos quais depende passam a ser originados principalmente a partir do manejo dos recursos da propriedade.
As experiências indicam também que o valor dos recursos que os agricultores necessitam investir varia a cada ano. Sendo assim, o ideal para financiar a transição seria um acesso paulatino aos créditos de investimento, em uma sucessão de projetos nos ritmos escolhidos pelo próprio agricultor. Também não deveria haver limite para o número de tomadas de crédito, desde que o agricultor mantenha o pagamento das parcelas de cada uma das dívidas contraídas anteriormente. É evidente que um incentivo maior à transição agroecológica poderia ser incorporado ao sistema de crédito, assim como já foi feito no passado para estimular a adoção das práticas da Revolução Ver- de. Um prêmio de adimplência na forma de um rebate de 50%, por exemplo, daria grande estímulo aos processos de transição. Experiências com os FRS mostram que os agricultores, mesmo em situações de dificuldade, pagam rigorosamente as suas dívidas e não interrompem o processo de transição.
ALGUNS EXEMPLOS SIGNIFICATIVOS
Os artigos desta edição da Revista Agriculturas recobrem várias das questões aqui abordadas. Três exemplos de financiamentos da transição agroecológica a partir de mecanismos não-bancários são apresentados: os Fundos Rotativos Solidários (FRS) na Paraíba, apoiados pelas ONGs Patac e AS-PTA; o microcrédito no sertão do Araripe, promovido pelo Caatinga; e o crédito cooperativo na Bahia, operado pela Associação das Cooperativas de Apoio à Economia Familiar (Ascoob). Eles apontam para as características comuns que garantem o sucesso das experiências: fácil acesso aos recursos, simplicidade nos procedimentos de transação, flexibilidade, autonomia do tomador de crédito na definição de seu projeto e confiança mútua entre tomadores e fornecedores do crédito.
As três experiências apresentam diferenças marcantes quanto a condições de pagamento, juros e prazos. No caso da Ascoob, as regras são as do Pronaf, enquanto o Caatinga adota juros mais altos e prazos de ressarcimento mais curtos. Os FRS operam com prazos variáveis segundo o tipo de investimento, mas também tendem a ser mais curtos do que os do Pronaf, sobretudo nas modalidades Agroecologia e Semiárido. Não há juros formais nesses empréstimos, embora muitas vezes exista uma indexação com base nos preços dos produtos adquiridos. Por exemplo, o tomador de empréstimo para a construção de uma cisterna de placa deve devolver o valor necessário para que outra cisterna seja construída. Caso o preço do cimento aumente no prazo de pagamento do empréstimo, o tomador deverá pagar o valor de mercado na data da devolução.
Apesar de possuir condições financeiras aparentemente menos vantajosas do que as do crédito bancário oficial, a preferência dos agricultores por esses mecanismos se justifica pelos formatos alternativos que apresentam. A inadimplência nesses casos é praticamente inexistente, o que demonstra não só a capacidade de pagamento, como a responsabilidade para com a restituição do recurso.
Em seu artigo, o diretor de financiamentos e proteção da produção rural da Secretaria de Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário (SAF/MDA), João Luiz Guadagnin, revela o contraste entre a flexibilidade e a adaptabilidade desses sistemas alternativos e a rigidez e uniformidade do crédito bancário. As linhas de financiamento dos bancos ainda não conseguiram se adequar às condições dos agricultores, em particular os que se colocam em trajetórias de transição agroecológica. A complexidade dos projetos, o dirigismo dos assessores e dos agentes financeiros, que impõem aquilo que acham mais interessante para o agricultor, a exigência de garantias (uma forma indireta de questionar a confiança no agricultor), tudo contrasta com as relações estabelecidas entre os tomadores e distribuidores de crédito nos exemplos alternativos.
O artigo do professor Jan Douwe van der Ploeg, da Universidade de Wageningen, na Holanda, apresenta essa questão do crédito em uma perspectiva histórica. Descreve a luta permanente da agricultura familiar camponesa por maior autonomia frente às forças externas ao seu meio social, isto é, os grandes proprietários, os mercados de insumos ou compradores de produtos e, finalmente, o mercado de capitais. Mostra que as opções técnicas adotadas podem favorecer essa autonomia ou, ao contrário, implicar em maior dependência e risco. Mostra também que os mecanismos de crédito bancário tendem a se contrapor à transição agroecológica, apontando para a importância da construção de sistemas de financiamento que superem essa contradição.
Em certa medida, o artigo sobre a mobilização de poupanças locais em comunidades rurais em Uganda é uma forma de responder à questão posta por van der Ploeg. Alfred Lakwo, diretor de programa da Agência para o Desenvolvi- mento Regional, demonstra que, apesar da notória pobreza das comunidades, um significativo volume de recursos foi mobilizado para a composição de fundos de crédito orienta- dos a financiar investimentos de pequeno porte, acessíveis e capazes de capitalizar uma agricultura sem outras alternativas.
É evidente que as experiências de financiamento da transição agroecológica estão longe de ter avançado tanto quanto os próprios processos de transição em todo o Brasil. Como já foi apontado, esse financiamento foi desenvolvido principalmente a partir de iniciativas distantes dos créditos oficiais. Isso não quer dizer que os créditos Pronaf não estejam sendo amplamente valorizados nessa direção. Mas é preciso mudar muito as regras e os procedimentos para que eles se ajustem às peculiaridades de projetos orientados pelo enfoque agroecológico. Afinal, o emprego de autofinanciamento para a transição não é uma solução generalizável, já que a dificuldade para acumular capital muitas vezes torna os processos mais lentos, menos eficientes ou até inviáveis, o que leva à exclusão de uma parcela significativa de agricultores. Pode-se dizer, portanto, que lutar por um crédito amplo, flexível, acessível e simplificado é uma necessidade imperiosa para o futuro da Agroecologia e da agricultura familiar no Brasil.
Jean Marc von der Weid
coordenador do Programa de Políticas Públicas da AS-PTA
Membro do CONDRAF
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Revista V7N2 – Agricultura familiar: sustentando o insustentável?