Luciano Marçal da Silveira, Adriana Galvão Freire e Paulo César O. Diniz
Formado por uma rede de 15 sindicatos de trabalhadoras e trabalhadores rurais (STRS), aproximadamente 150 associações comunitárias e uma organização regional de agricultores ecológicos, o Polo da Borborema vem apoiando redes locais de inovação agro- ecológica que articulam mais de 5 mil famílias agricultoras dos 15 municípios que conformam o Território da Borborema. Analisando a partir de seu lugar na história do território, poderíamos dizer que o Polo retoma e atualiza uma longa tradição de resistências sociais que aí se estruturaram como respostas ativas a conjunturas políticas e econômicas adversas à agricultura camponesa.
A PRESENÇA CAMPONESA NA BORBOREMA AO LONGO DA HISTÓRIA
A elevada concentração da agricultura familiar marca a paisagem regional, com o planalto da Borborema delimitando as peculiaridades fisiográficas, ecológicas e socioeconômicas da região. Ao centro do território, encontramos a sua porção mais elevada onde se estabelecem pequenas propriedades familiares dedicadas à policultura associada à pecuária. Na escarpa leste do planalto, as águas da bacia do Rio Mamanguape percorrem um relevo fortemente acidentado. Essa é a região localmente denominada de Brejo, constituído por ilhas de umidade e de solos férteis resultantes da ação dos ventos úmidos que vêm do litoral, onde se estabelecem propriedades familiares dedicadas à fruticultura. A porção noroeste do território é marcada pela depressão do Rio Curimataú, uma área de sombra de chuva, conhecida por ser a zona mais seca e pelas formações de caatinga. As criações de animais combinadas com roçados de milho e feijão são as atividades que predominam nos sistemas de base familiar ali instalados. Por fim, a sudoeste, as águas da bacia do Rio Paraíba do Norte definem uma quarta região ambiental. De altitudes mais baixas, o cariri-agrestino também é uma região seca onde se observa o predomínio das grandes fazendas de gado de corte e leiteiro e uma expressiva população de foreiros e trabalhadores sem-terra, produtores de milho e fava (ver Figura 1).
A posição geográfica e as características da paisagem fizeram com que, na História da Paraíba, essa região fosse colonizada tardiamente. O interior do estado só foi ocupado (na segunda metade do século XVIII) quando a atividade açucareira do litoral úmido impôs a separação entre a produção de cana-de-açúcar e a pecuária. Assim, os sucessivos ciclos econômicos, induzidos pelo modelo de desenvolvimento agroexportador, influenciaram a dinâmica da agricultura camponesa no Agreste, promovendo períodos históricos do território que podem ser interpretados como de campesinização e de descampesinização. O primeiro ciclo foi resultante da liberação da mão-de-obra da atividade açucareira, quando as famílias passaram a ocupar pequenos sítios no Agreste, dedicando-se ao cultivo de alimentos e à criação para o autoconsumo. Mas foi a expansão do cultivo do algodão que, em meados do século XVIII, contribuiu definitivamente para o povoamento da região e a consolidação de seu espaço agrário. Segundo Moreira (1990), o boom do algodão promoveu a concentração da população, atraindo a mão-de-obra livre; a consolidação do sistema de morador, que ainda permitia o consorciamento com as culturas de subsistência; a monetarização da economia; e o favorecimento do crescimento urbano regional.
Além da economia algodoeira, seguiram-se novos ciclos econômicos impulsionados pelos cultivos da cana e do café, nas regiões de brejo, e pelo de sisal, por todo o território. A expansão da atividade canavieira ocasionou a expulsão dos moradores e arrendatários que passaram a ser funcionários de engenhos e usinas da região. Embora contribuísse para a criação de empregos rurais na época do verão, o cultivo do sisal também levou muitas famílias agricultoras a abandonarem o campo em função da revalorização das terras e por não permitir o consorciamento com cultivos alimentares. Somente nos anos 1960, com a queda do preço da fibra de sisal, os grandes proprietários voltaram a liberar o acesso à terra aos camponeses, que cultivavam áreas ociosas em troca dos restos de cultivos que eram deixados para o gado do patrão.
A década de 1970 foi marcada pela forte intervenção estatal em nome da modernização da agricultura e da ampliação das atividades pecuárias, mantendo os privilégios das oligarquias agrárias. a combinação da pecuária com o modelo modernizante da cana incentivado pelo Pró-álcool liquida definitivamente o sistema de moradores das fazendas e empurra grandes contingentes de população rural para as pontas de rua, na periferia das cidades.
Ao introduzir um novo padrão técnico fundado na crescente artificialização da agricultura por meio do emprego intensivo de insumos industriais, muitas famílias agricultoras foram induzidas a ingressarem em trajetórias de especialização produtiva, passando a depender crescentemente dos mercados para se reproduzirem econômica e socialmente. São exemplos desse processo os produtores de batata- inglesa e os fumicultoras; e nas regiões mais úmidas, muitas famílias fazem a opção pela olericultura e a fruticultura intensiva, viabilizadas a partir do estímulo dado por políticas oficiais de crédito e de assistência técnica.
RESISTÊNCIAS CAMPONESAS
Os processos de ocupação do território da Borborema não se fizeram sem que variadas formas de resistência das populações locais tivessem sido organizadas no decorrer da história. De fato, a Borborema é palco de lutas camponesas que remontam o período colonial. Por essa razão não há como compreender os atuais processos de resistência sem que leve em conta o esse histórico de lutas.
Uma das formas mais efetivas de resistência, embora uma das menos visíveis, vem da organização econômica e técnica dos sistemas de produção camponeses. Na contracorrente do modelo hegemônico, sob o domínio econômico dos sistemas monocultores para exportação e das políticas oficiais de desenvolvimento, os camponeses resistiram e desenvolveram suas experiências produtivas e de pluriatividade. Seja nas brechas dos latifúndios ou nos espaços abertos pelas crises econômicas no território, foram os camponeses que estabeleceram uma lógica de produção assentada na diversificação de culturas alimentares. Promoveram, assim, a dinamização da economia, ao levarem seus produtos para os mercados locais, especialmente ligados às feiras livres nos municípios da região, assim como para outras regiões interioranas do estado da Paraíba.
É justamente nesse campo de resistência que se vai construindo a identidade da agricultura camponesa na região. Tanto sindicatos como associações comunitárias, serviços pastorais e organizações de apoio vão estabelecer novos padrões organizativos, técnicos e de intervenção política para o fortalecimento da agricultura familiar. Foi nesse movimento que, no início dos anos 1990, três sindicatos de trabalhadores rurais (dos municípios de Solânea, Remígio e Lagoa Seca), com assessoria da AS-PTA, colocaram o desafio de buscar estratégias inovadoras de incidência, capazes de gerar dinâmicas sócio-organizativas que atuassem sobre a essência da problemática específica da agricultura familiar da região. Tratava-se de conectar suas pautas de luta, até então muito genéricas e influenciadas pelo movimento sindical nacional, à realidade e às motivações concretas da numerosa e diversificada agricultura familiar do território. A ação articulada desses três STRS criou as condições políticas para o surgimento do Polo sindical e das Organizações da agricultura Familiar da Borborema.
A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO TERRITÓRIO
O avanço da proposta de desenvolvimento local e a constituição das redes de inovação nos municípios de Solânea, Remígio e Lagoa Seca foram aos poucos se irradiando e despertando o interesse de sindicatos e de outras organizações de agricultores dos demais municípios do agreste paraibano. As experiências bem-sucedidas no campo da gestão dos recursos hídricos e do manejo de estoques coletivos de sementes realizadas nesses municípios foram ganhando visibilidade, justamente por assegurarem aos sistemas produtivos familiares maior estabilidade e capacidade de resistência em conjunturas adversas, a exemplo do período prolongado da seca vivido entre 1998 e 1999.
Esse fato motivou os sindicatos da região, então associados ao espaço de articulação preexistente – o Polo sindical da Borborema –, a mobilizarem suas bases nas comunidades para divulgar as experiências em agroecologia. Dessa forma, o Polo da Borborema passou a se consolidar não só como um ator demandador de políticas públicas específicas, mas fundamentalmente como espaço político-organizativo unificador do conjunto das organizações da agricultura familiar em torno à construção de um projeto comum de desenvolvimento local e de promoção da agroecologia.
As bases desse projeto foram estabelecidas no início dos anos 2000, a partir da decisão de que o Polo formularia e implementaria uma estratégia de promoção de desenvolvimento regional assentada em um programa de formação estruturado em dois eixos: o primeiro tendo como objeto os temas relacionados à inovação agroecológica, enquanto o segundo, com foco nas políticas públicas, seria orientado para extrair ensinamentos das experiências inovadoras em curso na região para formular e defender propostas de políticas voltadas à fortalecer a autonomia técnica, a eficiência econômica e a sustentabilidade ambiental da agricultura familiar.
No decorrer dos últimos anos, uma intensa dinâmica social de experimentação de inovações foi se disseminando por meio de um processo de aprendizagem coletiva fundado na revalorização dos conhecimentos sobre o manejo dos agroecossistemas locais que são de domínio das famílias agricultoras. Sob um olhar analítico referenciado nos princípios da agroecologia, um movimento sistemático de leitura da realidade local foi mobilizando um amplo acervo de saberes e abrindo caminho para a busca de novos conhecimentos, atualizando estratégias inovação dirigidas à superação dos obstáculos técnicos, econômicos e sócio-organizativos vivenciados pela agricultura familiar da região.
Alimentados pela realização dos sucessivos diagnósticos e pela promoção de incontáveis intercâmbios de experiências, os processos de inovação e experimentação agroecológica adquiriram um ritmo acelerado de expansão social e geográfica pelo território.
Alguns dispositivos de ação coletiva foram acionados e/ou construídos pela atuação do Polo da Borborema, gerando efeitos que se irradiam em vários sentidos pelo território. Uma rede de 82 bancos de sementes comunitários, por exemplo, mobiliza milhares de famílias camponesas para o uso e a conservação das variedades locais cultivadas em sistemas consorciados, enquanto uma intensa dinâmica de mutirões para a construção de milhares de pequenas infraestruturas voltadas à captação e ao armazenamento de água vem dando lugar a uma densa malha hídrica, conferindo níveis crescentes de segurança hídrica e de produtividade aos sistemas de produção. Há também uma rede de viveiros municipais, comunitários e familiares que subsidia as práticas de recomposição do estrato arbóreo, contribuindo para restaurar a paisagem e ampliar os serviços ambientais e econômicos das árvores nos sistemas de produção. Já a circulação de 15 máquinas motoensiladeiras pelos municípios da região ao fim do ciclo chuvoso e a promoção de mu- tirões para estocar forragem para os rebanhos conferem maior disponibilidade de alimentos de boa qualidade para os rebanhos nos períodos secos do ano. Ocorre ainda um processo de revitalização de centenas de quintais apoiados por fundos rotativos solidários e dirigidos à diversificação e à reestruturação produtiva dos arredores das casas (pomares, hortas de plantas alimentícias e medicinais e pequenos criatórios). Além disso, a articulação de uma rede de oito feiras agroecológicas vem gerando novas oportunidades de acesso aos mercados para a agricultura familiar da região. Com o passar do tempo, o Polo também desenvolveu um modelo próprio de gestão, organizando comissões temáticas que assumiram responsabilidades de conceber, executar e monitorar os trabalhos de experimentação, segundo recortes específicos.
Esse processo de construção social e política do Território Agroecológico do Polo da Borborema é fruto de um esforço de compartilhamento e consolidação de uma identidade coletiva, forjada na construção de um projeto alternativo de desenvolvimento para a região que tem como base um movimento social de experimentação protagonizado pelos(as) próprios(as) agricultores(as). A organização e a gestão desses dispositivos coletivos só se fizeram possíveis pelo estabelecimento de uma rede local de agricultoras e agricultores-experimentadores capazes de fomentar permanentemente processos de inovação agroecológica, conferindo dessa maneira um novo papel aos agricultores, às organizações da agricultura familiar e à própria assessoria. Nessa construção, cabe ainda destacar a participação protagonista das mulheres, tanto nas atividades de experimentação agroecológica quanto na atuação política junto às organizações da agricultura familiar.
Os grandes eventos de formação, por sua vez, constituem os espaços onde são apontados, analisados e discuti- dos os avanços na geração de renda, na revitalização da vida comunitária e cultural, no plano do bem-estar e no fortalecimento da autoestima. É com base nesses indicadores que agricultoras e agricultores conseguem construir referências críticas ao modelo padronizador e gerador de dependência da Revolução Verde. E são todos esses fatores, atividades e dispositivos coletivos que fazem com que o Polo venha se afirmando na região como um ator político capaz de defender e influir na promoção de um padrão de desenvolvimento alternativo centrado na ampliação e consolidação da agricultura familiar camponesa.
INFLUÊNCIA SOBRE AS POLÍTICAS DE DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL
A partir de 2003, com a implementação do Programa dos Territórios Rurais de identidade – política de desenvolvi- mento territorial da secretaria do Desenvolvimento Territorial do Ministério do Desenvolvimento agrário (SDT/MDA) –, constituiu-se formalmente o Território da Borborema. No entanto, cumpre ressaltar que uma das condições fundamentais para a criação desse território foi justamente a existência prévia de uma articulação regional, o Território Agroecológico do Polo da Borborema, caracterizado por forte presença da sociedade civil com grande capacidade de ação coletiva e de iniciativas locais, influenciando significativamente a estruturação institucional e a dinâmica posterior do Território da Borborema no âmbito do programa da SDT/MDA.
Nesse momento, pode-se identificar uma feliz coincidência entre as conjunturas local e nacional favorecendo com que o conjunto de políticas do Governo Federal voltadas para a promoção da agricultura familiar encontrasse um ambiente fértil para sua implementação. Além disso, o espaço aberto pela política de desenvolvimento territorial possibilitou que o projeto em construção do Polo ganhasse maior visibilidade entre um conjunto mais amplo de atores e instituições públicas e privadas, fazendo do Território da Borborema uma arena privilegiada de expressão e disputa de projetos para o desenvolvimento rural.
Em que pese a grande diversidade de interesses dos atores participando do Fórum de Desenvolvimento do Território, a força sociopolítica e propositiva construída na região tem sido capaz de promover níveis crescentes de convergência em torno a um projeto para o desenvolvimento territorial assentado no fortalecimento da agricultura familiar e da agroecologia. Os processos sociopolíticos em construção pelo Polo têm se mostrado suficientemente consistentes para que as organizações da agricultura familiar não sejam cooptadas pelos fortes atrativos de uma política governamental que se propõe a alocar recursos vultosos no território. Ao contrário, como ator atuante, o Polo vem favorecendo o estreitamento das interações entre a sociedade civil e o estado na construção das políticas mais adaptadas à região.
A partir desses atributos, o Polo vem sendo capaz de elaborar proposições concretas para mobilizar recursos de políticas públicas, fazendo-as convergir para o fortalecimento dos processos de inovação por ele impulsionados. Entre eles, destacam-se o Programa Um Milhão de Cisternas para Provi- são de Água para Consumo Humano (P1MC) e o Programa Uma Terra e Duas Águas para acesso e Manejo de Água para a Produção de alimentos (P1+2). Também vem sendo conduzida mais de uma dezena de projetos junto ao Programa de aquisição de alimentos da Companhia Nacional de abastecimento (PAA/Conab) para o abastecimento dos bancos de sementes por meio da compra de variedades locais e de sementes forrageiras, além da aquisição de grãos para a produção de multimistura – suplemento alimentar para crianças e gestantes – e a compra de alimentos agroecológicos para abastecimento de escolas e creches. Ainda no âmbito do Fórum de Desenvolvimento Territorial, o Polo exerce grande influência na formulação e implementação dos Planos de Desenvolvimento Territorial sustentável (PDTRS), mobilizando recursos do Pronaf infraestrutura para a expansão das feiras agroecológicas, para a ampliação do número de máquinas motoensiladeiras e para a constituição e viabilização de infraestrutura do Banco Mãe de sementes.
No curso desse processo na região, observa-se ainda que a crescente visibilidade das ações protagonizadas pelo Polo vem influenciando positivamente sua interação direta ou indireta com diferentes instituições públicas e privadas que atuam no campo do desenvolvimento rural. Não é raro ver agriculto- res, agricultoras e seus filhos cursando o nível médio da Escola agrícola da Universidade estadual da Paraíba (UEPB) – Campus Lagoa Seca. A participação qualificada dos mesmos, aliás, exerceu influência importante na criação do curso de graduação em agroecologia nessa instituição. Também foram realizadas inúmeras iniciativas de pesquisa e extensão em parceria com a Universidade Federal da Paraíba (UFPB) – Campus Bananeiras, mobilizando estagiários desde o início das ações do projeto, em 1994, e estreitando relações com diversos professores. Essa maior interação contribuiu para que a instituição decidis- se constituir o Curso de especialização em agroecologia, em 2008, e estruturar o curso de graduação em agroecologia, que terá início em 2010.
Vários projetos de pesquisa da Embrapa em torno da produção de algodão agroecológico e da estocagem de forragem na região foram se estruturando por iniciativa de pesquisadores que vinham interagindo com os processos de inovação agroecológica do Polo. Também integra esse cenário a fundação de novas ONGs no Território da Borborema, como a Associação de Promoção do Desenvolvimento Sustentável (Aprodes) e a Arribaçã, a partir da iniciativa de técnicos e pesquisadores formados no contexto das dinâmicas sociais de inovação agroecológica no próprio território. Também são várias as iniciativas de Educação do Campo no território que vêm se valendo dos aprendizados e conhecimentos técnicos e metodológicos acumulados na região. Os materiais pedagógicos produzidos pela parceria entre a ASPTA e o Polo da Borborema têm sido bastante reconhecidos e utilizados para as atividades educativas de vários programas educacionais. Em decorrência dessa conjuntura, está em curso um processo de constituição de novos espaços de negociação voltados para o fortalecimento das relações de parceria com as instituições de ensino e pesquisa, proporcionando uma maior interação entre professores e pesquisadores com as redes de agricultoras e agricultores experimentadores constituídas a partir da mobilização e articulação do Polo. A Rede de Construção do Conhecimento agroecológico do Território da Borborema e a Rede de educação do Campo vêm se estruturando exatamente no sentido de fortalecer e dar caráter sistemático às articulações interinstitucionais voltadas à promoção de um ambiente favorável ao diálogo de saberes referenciado na realidade concreta dos agroecossistemas do território.
CONSTRUÇÃO E DEFESA DO TERRITÓRIO CAMPONÊS
Embora a trajetória evolutiva do Polo na defesa da agricultura familiar camponesa demonstre avanços significativos em vários planos, ela não se faz sem enfretamentos permanentes com atores sociais que defendem a expansão do modelo agrícola baseado na lógica empresarial de gestão dos agroecossistemas. Nesse sentido, o Território da Borborema configura-se como um espaço de disputa de modelos, no qual as redes de inovação agroecológica emergem como expressões de resistência ao modelo hegemônico referenciado no paradigma técnico-científico da Revolução Verde.
Programas públicos que negam e desqualificam a agro- biodiversidade por meio da distribuição em larga escala de se- mentes de poucas variedades melhoradas deparam-se com um movimento de resgate e revalorização das sementes locais, as sementes da paixão. Já os programas públicos de financiamento dirigidos ao monocultivo e à especialização produtiva são contrapostos pelas estratégias de diversificação produtiva e pela intensificação dos policultivos nos roçados tradicionais. Da mesma forma, o uso dos agrotóxicos difundido como único recurso para viabilizar a produção é condenado coletivamente devido aos seus elevados custos sociais, econômicos e ambientais, além de ser confrontado com um rico acervo de inovações na área de manejo ecológico de populações de insetos-praga e de microrganismos fitopatogênicos.
Os programas de recursos hídricos fundamentados na noção de combate à seca e na construção de grandes obras hidráulicas são desafiados pelos impactos das estratégias de descentralização da oferta de água por meio da construção de uma malha de pequenas infraestruturas que se capilariza, promovendo a segurança hídrica nas comunidades e propriedades rurais. O modelo técnico difusionista, baseado na lógica da transferência de tecnologias, é questionado pela rede de agricultores(as) experimentadores(as) que busca revitalizar a inovação local como dispositivo social para a construção e a socialização de conhecimentos técnicos. Na contramão das práticas clientelistas que enfraquecem as capacidades de auto-organização comunitária, estão sendo conduzidas experiências inovadoras de gestão de bancos de sementes comunitários, fundos rotativos solidários, mutirões, etc., todas fundadas nas tradicionais relações de reciprocidade e no princípio da solidariedade. Em oposição à consolidação de cadeias longas de comercialização, a diversificação da produção e os igualmente diversificados espaços de comercialização vêm permitindo que as famílias construam estratégias próprias de escoamento de seus produtos dentro do território.
A todo o momento as lutas se renovam. Em 2009, preocupado com o avanço da fumicultura na região pelas mãos da empresa Souza Cruz o Fórum do Território da Borborema promoveu um seminário com a participação de agricultores, assessores de ONGs, pesquisadores e representantes do Ministério do Desenvolvimento agrário (MDA). Essa foi uma excelente oportunidade para que fossem explicitadas as distintas lógicas de estruturação dos agroecossistemas de base familiar por meio do debate sobre os resultados de estudos comparativos sobre os sistemas de produtores que ingressaram na fumicultura e de sistemas de famílias que optaram por reforçar sua natureza camponesa por meio da transição agroecológica. Entre outros aspectos, os estudos comparativos deixaram claro que os sistemas fumicultores possuem altos custos de produção, baixa capacidade de autoabastecimento das famílias, implicam em elevada carga de trabalho, além de elevados riscos à saúde.
Em 2010 a chegada de uma praga quarentenária, a mosca-negra-do-citrus (Aleurocanthus woglumi Ashby) na região do Brejo estabelece um novo palco de disputa: de um lado, o Governo do estado da Paraíba que distribui elevadas quantidades de inseticidas e, de outro, os agricultores e agricultoras do Polo, assessores e pesquisadores da Universidade Federal da Paraíba que demonstram na prática que o controle biológico é o meio mais efetivo para a convivência com o inseto e para assegurar os ganhos ambientais e econômicos já atingidos com a transição agroecológica na região.
Assim, ao vincular a experimentação agroecológica aos processos de formulação de proposições de políticas públicas, o Polo da Borborema ancora sua ação de disputa pelo território numa rede social extensa que articula um número crescente de agricultores, homens e mulheres, adultos e jovens. O processo em curso na região define nitidamente um novo ciclo de recampesinização: aumento quantitativo do número de famílias camponesas que conquistaram a terra e um aumento significativo de famílias assentadas. Mas a recampesinização também se expressa em termos qualitativos, ou seja, na reconstrução da natureza camponesa da agricultura familiar da região por meio da disseminação de um processo social que busca a construção de crescentes níveis de autonomia técnica, econômica, política e cultural.
Luciano Marçal da Silveira
coordenador do Projeto Local do agreste da Paraíba
[email protected]
Adriana Galvão Freire
assessora técnica da AS-PTA
[email protected]
Paulo César O. Diniz
professor da Universidade Federal Ruralde Pernambuco (UFRPE)
[email protected]
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Revista V7N1 – Polo da Borborema: ator contemporâneo das lutas camponesas pelo território