Víctor M. Toledo
Em termos agrários, o México pode ser considerado um país muito especial. A revolução do início do século XX (1910-1917) gerou a primeira, senão a única, reforma agrária da américa Latina, deixando nas mãos das comunidades camponesas e indígenas a metade do território, assim como boa parte dos recursos naturais (água, bosques, selvas, biodiversidade, germoplasma). Em 1910, a situação era de profunda injustiça agrária. Embora dois terços da população fossem do meio rural, 60% da terra pertencia a somente 2% dos proprietários, excluindo 95% das famílias rurais. A revolução agrária, cujas principais lideranças foram Emiliano Zapata, ao sul, e Francisco Villa, nas regiões centro e norte, conseguiu que em 1915 fosse assinado o decreto que implementou a reforma agrária, o qual foi ratificado pelo artigo 27 da nova constituição mexicana de 1917. O desmantelamento dos grandes latifúndios e fazendas (cerca de 11 mil) perdurou por quase seis décadas.
Hoje, o México detém mais de 100 milhões de hectares distribuídos entre ejidos e comunidades, duas formas de propriedade comum da terra. Os ejidos são núcleos familiares camponeses que fazem uso coletivo da terra e de seus recursos, enquanto as comunidades são formadas por grupos indígenas cujos direitos foram restabelecidos e reconhecidos. Em ambos os casos, a propriedade é social, com regras de acesso, posse e transmissão baseadas no uso equitativo e comunitário. Essas condições têm prevalecido apesar da contrarreforma agrária engendrada por C. salinas de Gortari, em 1992 (RANDALL, 1999), destinada a privatizar a propriedade social e abrir o caminho para a regularização da posse da terra em favor das empresas ou sociedades mercantis. Essa situação provocou, entre outras coisas, o levantamento neozapatista na região de Chiapas.
PROPRIEDADE SOCIAL, CULTURAS INDÍGENAS E RECURSOS NATURAIS
Segundo os dados do último censo agrário realizado em 1991, existia no México um total de 4,58 milhões de proprietários rurais, dos quais 66% eram famílias camponesas vivendo em ejidos ou comunidades que controlavam 103 milhões de hectares, enquanto 30,8% eram proprietários privados que detinham algo mais que 70 milhões de hectares. É importante conhecer esse panorama agrário, que até hoje pouco mudou, para poder perceber o salto considerável no número de projetos agroecológicos conduzidos no México, bem como entender seus significados social, cultural e político.
O fator histórico também é fundamental para compreender a atual conjuntura. O México foi o cenário onde se originou e desenvolveu uma das mais vigorosas civilizações antigas: a América Central. Nessa região cultural floresceram inúmeras sociedades que domesticaram o milho e outras 100 espécies de plantas – a maioria alimentícia –, um processo que levou cerca de 7 mil anos. A população indígena centroamericana atual chega a 12 milhões, está distribuída em 26 regiões e ocupa os principais habitats do território mexicano. Assim, o campesinato de língua indígena cobre uma superfície estimada em 28 milhões de hectares (BOEGE, 2008). Embora essa superfície não seja particularmente extensa, o seu valor reside no fato de concentrar grande parte das áreas biologicamente mais ricas do país, bem como as porções mais bem conservadas de florestas e matas, numerosas regiões produtoras de água e a maioria dos sistemas de agricultura tradicional, detentora de uma notável riqueza genética (germoplasma).
Um dos elementos mais importantes a destacar é a biodiversidade. No México, a metade dos ejidos e comunidades se situam nos dez estados classificados como de maior diversidade biológica do país: Oaxaca, Chiapas, Veracruz, Guerrero, Michoacán e outros cinco. Um diagnóstico elaborado por vários especialistas para a Comissão Nacional para o Conhecimento e Uso da Biodiversidade (Conabio) identificou um total de 151 áreas consideradas como regiões prioritárias para a conservação biológica. Destas, quase 60 se encontram sobrepostas a territórios indígenas. Além disso, as principais Reservas da Biosfera do México são próximas ou estão dentro de territórios camponeses e indígenas, existindo ainda um considerável número de reservas comunitárias, cuja maioria foi criada de maneira espontânea e em nível local.
Além disso, a presença significativa da propriedade social faz do México o país com maior porcentagem de florestas e matas sob custódia e manejo comunitários do mundo. Mais de 7 mil ejidos e comunidades possuem entre 70 e 80% das florestas e matas mexicanas. Esse fato vem motivando, há mais de duas décadas, a criação de inúmeros projetos florestais de inspiração ecológica. Em suma, hoje os territórios camponeses e indígenas detêm os principais reservatórios hidráulicos, biológicos, genéticos e de vegetação do país. Só em termos de recursos hídricos, os territórios das comunidades indígenas captam quase um quarto da água utilizada nas cidades, na agricultura irrigada, na geração de energia, na pesca ribeirinha e no turismo costeiro.
A OPÇÃO AGROECOLÓGICA
A revolução mexicana, ocorrida há um século, obteve duas conquistas impensáveis para sua época e de enorme atualidade: a recampesinização do meio rural, como resultado do desmembramento dos latifúndios, e o resgate e a reinvenção da matriz cultural centro-americana, que devolveu a terra aos povos indígenas ao reconhecer o direito a suas propriedades ancestrais. Fez-se assim justiça, revalorizando a pequena propriedade (o tamanho médio das parcelas agrícolas é de 9 hectares por família, além do direito de acesso às áreas comunais de cerca de 25 hectares) e renovando uma cultura que há pelo menos 9 mil anos promove um processo de interação com os recursos naturais. Ao resgatar essa memória biocultural, a revolução mexicana restabeleceu uma conexão com o passado milenar, assentado em crenças, saberes e práticas, que hoje configuram uma sabedoria de enorme valor (TOLEDO e BARRERA-BASSOLS, 2008).
Esse panorama ajuda a explicar o crescimento inusitado de novos projetos de inspiração ecológica nas últimas duas décadas, assim como permite entender por que boa parte deles têm se multiplica- do no centro e no sul do país. No caso do México, as experiências agroecológicas não se reduzem nem se concentram na agricultura e na pecuária, atêm-se mais a um manejo ecologicamente adequado dos recursos naturais locais, incluindo as áreas florestais e a conservação da agrobiodiversidade. E é por essa razão que os projetos agroecológicos no México se confundem com as iniciativas de sustentabilidade comunitária.
O eixo central dessas iniciativas inovadoras de agroecologia e sustentabilidade é formado pelas comunidades flores- tais e cafeeiras. Embora as florestas e matas das comunidades e dos ejidos sejam de propriedade comunal, elas foram intensamente exploradas durante décadas por empresas privadas e estatais. Durante as últimas três décadas, no entanto, várias comunidades têm conseguido recuperar o controle de suas próprias florestas. Hoje, dezenas de comunidades florestais estão comprometidas com uma produção ecologicamente correta de produtos, madeireiros ou não, tais como cogumelos, resinas, plantas medicinais, folhas de palma, gomas e especiarias. Nesse cenário, destaca-se o papel da União Nacional Florestal Comunitária (Unofoc), que incentiva seus membros (550 comunidades e ejidos) a produzirem de forma ecologicamente adequada e aglutina numerosas experiências bem-sucedidas em nível nacional e internacional. O adequado manejo florestal de várias dessas comunidades tem sido certificado pelo Forest Stewardship Council.
No contexto da produção mundial de café, o México ocupa atualmente o quarto lugar, em termos de volume, e o quinto lugar, em termos de superfície de colheita. Estima-se que o número de produtores de café chega a 200 mil, que cultivam cerca de 780 mil hectares (2004). No México, 70% da produção cafeeira é realizada por agricultores de comunidades rurais. Grande parte desse setor comunal é formada por produtores indígenas de 28 culturas, entre as quais se destacam os zapotecos, mixtecos, mixes, totonacas, nahuas, huastecos, tzetzales, zoques, tojolabaise chatinos (MOGUEL e TOLEDO, 2004). Esses produtores indígenas mantêm plantações agroflorestais de café à sombra em consórcio com diversos estratos e uma grande variedade de espécies úteis (policultivos), ao contrário das modernas plantações agroindustriais de café cultivado ao sol, que utilizam agroquímicos e promovem desmatamento e erosão de solos.
Como resultado, o México se tornou o primeiro país produtor de café orgânico certificado do mundo (representando um quinto do volume total), sendo os produtores indígenas responsáveis por uma parte substancial dessa produção. Estima-se que cerca de 300 mil hectares de cafezais assumem a forma de jardins de café cultivado à sombra e organicamente. Nesses sistemas agroflorestais, apenas um hectare pode apresentar entre 50 e 150 espécies de plantas úteis, das quais se pode obter uma grande variedade de frutos tropicais, além de plátanos, cítricos, pimenta, canela, macadâmia, lichia, maracujá, manga, mel e, especialmente, café.
UMA VISÃO GEOPOLÍTICA
Os critérios do neoliberalismo determinam que a produção agrícola, pecuária e florestal deve ser feita por proprietários individuais, em grandes extensões e seguindo os padrões tecnológicos agroindustriais. Esse modelo busca imprimir uma produção especializada, rentável, altamente tecnificada (petroagricultura) e que permita a acumulação de capital. Já as experiências agroecológicas do México e de outros países latino-americanos, como Brasil, Cuba, argentina, Bolívia e Colômbia, estão baseadas numa produção de pequena escala, de famílias camponesas organizadas em comunidades ou cooperativas e não usam tecnologias dependentes de combustíveis fósseis. O tamanho das propriedades e a maneira de utilizar os recursos também são fundamentais e, portanto, todo projeto agroecológico requer uma verdadeira reforma agrária, que coloque os recursos naturais nas mãos das comunidades, não de indivíduos ou empresas.
Nessa batalha entre Agroecologia e agroindustrialização, torna-se essencial desenhar um panorama geográfico dos avanços obtidos pelos projetos agroecológicos e/ ou sustentáveis. No caso mexicano, um primeiro inventário georreferenciado de projetos revela sua localização e extensão. Em termos nacionais, é possível identificar algo em torno de 15 regiões que compõem cenários admiráveis de projetos agroecológicos e/ ou de sustentabilidade. Como podemos observar na Figura 1, eles proliferam em áreas do centro, sul e sudeste do país. Essas regiões constituem focos estratégicos para a reprodução ampliada de processos voltados a fortalecer o controle local, comunitário e, inclusive, regional, contribuindo para a manutenção e o aumento do poder social.
LOCALIZAÇÃO DE EXPERIÊNCIAS DE AGROECOLOGIA PELO TERRITÓRIO MEXICANO
Entre os estados que se destacam como laboratórios de novas experiências, estão Oaxaca e Chiapas, locais de predominância de culturas indígenas. Em Oaxaca, estado em que se fala o maior número de línguas e com a mais alta biodiversidade do país, as taxas de desmatamento são notavelmente baixas. Ali existem mais de 600 experiências de sustentabilidade comunitária em diferentes graus de desenvolvimento (Figura 2). Esse estado, onde quase três quartos dos ejidos e comunidades possuem recursos florestais, talvez seja o principal laboratório de manejo comunitário de matas do país.
Em Chiapas, a metade do território está sob controle do neozapatismo, movimento que governa cinco regiões autônomas, enquanto na outra metade proliferam as experiências agroecológicas, principalmente de produção de café orgânico e outros produtos, como cacau e mel. Chiapas é o principal centro da produção de café orgânico à sombra e reúne mais de 100 cooperativas indígenas que manejam cerca de 90 mil hectares (Figura 3).
Finalmente, a soma das experiências agroecológicas e/ou sustentáveis registradas em cinco estados (Michoacán, Puebla, Oaxaca, Chiapas e Quintana Roo) chega a mais de mil (Quadro 1). Esse número abrange todas as experiências sem distinção, sejam aquelas mais bem sucedidas, com um percurso de vários anos (até mais de duas décadas) e marcadas por um longo caminho de erros e acertos, as que são conduzi- das por comunidades que acabam de adentrar esses terrenos ou projetos que se encontram na metade de seu processo.
CONCLUSÃO
A expressão espacial ou geográfica dos projetos agroecológicos ajuda a dimensionar a magnitude dos processos antineoliberais presentes nas áreas rurais. Além disso, tem a função de orientar o planejamento geopolítico, a reprodução e a ampliação das experiências, assim como contribui para a criação de redes de comunicação e intercâmbio. É na dura batalha em defesa da natureza e da cultura, do bem-estar dos povos, da segurança alimentar e da justiça agrária e social, que os instrumentos de análise espacial adquirem grande valor estratégico.
Víctor M. Toledo
Centro de Pesquisas em ecossistemas, Universidade Nacional autônoma do México.
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Referências Bibliográficas
BOEGE, E. 2008. El Patrimonio Biocultural de los Pueblos Indígenas de México. México: instituto Nacional de antropología e Historia y Comisión Nacional para el Desarrollo de los PUEBLOS INDÍGENAS, 2008. 342 PP.
MOGUEL P.; TOLEDO,V. M. Conservar produciendo: biodiversidad, café orgánico y jardines productivos. Biodiversitas, v. 55, p. 1-7, 2004.
RANDALL, L. (ed). Reformando la Reforma Agraria Mexicana.
México: Universidad autónoma Metropolitana e el atajo ediciones, 1999. 433 pp.
TOLEDO, V.M.; BARRERA-BASSOLS, N. La Memoria Biocultural. Barcelona: editorial Icaria, 2008.
Baixe o artigo completo:
Revista V7N1 – As experiências agroecológicas do México: uma visão geopolítica