Michel Pimbert
A maior parte dos alimentos produzidos no mundo é cultivada, coletada e colhida por mais de 2,5 milhões de pequenos agricultores, criadores, habitantes das florestas e pescadores. Mais da metade desses produtores são mulheres, cujos conhecimentos e trabalho cumprem papel fundamental na sustentabilidade dos diversos sistemas alimentares locais existentes em todo o mundo, particularmente nos países em desenvolvimento.
A renda e o sustento de muitas pessoas estão atrelados à venda, processamento e troca de alimentos no âmbito local. Basta pensar em todas as pequenas indústrias alimentícias em cada bairro das cidades do Hemisfério Sul e nas mulheres que servem almoço e jantar em pontos de venda de comida em cada esquina. Os sistemas alimentares locais proporcionam a base para nutrição, renda, economias e cultura de pessoas de todo o mundo. Eles se estabelecem primeiramente nas casas das famílias e se expandem por bairros, municípios e regiões. Tais sistemas alimentares formam toda uma rede de organizações locais, cada uma atuando em diferentes setores da cadeia alimentar: produção, armazenamento e distribuição. As mulheres constituem a maioria da força de trabalho dos sistemas alimentares locais e contribuem de maneira significativa para a segurança alimentar e a economia local.
DESENVOLVIMENTO GLOBAL EM NÍVEL LOCAL
Os governos e as indústrias alimentares globais querem nos fazer acreditar que se aproxima uma nova era na qual as grandes empresas produzirão alimentos para todos. A agenda política atual é tão dominante que a imprensa, as universidades, os colégios e os serviços de extensão promovem implicitamente a lógica do livre mercado como a única e a melhor forma de desenvolvimento. Isso indicaria que a agricultura familiar passou de moda, fazendo com que as famílias agricultoras deixem suas comunidades para se estabelecer em cidades onde encontrarão trabalho nos setores da indústria ou dos serviços e comprarão seus alimentos nos supermercados locais onde se vendem gêneros de todos os continentes. Dessa forma, se em alguma região global houver perda de safra, outro provedor se encarregará de suprir a demanda.
Essa agenda de segurança alimentar promete produção de alimentos em grandes quantidades para atender todos os habitantes do planeta. Mas será que a liberalização dos mercados realmente pode garantir a segurança alimentar? O livre comércio tem sido promovido durante as últimas décadas e, no entanto, no ano passado os mercados demonstraram que não são provedores tão estáveis quanto se proclamavam. Quando, no início de 2008, os investidores começaram a regular o mercado de alimentos, o preço do arroz atingiu seu nível mais alto e os países importadores foram os que mais sofreram. O preço dos alimentos dobrou e quase 200 milhões de pessoas passaram a engrossar o número de famintos no mundo. Para a doutrina do livre mercado, os alimentos são apenas mais uma mercadoria e, portanto, o conjunto da cadeia industrial alimentar funciona melhor quando os preços do trabalho e dos outros in- sumos estão em seus níveis mais baixos. Dessa maneira, os agricultores se veem obrigados a trabalhar como peões agrícolas ou a migrar para as cidades em busca de outras fontes de renda.
Nesse tipo de sistema, o preço dos alimentos pode subir ou cair, conforme a conveniência do mercado, empurrando cada vez mais pessoas para a pobreza. Essas oscilações estão fora do controle dos habitantes das zonas rurais e até dos governos. O fardo é maior para as mulheres do que para os homens, uma vez que na maioria das famílias rurais são elas as responsáveis de pôr comida na mesa todos os dias. Além disso, a degradação das condições de vida nas áreas rurais mais pobres tem se traduzido em maiores níveis de violência – especialmente doméstica e sexual –, tendo como principais vítimas mulheres e meninas. E, apesar do livre mercado, em todo o mundo e em todas as profissões da cadeia alimentar a média dos salários das mulheres é significativamente menor que a dos homens. Cumpre ressaltar também o fato de que, em todo o mundo, as mulheres estão subrepresentadas, seja nos governos, nas áreas de pesquisa e extensão rural ou mesmo nos sindicatos e nas organizações de agricultores, o que faz com que seus interesses não recebam a devida atenção.
O DIREITO À ALIMENTAÇÃO E À PRODUÇÃO SUSTENTÁVEL DE ALIMENTOS
Felizmente o livre mercado não é a única opção para o desenvolvimento. Existem outros modelos que podem ser adotados para orientar o futuro da alimentação e da agricultura. Agricultores, trabalhadores do ramo da alimentação, pastores nômades e populações tradicionais têm um papel importante a cumprir num sistema alimentar global alternativo, mais fiável. E as mulheres também devem assumir seu papel.
O próprio modelo de soberania alimentar também é uma opção e seu conceito vinha sendo discutido por muitos anos quando se tornou público na Conferência Internacional da Via Campesina (www.viacampesina.org), em Tlaxcala, México (abril de 1996). Segundo definição da Via Campesina: A Soberania Alimentar é o direito dos povos a definir seus próprios sistemas alimentares e agrícolas; a proteger e regular a produção e o comércio agrícola internos para alcançar objetivos de desenvolvimento sustentável; a determinar seu grau de autossuficiência; a limitar o dumping de produtos em seus mercados (…). A Soberania Alimentar não nega o comércio internacional, mas sim defende a opção de formular as políticas e práticas comerciais que atendam melhor aos direitos da população à alimentação e a dispor de produtos agrícolas inócuos, saudáveis e ecologicamente sustentáveis.
Durante a Cúpula Mundial sobre Alimentação de 1996, a Via Campesina apresentou uma série de princípios que se reforçavam mutuamente e ofereciam uma alternativa às políticas mundiais de comércio no sentido de tornar realidade o direito das pessoas à alimentação. Assim, a soberania alimentar implica o direito dos indivíduos, dos povos, das comunidades e dos países a:
- alimentação e a produzir alimentos, o que quer dizer que todos têm direito a alimentos inócuos, nutritivos e culturalmente apropriados, aos recursos para produzir tais alimentos e à capacidade de suprir as suas próprias necessidades e a de sua comunidade;
- definir suas próprias políticas agrícolas, trabalhistas, pesqueiras, alimentares e de manejo de solos e água que sejam ecológica, econômica e socioculturalmente apropriadas para eles e seus contextos específicos;
- manejar, utilizar e controlar os recursos naturais que preservam a vida, como a terra, a água, as sementes, as raças de gado e uma maior biodiversidade agrícola, sem restrições impostas pelo direito à propriedade intelectual e livres de organismos geneticamente modificados;
- produzir e colher alimentos de forma ecologicamente sustentável, principal- mente por meio da produção orgânica e com poucos insumos externos, assim como por meio da pesca artesanal;
- definir seu próprio grau de autossuficiência alimentar e desenvolver sistemas alimentares autônomos que reduzam sua dependência dos mercados globais e das grandes corporações;
- proteger e regular a produção e o comércio domésticos, prevenir o dumping de alimentos em seus mercados, bem como dispensar a assistência alimentar que não seja necessária.
O marco da política de soberania alimentar é elaborado por uma rede global de movimentos sociais e organizações da sociedade civil. O objetivo é reunir as populações indígenas, pastoris e outros grupos rurais, tanto do Norte como do Sul, concedendo-lhes voz e a possibilidade de influir sobre questões globais pertinentes. É a resposta dos cidadãos às múltiplas crises sociais e ambientais induzidas pelos sistemas alimentares modernos (IAASTD, 2008; Pimbert, 2009).
SEGURANÇA ALIMENTAR, SOBERANIA ALIMENTAR E OPÇÕES POLÍTICAS
O conceito de soberania alimentar foi desenvolvido para se contrapor ao uso inadequado do termo segurança alimentar. No entanto, ambos os conceitos são frequentemente confundidos. A definição predominante de segurança alimentar, aprovada em diversas cúpulas alimentares e outras conferências amplamente difundidas, estabelece que todas as pessoas devem ter acesso a alimentos em quantidades suficientes e de boa qualidade todos os dias, mas não se preocupa em saber a procedência desses alimentos, quem os produz ou as condições em que são cultivados. Essa definição é favorável aos interesses dos exportadores de alimentos, que podem continuar a afirmar que a melhor maneira de garantir a segurança alimentar em países pobres é subsidiar e importar alimentos baratos ou recebê-los gratuitamente na forma de assistência alimentar, em vez de dar condições para que eles mesmos possam produzi-los. Isso aumenta a dependência desses países em relação ao mercado internacional, faz com que os agricultores familiares, pastores nômades e pescadores abandonem suas terras em direção aos centros urbanos e, em última instância, compromete ainda mais a segurança alimentar.
A soberania alimentar, por sua vez, fomenta a autonomia da comunidade ao permitir que homens e mulheres decidam quais sementes plantar, que animais criar, que tipo de agricultura praticar, de que intercâmbios econômicos participar e até o que vão comer no jantar. Aqui cabe ressaltar a dimensão política da questão: contrariamente ao conceito mais técnico de segurança alimentar, a soberania alimentar aponta para a responsabilidade dos povos e governos de levar em consideração as consequências locais dos processos políticos e econômicos em nível macro.
A conexão entre mulheres e soberania alimentar é evidente. Afinal, são as mulheres que fazem a maior parte do trabalho de produção agrícola e comércio de alimentos, já que têm sido as principais responsáveis pela alimentação da família. Graças a sua estreita relação com a produção para o auto-consumo, as mulheres detêm conhecimentos tradicionais sobre sementes, técnicas de plantio e de armazenamento e produtos tradicionais. Entretanto, esses conhecimentos não são reconhecidos. Além disso, a maioria das mulheres não tem direitos de acesso à terra e à água, assim como tem muito pouco poder de intervir nas tomadas de decisão em suas famílias e comunidades.
AS MULHERES SE PRONUNCIAM SOBRE O MOVIMENTO PELA SOBERANIA ALIMENTAR
As mulheres têm contribuído de forma decisiva para cunhar o conceito de soberania alimentar (Desmarais, 2007), conquistando novos espaços em estruturas antes dominadas pelos homens. Por meio da Comissão de Mulheres da Via Campesina, por exemplo, elas têm conseguido influenciar os debates sobre políticas globais, tais como:
Sobre o direito a produzir
- Nós, agricultores de todo o mundo, temos o direito de produzir nossos próprios alimentos em nossos próprios países, declaração feita pela insistência das mulheres, que tiveram forte influência sobre a Declaração dos Direitos das Camponesas e dos Camponeses (2009).
Sobre a Agroecologia
- As mulheres enfatizam a necessidade de reduzir o uso de substâncias químicas que coloquem a saúde em risco (por exemplo, os agrotóxicos, antibióticos e os hormônios de crescimento).
Sobre os direitos de propriedade
- As mulheres têm sistematicamente ressaltado a desigualdade entre homens e mulheres em termos de propriedade da terra e de outros recursos.
Sobre a democracia e a participação cidadã na criação de políticas
- As mulheres enfatizam que sua participação plena é necessária para promover um acesso equitativo à terra e para garantir o impacto positivo das políticas agrícolas sobre suas vidas.
Vale destacar que invariavelmente os temas trazidos à discussão pelas mulheres são relevantes não só para elas, mas para todos os produtores e consumidores de alimentos.
COMO PROMOVER O PAPEL DAS MULHERES E A SOBERANIA ALIMENTAR?
A agenda da soberania alimentar estipula que não é o mercado que deve controlar os sistemas alimentares, mas sim as pessoas e suas organizações e instituições democráticas. As políticas envolvendo a alimentação são muito importantes e complexas para serem deixadas somente nas mãos de monopólios corporativos, profissionais da agricultura ou economistas. Elas também devem ser de domínio de homens e mulheres comuns. Afinal, os sistemas alimentares não são de ordem apenas econômica, mas também abrangem o respeito à população e à natureza. As economias camponesas respeitam esses valores, pois sabem como combinar a produção para o autoconsumo e aquela destinada ao mercado.
Nesse sentido, a soberania alimentar implica uma maior participação cidadã e formas mais diretas de democracia na gestão dos sistemas alimentares. Os cidadãos, especialmente as mulheres, devem cultivar as habilidades e os processos necessários para uma participação cívica ativa na abordagem de assuntos públicos. Isso não é tarefa fácil. Por exemplo, embora as organizações locais cumpram um papel-chave na elaboração de reformas visando a soberania alimentar, nem sempre dedicam espaços para a participação efetiva das mulheres, comprometendo o caráter democrático dos debates e ações. Assim, para que a voz delas seja ouvida, essas organizações têm que considerar as prioridades das mulheres e apoiar o desenvolvimento de suas capacidades.
N movimento de soberania alimentar vem enfrentando uma rede poderosa e bem organizada de pessoas vinculadas à ciência, ao agronegócio e aos grupos dominantes. Portanto, é primordial que a rede de agricultores familiares, processadores locais de alimentos e lideranças femininas se fortaleça politicamente. Pode chegar a formar um movimento que agregue comunidades, povos, bairros e unidades ecológicas, assumindo uma posição de contestação para promover mu- danças sistêmicas profundas na sociedade. Tal movimento também deveria ser capaz de tanto se opor como se unir a organizações do governo local e do Estado, assim como às grandes empresas alimentares – sempre e quando atuem em nome dos cidadãos comuns. Para tanto, é preciso recuperar e desenvolver um conhecimento que seja ecologicamente apropriado, sensível quanto às desigualdades entre gêneros, socialmente justo e adequado a cada contexto. O processo como um todo deveria ainda conduzir à democratização da pesquisa, reunindo pesquisadores e famílias produtoras para definir conjuntamente suas prioridades e campos. Da mesma forma, a soberania alimentar implica a implementação de uma reforma agrária radical e a distribuição equitativa, entre homens e mulheres, do direito ao acesso e uso de recursos que incluam a terra, a água, as florestas, as sementes e os meios de produção. O conceito dos direitos de propriedade deve ser redefinido de modo que as pessoas mais aptas a produzir possam ter acesso à terra e às florestas. Por fim, vale ressaltar que todas as pessoas precisam de alguma segurança material básica para que possam participar desses novos espaços democráticos (Pimbert, 2009).
Hoje, muitas mulheres e suas redes estão se engajando cada vez mais nesses processos de transformação. Elas, bem como os homens com que trabalham, estão criando esperanças e uma nova solidariedade à medida que a luta pela soberania alimentar vai se globalizando.
Michael Pimbert
Instituto Internacional para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (IIED)
[email protected]
Referências Bibliográficas
DESMARAIS, A.A. La Vía Campesina. Globalisation and the power of peasants. Londres: Pluto Press, 2007.
IAASTD. International Assessment of Agricultural Knowledge, Science and Technology for Development. MCINTYRE, Beverly D.; HERREN, Hans R.; WAK- HUNGU, Judi; WATSON, Robert T. (Ed.). Island Press, 2008.
Via Campesina. El Derecho a Producir e el Acceso a la Tierra. Posición de Via Campesina en cuanto a Soberanía Alimentaria presentada en la Cumbre Alimentaria, 13-17 de novembro 1996. Roma, 1996.
Via Campesina. Declaración de los Derechos de Campesinas y Campesinos. Seul, 2009.
PATEL, R. Stuffed and starved. Markets, Power and the Hidden Battle for the World Food System. Porto-bello Books, 2007.
PIMBERT, M.P. Towards Food Sovereignty. Reclaiming autonomous food systems. (E-book). Londres: IIED, 2009. Disponível em: <www.iied.org/natural-resources/publications/multimedia-publication-towards-food-sove-reignty-reclaiming-autonomous-food-systems>.
Baixe o artigo completo:
Revista V6N4 – Mulheres e soberania alimentar