Ghislaine Duque, José Waldir de Sousa Costa e José Camelo da Rocha
Os Fundos Rotativos Solidários (FRS) são for- mas de organização que permitem às comunidades constituírem poupanças coletivas a partir de recursos localmente rateados ou de apoios de cooperação externa. A aplicação dos recursos e sua sucessiva reposição para novos investimentos seguem modalidades e ritmos decididos pela própria comunidade. Um agricultor assim traduziu o princípio ético e o mecanismo que rege o sistema: O beneficio que eu recebi, vou me esforçar para que outros também possam recebê-lo. Esse movimento de aplicação, reposição e reinvestimento obedece a uma lógica de solidariedade característica de comunidades camponesas.
De fato, os FRS nasceram das vivências tradicionais de reciprocidade que levam, por exemplo, qualquer agricultor ou agricultora a compartilhar a água de beber – porque no sertão, água não se nega –, ou a criar seus animais em áreas de pastagens comuns (os fundos de pasto), ou ainda a ajudar uma família carente a adquirir uma cabra para dar leite ao filho e começar a sua criação. Também são exemplos dessa lógica os mutirões para a construção ou manutenção de bens comuns (estradas, açudes, poços) ou em benefício a famílias que necessitam de ajuda para colher os roçados ou reformar suas casas. Essas práticas coletivas conferem melhoria na qualidade de vida e dignidade a milhares de famílias camponesas no semiárido brasileiro. É nesse sentido que os FRS revelam-se como poderoso instrumento de economia comunitária, a serviço do desenvolvimento autocentrado pautado na Agroecologia.
AS PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS DE FUNDOS SOLIDÁRIOS
Os Fundos Solidários têm longa história no Brasil, mas foi a partir dos anos 1980 que ganharam força junto aos movi- mentos sociais e às atividades comunitárias ligadas a diversas igrejas. O primeiro fundo solidário da Paraíba surgiu em 1993, na Comunidade Rural de Caiçara, município de Soledade. Esse primeiro projeto foi financiado pela Catholic Relief Service (CRS), em convênio com o Programa Mundial de Alimentação. O trabalho foi assumido pelo Programa de Aplicação de Tecnologia Apropriada às Comunidades (Patac), em parceria com o Sindicato de Trabalhadores Rurais (STR) de Soledade e com a paróquia local. O objetivo era criar uma forma de disponibilizar recursos financeiros para a construção de cisternas de placas. Essa comunidade foi escolhida porque era muito populosa e tinha grande deficiência de infraestruturas para captação e armazenamento de água.
Inicialmente, os promotores desses primeiros FRS tinham em mente uma estratégia voltada à multiplicação de recursos financeiros para que a demanda de cisternas das comunidades fosse atendida. O contexto era marcado por grave crise de abastecimento de água resultante de uma seca que já durava alguns anos. A situação era emergencial, uma vez que não se tratava mais de salvar os rebanhos, mas sim vidas humanas. Os pequenos açudes nas áreas rurais e mesmo o grande açude da cidade de Soledade estavam vazios. Os carros-pipas vinham de outras regiões para abastecer a cidade e as comunidades rurais, onde a situação era mais crítica. Como elas não possuíam reservatórios, a água era despejada em locas de pedra ou até em barreiros, onde pessoas e animais amontoavam-se à espera da água que chegava de uma a duas vezes por semana.
Ao saber da existência das cisternas redondas feitas com placas de cimento armado, mais baratas quando comparadas às cisternas convencionais de alvenaria, o STR de Soledade empenhou-se em um projeto para viabilizar esse equipamento para as famílias e comunidades rurais do município. Mas a questão que então se colocava era: como atender a todas as famílias se só havia recursos para a construção de sete unidades? Para solucionar o problema, optou-se por implantar um sistema de consórcio fundado na formação de grupos para a gestão dos recursos disponíveis.
Para que a comunidade tomasse conhecimento da tecnologia e de sua forma de construção, a primeira cisterna foi feita em regime de mutirão no salão comunitário. Os recursos correspondentes às outras seis cisternas foram geridos em sistema de consórcio por seis grupos de cinco famílias. No momento em que cada grupo tivesse suas cinco cisternas construídas e o fundo de investimento original fosse recomposto, outro grupo de cinco famílias era criado para a gestão desses recursos. Por meio desse procedimento, todas as 90 famílias da comunidade conseguiram suas cisternas. Além disso, os recursos iniciais se mantiveram disponíveis para novos investimentos na comunidade.
A SISTEMÁTICA DOS PRIMEIROS FUNDOS ROTATIVOS
Após entendimento com a comunidade, certa quantia de dinheiro correspondente ao valor do material de uma ou duas cisternas foi emprestada a um grupo de famílias que se comprometeu a devolver o empréstimo segundo as modalidades e o ritmo definidos em conjunto. A primeira família a ser beneficiada foi sorteada e o trabalho de construção foi realizado coletivamente, pelo sistema de mutirão. À medida que o volume das devoluções permitia, as famílias seguintes eram sorteadas e novas cisternas eram construídas. Quando todas as famílias do grupo obtinham suas cisternas, as últimas parcelas eram devolvidas ao Patac, que reiniciava outro grupo, que poderia ser ou não da mesma comunidade.
Após a construção de pelo menos uma cisterna para cada família da comunidade de Caiçara, vários outros bens e benfeitorias foram adquiridos e/ou construídos com os recursos e o mecanismo dos FRS. Dentre eles, destacam-se: arame para cercas, barragens subterrâneas, campos de palma forrageira, animais, etc.
OS FRS COMO IMPULSIONADORES DA TRANSIÇÃO AGROECOLÓGICA
Para avançar na transição agroecológica, as famílias necessitam de condições materiais para estruturação de seus sistemas de produção. Embora exista a possibilidade de obter recursos por meio das linhas de crédito oficial, nem sempre as famílias conseguem responder às exigências burocráticas dos bancos. Nesse sentido, os FRS apresentaram-se como mecanismos de financiamento mais acessíveis.
A experiência na Paraíba permite que seja identificada uma série de atividades essenciais para a transição agroecológica viabilizadas pelos FRS: diversas formas de armazenamento de água (cisternas, tanques de pedra, cacimbas, barragens subterrâneas, etc.) e de forragem (silagem, fenação, farelo); preservação das sementes crioulas (Bancos de Sementes da Paixão, como são chamadas na Paraíba); os mutirões; hortas coletivas e a compra de arame, telas, palma e animais.
Com a disponibilidade de água perto de casa, as famílias avançam no processo de transição, passando a adotar um novo modo de se relacionar com a natureza na gestão técnica do sistema produtivo. A diversificação da produção (associando plantas frutíferas, medicinais e forrageiras), o investimento no beneficiamento das frutas, a abertura de canais de comercialização local (feiras livres, por exemplo), o armazenamento de forragens e o aprimoramento dos sistemas de pequena criação vêm contribuindo para a segurança alimentar das famílias e a geração de renda. Além dos resultados econômicos, os FRS proporcionam condições para a elevação da autoestima e a revitalização da vida comunitária (ver Quadro).
A experiência de gestão local dos FRS promove também o fortalecimento da autonomia da comunidade. Daí uma relação nova entre os próprios produtores e entre os produtores e os mediadores – que não é mais de subordinação, mas de troca de saberes entre iguais. O resgate dos saberes tradicionais permite que os agricultores-experimentadores adaptem orientações técnicas a seus próprios ecossistemas, respeitando sua herança cultural. Cria-se um clima de reflexão crítica e aprendizagem coletiva por meio de um movimento de vai-e-vem (encontros, debates, boletins, relatórios) entre diferentes escalas (do nível local ao nacional e do nacional às comunidades locais). Por meio desse processo, as experiências bem-sucedidas são valorizadas e se tornam referências para inspirar a formulação de propostas de políticas públicas.
A DISSEMINAÇÃO DOS FRS NA PARAÍBA
Em avaliação realizada em 2003, definiu-se que a própria comunidade de Caiçara deveria administrar o FRS. Dessa forma, as devoluções não passariam mais pelo Patac, que até então vinha assumindo a função de instituição mediadora do processo. Posteriormente, quando todos os grupos da comunidade foram beneficiados, uma nova redistribuição foi organizada por um coletivo de representantes de todas as comunidades do município. Em seguida, esse coletivo ampliou-se com a integração de representantes de comunidades de nove municípios vizinhos.
O sistema de FRS difundiu-se por todo o estado por meio das organizações que compõem a Articulação do Semiárido da Paraíba (ASA-PB), uma rede criada em 1993 que reúne comunidades, paróquias e ONGs com o objetivo de elaborar, defender e implementar ações de convivência com o semiárido a partir do enfoque agroecológico.
Com a irradiação das iniciativas pioneiras de FRS, milhares de famílias de mais de 1.800 comunidades de 140 municípios da Paraíba chegaram a participar e gerir sistemas semelhantes. Além da multiplicação do número de grupos gestores de FRS, cresceu também a diversidade de ações financiadas e modalidades de gestão. Como define José Maciel, da Comunidade de Caiçara: Este é o jeito da gente crescer em comunidade.
UMA QUESTÃO DELICADA: A CONTESTAÇÃO DA LEGALIDADE DOS FRS
Após as etapas de preparação e aprimoramento dos instrumentos de gestão, foi assinado um termo de parceria com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) para o financiamento do Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC). Nesse momento, a ASA-PB já vinha multiplicando cisternas pela dinâmica dos FRS há 10 anos. Todos estavam convencidos de que a convivência com o semiárido cobrava a estruturação das propriedades familiares para aumentar suas capacidades de estocagem de água para os varia- dos usos, que vão desde o consumo das famílias e dos animais até a produção agrícola.
O acesso à cisterna abria a porta para a reestruturação dos sistemas produtivos. Entretanto, mais do que a infraestrutura em si, era o mecanismo de regulação coletiva dos FRS e os seus desdobramentos em termos de dinamização de processos sociais locais os responsáveis pela criação de condições para a multiplicação dos recursos financeiros e a produção e a circulação de conhecimentos, duas condições essenciais para a transição agroecológica.
A implantação do P1MC abriria a possibilidade de multiplicação e consolidação dos FRS por todo o estado. No entanto, durante uma visita da Controladoria Geral da União (CGU), em 2004, a proposta de emprego dos FRS para a implementação do programa foi legalmente questionada, embora o mecanismo fosse elogiado como prática educativa. A questão que se colocava era: como aceitar que os beneficiados pagassem pelas cisternas, uma vez que o P1MC era financiado com recursos do governo federal aplicados a fundo perdido? Em resposta a essa indagação, as famílias afirmavam com orgulho que pagariam para que outras famílias pudessem ser beneficiadas. Além disso, argumentaram que esse pagamento seria destinado à constituição de fundos geridos pelas próprias comunidades, e não para ressarcimento ao governo ou às instituições mediadoras. Mas nem isso foi suficiente para demover as convicções dos técnicos da CGU.
Diante desse bloqueio de ordem legal, não foi possível dar sequência, através do P1MC, ao processo de disseminação de cisternas no estado por meio de FRS. Durante certo tempo, essa impossibilidade de emprego dos recursos públicos para a formação de novos FRS gerou muitas dificuldades à dinâmica da ASA-PB, que decidiu então encomendar um parecer jurídico sobre a legalidade dessa prática. Como resultado, confirmou-se o respaldo legal dado pelo Código Civil e pela própria Constituição, que reza a necessidade de construir uma sociedade livre, justa e solidária. Mas pairava ainda a dificuldade de emprego de recursos públicos para esse fim.
Esse impasse legal também vinha sendo debatido por outras entidades da sociedade civil de todo o país. O próprio Governo Lula vinha incentivando o desenvolvimento da Economia Popular Solidária, referendada como política pública, por meio da criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária junto ao Ministério do Trabalho e Emprego (Senaes/MTE). A secretaria criou um grupo de trabalho ao qual foram apresentadas as experiências de FRS na Paraíba como modalidade de economia solidária até então não considerada. Foi a partir desse debate que o grupo de trabalho propôs a criação do Programa de Apoio a Projetos Produtivos Solidários (Papps) para expandir e fortalecer as iniciativas de fundos rotativos.
Dois editais abertos pelo Banco do Nordeste do Brasil (BNB) selecionaram 50 projetos, atribuindo recursos do MDS, do MTE e do BNB da ordem de cinco milhões de reais. Um Comitê Gestor do Papps foi criado e, em fevereiro de 2007, organizou um primeiro seminário nacional. Entre seus resultados, uma carta política recomendava a construção de um programa nacional de apoio permanente aos FRS.
Estabeleceu-se dessa forma uma situação dúbia: enquanto o Tribunal de Contas da União (TCU) não admitia a alocação dos recursos do P1MC para a formação de FRS destinados à construção de cisternas, um projeto liderado pelo MTE e com recursos do BNB fomentava os FRS.
Para resguardar, divulgar e fortalecer suas experiências com FRS, a ASA-PB produziu um conjunto de materiais de comunicação, como cartilhas, boletins, manual e um vídeo intitulado Cordel dos Fundos Solidários que, a partir de depoimentos dos próprios agricultores e agricultoras, apresenta variadas formas de organização comunitária na gestão dos fundos. O vídeo vem sendo nacionalmente divulgado e serviu como subsídio para fomentar o debate junto aos ministérios envolvidos e à Advocacia Geral da União (AGU).
Dada a relevância já demonstrada pelas iniciativas de FRS, a ASA propôs a elaboração de um parecer por um jurista reconhecido sobre a legalidade do uso de recursos públicos para a constituição de FRS. O parecer foi taxativo: nada impedia essa prática. Pelo contrário, lembrava que a ideia de promoção da cidadania, deixando para trás o assistencialismo, consubstanciada na exigência de contrapartida por parte das famílias e dos grupos beneficiados, era amplamente aceitável, uma vez que a própria Constituição Federal estabelece que a lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo.
Esse parecer foi discutido numa oficina organizada pela Escola da AGU com a participação da própria CGU e de vários ministérios. Nessa oportunidade, houve muitas manifestações oficiais favoráveis à constituição de Fundos Solidários com recursos governamentais, desde que resguardado o livre arbítrio na decisão dos participantes. Por fim, tanto os representantes da sociedade civil como dos ministérios presentes expressaram interesse de que a AGU se pronunciasse oficialmente quanto ao assunto para oferecer segurança às consultorias jurídicas e aos técnicos dos órgãos públicos, apoiando, assim, as iniciativas de fundos solidários.
Para terminar, vale mencionar que a Organização das Nações Unidas (ONU), ao premiar um projeto de FRS de um membro da ASA-PB, reconheceu os Fundos Rotativos Solidários como um instrumento capaz de reduzir a pobreza e, portanto, atendendo a uma das Metas do Milênio.
Ghislaine Duque
socióloga, professora na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG/PPGCS), pesquisadora do CNPq
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José Waldir de Sousa Costa
membro da equipe do Patac
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José Camelo da Rocha
membro da equipe da AS-PTA
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Revista V7N2 – Fundos rotativos solidários: instrumento de apoio à transição agroecológica na Paraíba