Ana Paula Teixeira de Campos Eugênio Alvarenga Ferrari
“(…) a terra para mim é vida, autonomia, liberdade, sabe? Direito que a pessoa tem de falar, de ouvir, enfim, de trabalhar. Em resumo, a terra significa vida, você tá entendendo? Porque é onde você tem tudo. Se você tem um pedaço de chão, você tem tudo, você tem autonomia, de fazer bem o que você pensa, quer. Você sonha, você tem a liberdade de plantar, de colher, sabe? Você só não tem a liberdade de destruir ela. Você tem que pensar que hoje ou amanhã você tem que deixar ela para os outros, né? Sinceramente, um pedaço de chão para quem trabalha na roça, principalmente, é tudo.”
(Paulinho, 41 anos, agricultor e pequeno proprietário)
O pequeno município de Araponga fica localizado na região da Zona da Mata de Minas Gerais e ocupa parte da Serra do Brigadeiro, que alguns nativos preferem chamar de Serra dos Arrepiados. O clima é ameno, propício para a produção de café arábica de excelente qualidade. De acordo com dados do IBGE (2005), o município possui 7.942 habitantes. Desse total, aproximadamente 80% residem na zona rural, onde 86% das propriedades rurais têm menos de 50 hectares e ocupam 38% da área total.
A experiência apresentada neste artigo foi de- nominada, pelos próprios agricultores, de conquista de terras em conjunto. Trata-se de uma alternativa de acesso à terra por parte dos que não tinham nenhuma perspectiva de permanecer no campo, distinta das formas de luta dos movimentos sociais de reforma agrária hoje existentes no país.
Na conquista de terras em conjunto, pequenos proprietários e trabalhadores rurais adquirem conjunta- mente uma área de terra, onde cada novo proprietário terá a chance de comprar uma propriedade, que em média varia entre 1 e 6 hectares, de acordo com suas condições de pagamento. A parte da área que será destinada ao novo proprietário é definida a partir de critérios construídos pelo grupo. Os que têm melhores condições financeiras fazem um empréstimo solidário ao novo proprietário para a compra da terra, o que acontece ainda hoje entre parentes e, em menor número, entre amigos. A dívida é sempre paga com produtos, como arrobas de café, milho ou em cabeças de gado. Essa experiência se institucionalizou em 1989 e até 2007, de acordo com os dados fornecidos pelo Sindicato de Trabalhadores Rurais de Araponga, 174 famílias já haviam conquistado o seu pedaço de terra, totalizando 620 hectares.
O Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM) iniciou um trabalho de promoção da Agroecologia junto a agricultores(as) familiares de Araponga em 1987, mas foi só no início dos anos 1990 que se deu conta do andamento e da importância da experiência, que de fato constituía uma precondição para a ampliação da Agroecologia no município. A partir daí, o CTA-ZM buscou apoiar e estimular a conquista de terras em conjunto, mobilizando recursos para sua sistematização e expansão.
Portanto, é uma experiência que teve sua origem e continua sendo gerida pelos(as) próprios(as) agricultores(as), sendo vista por estes(as) como uma das estratégias mais efetivas para a superação da pobreza rural. Vale ressaltar que o conceito de pobreza adotado pelos(as) agricultores(as) não está somente relacionado à falta de acesso a bens materiais e serviços básicos, mas também à situação de dependência e falta de autonomia das famílias, à perda da autoestima, da autodeterminação e da identidade cultural.
Conquista de terras em conjunto: origens na história de família
“A terra significa assim: o meio para nós sobreviver, plantar, colher. Se não tivesse terra, não tinha nem como a gente sobreviver… Agora a situação melhorou muito, tá na casa da gente.”
(Neuza, 27 anos, agricultora e pequena proprietária)
A conquista de terras em conjunto começou com a família Lopes, composta por nove irmãos e irmãs, sendo que três deles realizaram a primeira compra de terra em conjunto e em família, entre 1977 e 1978: o seu Alfires, conhecido como Fizim (falecido em 1999), o seu Aibes, conhecido como Bibim, e o seu Niuton, conhecido como seu Neném. Segundo o depoimento de seu Neném, a história da conquista surgiu por causa de Bibim, que desejava sair do regime de parceria por não ter terra suficiente para manter a família. Por isso, precisava comprar mais terra. Os proprietários da região, entretanto, não vendiam parcelas de terra muito pequenas e nem davam crédito aos meeiros. Foi então que os irmãos Neném e Fizim se reuniram para adquirir um pedaço maior, para que Bibim pudesse comprar sua parte. A compra foi realizada com empréstimo bancário, venda de produtos e o que era conseguido com o trabalho dos três.
Passados dez anos, ao voltarem de uma reunião das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), seu Neném e Fizim vinham caminhando e refletindo sobre a leitura de uma passagem bíblica que, segundo seu Neném, era assim: “Falava que os cristãos vendiam suas propriedades e colocavam nos pés dos apóstolos. Mas a gente interpretou que esse trecho não estava certo. A gente tinha que fazer diferente. A gente imaginou assim: se vender, aí piora, temos que fazer o contrário: comprar.” Tiveram então a idéia de criar a conquista de terras em conjunto.
A PRIMEIRA COMPRA COLETIVA
“A conquista de terra… eu acho que conheci uma história maravilhosa e faço parte dela. O que eu puder fazer para um trabalhador ter um pedaço de terra, o que eu puder contribuir, eu vou fazer. Para mim a história da conquista de terra não pode acabar nunca, porque cada dia que ela cresce é um trabalhador que está conseguindo o seu pedaço de terra, é um sonho realizado.”
(Sônia, 33 anos, agricultora e pequena proprietária)
Depois da primeira compra em família, em 1977, a primeira compra coletiva foi realizada em 1989, envolvendo não só membros dos Lopes, mas outros meeiros e trabalhadores rurais. Assim, o que era história de família e acontecia com empréstimo de produtos, posteriormente se transformou em um fundo de crédito rotativo administrado pelo Sindicato de Trabalhadores Rurais de Araponga, que recebeu uma doação da Fundação Ford para ser usada como capital de giro para a criação do fundo. A partir de então, o empréstimo passou a ser feito com um recibo do sindicato, com descrição da quantidade e o equivalente em arrobas de café. Ao pagar o empréstimo, o que pode ser feito em até dois anos, a pessoa ganha um recibo de quitamento da dívida.
Com a disseminação da experiênica no município, o grupo elaborou um conjunto de critérios para a entrada de novos membros. Entre 1994 e 1995, algumas pessoas se reuniram e escreveram os Dez Mandamentos. Ele pode ser considerado como o documento mais importante que orienta o grupo e permite a adesão de novos compradores de terras em conjunto.
Os Dez Mandamentos da conquista de terras em conjunto são:
- Interesse pela terra: ter amor pela terra e compromisso.
- Comportamento no grupo: ter sinceridade, não mentir, não tomar decisões individualistas, participar de reuniões.
- Meio ambiente: ter consciência ecológica.
- Divisão: formar um grupo responsável e não tomar decisões precipitadas.
- Conquista das terras: fazer economia para comprar terra, ter em mente que isso é possível e viver em sintonia com a comunidade.
- Forma de convivência: ter diálogo e compreensão com os companheiros, tratar de assuntos que envolvem a família, participação e reflexão religiosa em grupos, independente de seita.
- Participação e contribuição da mulher: lutar e animar o companheiro, exigir seu nome nos documentos, não ter vergonha de ser lavradora, participação na partilha das terras, participação nas decisões em grupo.
- Participação agrícola: participação nas trocas de serviço e mutirão, recuperação e conservação do solo, visitar as propriedades dos companheiros, usar leguminosas.
- Maneiras de usar as coisas móveis do grupo: usar tração animal para os serviços do grupo, uso dos animais por pessoas acostumadas com esse trabalho, reconhecer as necessidades maiores de serviços, ter zelo com os animais.
- Maneira de usar os imóveis: conservar e ampliar as estradas, manter trilhas, usar e oferecer estruturas como moinho, engenho, olaria, usina, manter torneiras fechadas quando a água for pouca, controlar seus pequenos animais para não prejudicarem a propriedade vizinha.
Nos mandamentos podemos identificar três grupos de temas abordados pelos agricultores. Primeiro, há um conjunto de postulados morais que permitem avaliar a confiabilidade dos membros e definir padrões éticos de conduta comunitária (mandamentos 2, 4, 5 e 6). Em segundo lugar, eles determinam uma série de procedimentos de decisão e resolução de problemas comuns (mandamentos 9 e 10). Por fim, alguns dos mandamentos incorporam também questões de gênero e meio ambiente (mandamentos 1, 3, 7 e 8). E, de modo geral, todos incorporam na sua redação o discurso agroecológico. No conjunto, os Dez Mandamentos configuram regras-em-uso que, elaboradas pelos próprios agricultores e agricultoras, permitem monitorar o comportamento daqueles que participam da conquista de terras, reduzindo a possibilidade de oportunismo e risco para a experiência.
AS CONQUISTAS DA CONQUISTA: LIBERDADE, PRÁTICAS AGROECOLÓGICAS E QUALIDADE DE VIDA
“Terra é liberdade, é segurança, é conforto. Para mim terra é quase tudo, nossa mãe, é dela que a gente veste, que a gente come, que a gente tira a nossa saúde. A conquista de terra foi a liberdade, só de ter a minha casa na minha propriedade e você deitar tranquilo à noite e acordar tranquilo. Você planta o que você quiser, antes não podia fazer isso, o dono da terra achava que ia prejudicar a lavoura. ”
(José, 34 anos, agricultor e pequeno proprietário)
A experiência da conquista de terras em conjunto traz lições, aprendizados e exemplos de superação da pobreza rural, dos problemas individuais, mas também coletivos. As associações de crédito participativo e as organizações associativas desenvolvidas pelos próprios agricultores ampliam as alternativas de ação e proporcionam novas modalidades de acesso e mobilização de recursos materiais e imateriais. Assim, o que os agricultores familiares de Araponga estão realizando representa muito mais do que obter bem-estar material. Eles não estão apenas comprando terra, mas também adquirindo autonomia, que se manifesta em todas as esferas da vida: no manejo da lavoura, na diversificação da produção, no uso de práticas agroecológicas dentro da propriedade, na frequência dos filhos à escola, na participação em movimentos sociais, nas reuniões do sindicato, na realização de cursos, na construção da casa própria e na qualidade dos alimentos produzidos e consumidos pela família.
A passagem da condição de meeiros e trabalhadores rurais para pequenos proprietários modifica não apenas as alternativas de organização produtiva, moradia e segurança alimentar, mas também reforça o auto-respeito dos agricultores. Mesmo para os que são meeiros, o fato de possuir terra está diretamente ligado à conquista de liberdade, que foi e ainda é uma das principais motivações que leva os criadores da experiência a desejarem sua ampliação para abranger um maior número de meeiros e trabalhadores rurais sem terra. Segundo seu Neném, “O problema de ser meeiro não é a questão de trabalhar, é a falta de liberdade mesmo. Até para falar a pessoa é proibida às vezes de expressar aquilo que sente, ele é proibido.”
Às vezes, o valor atribuído à liberdade –para fazer o que quiser, poder ir onde quiser e sair à hora que quiser, os filhos poderem ir à escola, os pais poderem participar do movimento –é maior do que o da própria terra:
“A conquista significou um crescimento não simplesmente de questões financeiras, mas um crescimento social, para a gente gerenciar a terra que é da gente… Uma autonomia… libertação. A realização de um sonho também. Até quebrou, assim, um pouco, a tradição dos filhos de só adquirir terras por herança ou doação (…)”
(Benjamim, 37 anos, agricultor e pequeno proprietário)
A posse da terra também permitiu aos peque- nos proprietários decidirem a forma como querem conduzir o manejo e os processos de trabalho na propriedade. Do total das 79 famílias entrevistadas em pesquisa realizada em 2005, 62 (78%) afirmaram que, ao possuírem terra própria, obtiveram melhoria na qualidade de vida, liberdade para plantar o que desejar, fazer o seu horário, não usar agrotóxicos e usar menos adubos químicos, usar adubo orgânico, ter lavoura orgânica, diversificar a produção e ainda a possibilidade de ter pequenas criações, horta e pomar. Outra característica importante é o fato de quase não precisarem comprar produtos industrializados.
“Tocava a lavoura à meia, em parceria. Era longe, levava uma hora e meia para ir e voltar. Hoje a gente trabalha com outra dimensão, trabalha no que é nosso. O jeito mudou, a qualidade é melhor. Aqui pode plantar de tudo e com mais cuidado e qualidade. Aqui é orgânico e pode plantar junto, café com feijão.”
(João, 30 anos, agricultor e pequeno proprietário).
No caso das mulheres, as que trabalhavam como meeiras juntamente com os maridos ou com os pais também relatam que as principais mudanças foram a substituição do uso de agrotóxicos por práticas menos agressivas ao solo e à saúde dos agricultores, assim como a maior disponibilidade de tempo para se dedicar aos filhos, à casa, às criações e poderem ter uma horta. Vale destacar que a ênfase nas práticas agroecológicas nas propriedades mostra o resultado do trabalho do CTA-ZM junto aos agricultores e agricultoras:
“Eu era empregado, trabalhava das 7 às 17 horas. Trabalhava no pomar de pêssego, morango, cultura de baroa e capineira para gado. Depois passou tudo para cultura do café. Todas as culturas usavam veneno, Butox, Round-up, Bidrin. Hoje não uso adubo químico e nem veneno.”
(Sebastião, 42 anos, agricultor e pequeno proprietário)
Outro item importante relatado pelos agricultores, e comprovado pelas visitas feitas às famílias, é em relação à moradia. Nos depoimentos, ela também é frequentemente relacionada à tão sonhada liberdade. Portanto, a maioria das famílias sente orgulho por ter maior liberdade para plantar o que quiser e morar na própria casa.
A iniciativa da família Lopes foi fundamental para realizar a conquista de terras em conjunto, mas a consolidação dessa experiência também se deve em parte ao trabalho desenvolvido pelo CTA-ZM, que, embora não se dirigisse aos problemas de posse e propriedade da terra, ampliou os recursos organizacionais e o acesso às redes externas de agricultores, além de oferecer uma nova visão da agricultura e suas possibilidades. Foi a partir da experiência com Agroecologia que os(as) agricultores(as) viram que só seria possível fazer o manejo da lavoura de modo autônomo e sem uso de agrotóxicos se tivessem a sua própria terra.
Dessa forma, tanto as aspirações por maior liberdade e autonomia, que emergem dos depoimentos, quanto a melhora geral na qualidade de vida, estão presentes como resultados da conquista de terras em conjunto. Os agricultores que deixaram de ser meeiros e trabalhadores rurais para se transformarem em pequenos proprietários reduziram significativamente a vulnerabilidade a que estavam submetidos, garantindo melhores condições de reprodução da unidade familiar.
Ana Paula Teixeira de Campos
mestre em Extensão Rural pela Universidade Federal de Viçosa (MG)
[email protected]
Eugênio Alvarenga Ferrari
engenheiro agrônomo colaborador do CTA-ZM e mestrando em Extensão Rural pela Universidade Federal de Viçosa (MG)
[email protected]
Referências Bibliográficas:
CAMPOS, Ana Paula Teixeira de. A conquista de terras em conjunto: redes sociais e confiança
– a experiência dos agricultores e agricultoras familiares de Araponga (MG). 2006. 102 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Viçosa, Viçosa.
CONQUISTA da terra em conjunto. Direção de Tânia Calliari. Viçosa, Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata, 2000, fita vídeo (33 min.), VHS, som, color.
GEERTZ, Clifford. The Rotating Credit Association: a “middlerung” in development. Economic Development and Cultural Change, v. 10, n. 3, p. 241-263, April 1962.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia da Letras, 2000. 409 p.
SANTOS, A. D.; FLORISBELO, G. R. Desenvolvimento territorial e combate à pobreza: sistematização
de três experiências no estado de Minas Gerais, Brasil. Centro de Tecnologias Alternativas (CTA- ZM), 2004.
Baixe o artigo completo:
Revista V5N4 – A conquista de terras em conjunto: autonomia, qualidade de vida e Agroecologia