Ana Paula Gomes de Melo, Eduardo Magalhães Ribeiro, Flávia Maria Galizoni
A comercialização na agricultura familiar é um assunto importante para pesquisa e extensão rural desde os anos 1970. Nessa época o associativismo já era indicado para enfrentar vários problemas, pois atuando em conjunto as famílias venderiam mais, captariam recursos com mais facilidade, criariam canais para acessar a extensão rural e programas de crédito. Sindicatos de trabalhadores rurais, agências públicas e organizações de mediação animaram experiências associativas, sobretudo com pequenos projetos comunitários, que se tornaram o principal meio de apoiar a comercialização. Elas se expandiram desde então, receberam recursos e fizeram parte dos objetivos de muitos programas.
A partir dos anos 1990, os pequenos projetos coletivos de geração de renda foram postos em novo quadro. Movimentos sociais e das organizações não-governamentais assumiram participação cada vez mais ativa na criação de programas de desenvolvimento e estimularam experiências associativas de geração de ocupação e renda por meio de pequenos projetos. Isso era comum também entre agências públicas e de cooperação internacional, que incentivaram iniciativas, mesmo informais e muito localizadas, para ampliar os canais de comercialização e ele- var a renda de famílias rurais. Com o tempo, alguns enfoques foram se destacando nesses pequenos projetos: modificar mentalidades, relações de troca, que deveriam ser mais solidárias; subordinar os valores individualistas aos da coletividade; cooperar, em vez de participar da competição imposta pelos mercados. Esses são os princípios da economia solidária, cujo grande desafio tem sido conciliar os fundamentos éticos da proposta e o ganho de vantagens individuais pelos participantes.
Pequenos projetos associativos alcançaram graus variados de sucesso quando seus resultados econômicos foram avaliados a partir dos seguintes critérios: ocupações criadas, renda adicionada, mais valor agregado. Ocorre, porém, que populações rurais engajadas nessas experiências associativas nem sempre priorizaram apenas resultados materiais. Foram além da aspiração de ganhos em dinheiro e, para desespero de alguns avaliadores, muitas vezes privilegiaram outros benefícios, como o aumento da autoestima do grupo, o acesso à capacitação, a participação na política, o engajamento de mulheres em novas atividades não-domésticas e a abertura de novas redes de contato social.
Partindo de experiências de lavradores com pequenos projetos associativos, este artigo analisa e busca compreender a amplitude dos resultados, mostrando que, ainda que sejam importantes os produtos materiais, muitas vezes os excelentes resultados não-materiais são desconsiderados.
EXPERIÊNCIAS ASSOCIATIVAS
Dentre as muitas experiências de estímulo ao associativismo rural de Minas Gerais, algumas se destacam pela duração e maturidade dos resultados para as famílias e organizações mediadoras rurais. Este artigo é baseado em iniciativas localizadas nas regiões do Alto Vale do Jequitinhonha, Vale do Mucuri e Noroeste do estado, áreas de atuação do Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV), da Associação Regional Mucuri de Cooperação de Pequenos Agricultores (Armicopa) e da Cáritas Diocesana de Paracatu, respectivamente.
Nessas organizações e regiões foram pesquisadas as seguintes experiências:
- Noroeste/Cáritas de Paracatu: Grupo de Doceiras do Projeto Assentamento Saco do Rio Preto; Grupo de Doceiras do Projeto de Assentamento Fruta D’anta; Grupo de Feirantes e Grupo de Horticultores da comunidade Santa Rita;
- Nordeste/Vale do Mucuri/Armicopa: Associação dos Pequenos Produtores de Misterioso (APPRM), Associação Solidariedade do Povoado de Limeira (Aspel), Associação Comunitária do Projeto de Assentamento Fazendo Aruega (Ascopafa) e Grupo de Mulheres da Padaria Comunitária, também do Projeto de Assentamento Aruega;
- Nordeste/Vale do Jequitinhonha/CAV: Associação dos Apicultores do Alto Vale do Jequitinhonha (Aapivaje), Grupo de Trabalho (GT) Derivados da Cana, GT Agroindústria de Cana-de-açúcar da comunidade Morro Redondo e GT Feira.
Essas organizações atuam nas regiões desde, pelo menos, metade da década de 1990. Dedicam-se ao desenvolvimento rural, à busca de espaços para a participação política e, mais recentemente, fomentam a economia solidária. Cada uma delas, porém, tem características particulares, que se refletem em metodologias diferentes de trabalho e, consequentemente, na articulação de forças distintas para alcançar seus objetivos.
A Cáritas Diocesana de Paracatu é uma agência de origem católica que apóia comunidades e assenta mentos do Noroeste de Minas Gerais a partir de demandas que lhe são propostas, delimitando seu público-alvo dentro de especificidades sociais e religiosas. A Armicopa é uma federação que envolve 12 associações locais ou micro- territoriais de sete municípios dos Vales do Mucuri e do Jequitinhonha e atua por meio das organizações comunitárias que compõem sua base, todas relacionadas à agricultura familiar. O CAV delimita política e espacialmente sua área de atuação ao conjunto de municípios onde atuam as organizações e sindicatos de trabalhadores rurais parceiros, adotando a estratégia de grupos de trabalho (GTs) formados de acordo com temas de interesse de seu público.
Todas essas organizações exercem um papel relevante na trajetória das famílias rurais ao estimularem pequenos projetos associativos comunitários, considera- dos pelas comunidades como um meio para realizar conquistas importantes: seja o equipamento de beneficiamento da mandioca ou a colocação da rapadura em mercados distantes, seja a geração de renda por meio do artesanato ou a melhoria da alimentação do rebanho. Os agricultores identificam, portanto, saldos positivos nessas experiências coletivas e reconhecem a importância da atuação das organizações mediadoras para a obtenção desses resultados, sempre destacados como vitórias alcançadas na luta pela melhoria da vida.
No entanto, analisando de forma comparativa, percebe-se que os resultados alcançados pelas ações de organizações mediadoras e grupos locais dependem muito da metodologia de trabalho utilizada. Nos casos em que há contatos mais frequentes, em que se privilegia o debate e a tomada de decisões de forma coletiva e participativa, percebe-se maior segurança por parte dos agricultores, que enumeram tanto as vantagens e os resultados da experiência associativa da qual participam quanto os obstáculos enfrentados e as formas como foram superados. Mas eles enfatizam também, e com muito mais clareza, as dificuldades estruturais encontradas. Constata-se, portanto, que os projetos que favorecem a integração efetiva dos agricultores permitem que eles avaliem a trajetória da experiência e tracem novos caminhos, com a segurança de quem constrói um futuro em parceria. As experiências mais democráticas não resultam apenas em mais participação: trazem, igualmente, a corresponsabilização e uma análise muito lúcida dos limites e possibilidades efetivas do projeto.
O contrário costuma ocorrer quando os projetos são dirigidos e controlados mais pelas organizações mediadoras. Nesses casos, os participantes ficam constrangidos para avaliar a experiência e tendem quase sempre a considerá-la uma doação, algo externo à vida deles, que, portanto, merece pouco zelo e atenção. Assim, em- bora a atuação das organizações mediadoras se revele potencializadora das experiências associativas, ela pode, às vezes, não motivar realmente os agricultores. Isso acontece quando os projetos são pensados a partir de demandas que são estranhas aos grupos sociais locais, ou quando a ênfase da proposta recai exclusivamente sobre os benefícios materiais. Nesses casos, os pequenos projetos surgem de aportes oferecidos por editais que carregam consigo um quadro de requisitos pré-estabelecidos. E, então, questões como prazos, atividade principal, exigência de parâmetros de desempenho e de eficiência de gestão financeira se transformam em prioridades. Já o debate sobre objetivos comuns, a definição de normas de uso e outros aspectos, ao mesmo tempo subjetivos e operacionais para o grupo de agricultores, ficam em segundo plano.
Por isso os técnicos das organizações citadas neste artigo optaram por estabelecer um contato próximo com os agricultores. Ouvi-los e incentivá-los, principalmente no que diz respeito à formação política, é mais do que uma valorização do espírito associativo, é a própria garantia de que a organização terá uma entrada privilegiada naquela comunidade por ser portadora de uma mensagem diferente, mais crítica e também mais parceira. Assim, à medida que os objetivos comuns vão sendo definidos, são criados métodos para alcançá-los. Foi dessa forma que surgiram os GTs assessorados pelo CAV, que obtiveram resultados consistentes em termos de abertura de mercados e aumento do número de participantes. Foi também por meio da participação e corresponsabilização que a Cáritas de Paracatu conseguiu superar a decepção de um grupo de agricultores quando a experiência de comercialização não alcançou os objetivos propostos.
OBSTÁCULOS COMUNS A PEQUENOS PROJETOS ASSOCIATIVOS
Ao analisar o conjunto das iniciativas de pequenos projetos podemos verificar que alguns problemas econômicos se repetem com grande freqüência, constituindo quase um padrão: (a) a entrada no mercado fica impossibilitada pela competição com outros agentes econômicos e/ou por não alcançar economias de escala; (b) não se consegue a participação ampla e constante da comunidade, sempre limitada e conflituosa; (c) as rendas familiares não se elevam porque a inserção da associação nos mercados é ocasional; (d) os níveis técnicos que garantem qualidade aos produtos não são alcançados; (e) os benefícios ficam concentrados num grupo reduzido de famílias que controlam a associação; (f) há exigência constante de mais recursos para alcançar uma escala ótima; (g) o grupo alcança o equilíbrio na estagnação, pois não consegue melhorar a qualidade da produção e da entrada nos mercados e, ao mesmo tempo, não tem coragem de desistir da experiência, que já lhe custou tantos sacrifícios.
Apesar de aparecem com grande freqüência, esses problemas não estão exatamente relacionados ao caráter dos grupos, dos pequenos projetos, das organizações de mediação, nem da sua lógica própria de gerir os recursos. Os problemas com o sucesso econômico existem, mas são multiplicados pela perspectiva imposta pelo mercado e, às vezes, pela assessoria ao pequeno projeto econômico comunitário.
OUTRO MODO DE VER AS COISAS
Além do caráter propriamente econômico, as experiências conjuntas com pequenos projetos e grupos locais revelaram diversos aspectos positivos. Um primeiro aspecto diz respeito ao caráter não-paternalista desses projetos, que foram gestados e construídos na perspectiva de promoção humana, responsabilidade e solidariedade social dos beneficiários. Associado a isso, destaca-se o rigor no uso e aprendizado de controle dos recursos: o empenho na correta aplicação, na oferta de benefícios regrados, no controle coletivo dos investimentos e dos seus resultados. Outro ponto que se destacou como muito positivo foram os resultados subjetivos alcançados junto à população beneficiária, principalmente para as mulheres, no que diz respeito ao ganho em autoestima, na ampliação de espaços de atuação na comunidade, na família, na vida pública e nos mercados. Essas experiências favoreceram a criação de redes de sociabilização que extrapolaram a família e o doméstico. Nesse sentido, são a oportunidade para mulheres, que muitas vezes se dizem “esquecidas pelo mundo”, de dominarem códigos de novas condutas e de novas possibilidades.
Deve ser ressaltado também que essas organizações sempre colocam um pequeno volume de recursos nos projetos. Dessa forma, mesmo que o sucesso econômico não exista, seu custo é muito reduzido para a sociedade. É, afinal, o custo da experimentação e do aprendizado para o enfrentamento autônomo dos grandes problemas do grupo. Além disso, o pequeno volume dos recursos aplicados nos projetos diminui a distância entre os beneficiários e o projeto, torna mais fácil seu manuseio e ensina as comunidades rurais a não quererem beneficiar, com poucos recursos, um número muito grande de pessoas. Poucos recursos também facilitam a repartição de benefícios, desestimulam o controle pessoal do projeto, incentivam o grupo a se empenhar no sucesso da iniciativa e favorecem o debate de ideias sobre objetivos e alternativas porque todos os participantes dominam o assunto. Assim, as comunidades rurais agregam novos valores aos ganhos, os quais, acreditava-se, deveriam ser apenas quantitativos.
Nesse sentido, os pequenos projetos de geração de renda, apesar de concebidos principalmente como projetos econômicos, precisam ser entendidos também como processos formativos, políticos, sociais, festivos, experimentais, distributivos – porque costumam distribuir principalmente esperança e cidadania. Mesmo que envolvam apenas recursos para uma lavoura comunitária, mesmo que sirvam apenas para consertar um triturador, mesmo que apenas transfiram recursos para um grupo de mulheres adquirir açúcar para fazer doces em conjunto. Esses projetos atingem resultados que as técnicas costumeiras de avaliação não conseguem captar, porque são baseadas em análise de custo-benefício, de retornos do capital in- vestido, de aumentos de renda monetária, de nível de bem-estar material, de toneladas produzidas. Entretanto, quando restritos ao aspecto econômico, os grupos acabam aprendendo mais sobre os obstáculos do mercado que sobre técnicas de vendas; mais sobre as dificuldades do crédito que sobre suas potencialidades; mais sobre barreiras à entrada que sobre o caminho para as economias de escala. Ou seja, aprendem sobre as suas impossibilidades. Por isso, nos pequenos projetos econômicos, é comum criticar o que se vê e não perceber seu outro lado, oculto e valioso. Essa face oculta só aparece num olhar menos focado no objetivo, mais voltado ao conjunto, à trajetória, à caminhada. Só então é que se enxerga além do imediatamente econômico. E esse aprendizado, quase sempre, é a porção mais rica desses projetos.
Por fim, é possível afirmar que os pequenos projetos de geração de renda atuam também, e talvez principalmente, sobre procedimentos, sobre mentalidades, sobre culturas e práticas. E isso tem efeitos inclusive sobre o econômico, embora não sejam imediatos nem possam ser medidos com facilidade. Assim, pequenos projetos são o experimentalismo possível no campo do econômico. Direcionam para o aprendizado conjunto e a prática solidária e, dessa forma, permitem que muitos grupos excluídos se apropriem de recursos materiais e simbólicos para organizar sua atuação no mundo, para consolidar seus caminhos e para construir novas causas, próprias e independentes.
Ana Paula Gomes de Melo
administradora, mestre do Núcleo de Pesquisa e Apoio à Agricultura Familiar da Universidade Federal de Lavras (NPPJ/UFLA), professora da Universidade Presidente Antônio Carlos –Campus Bom Despacho (MG)
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Eduardo Magalhães Ribeiro
economista do NPPJ/UFLA, professor da UFLA, pesquisador do CNPq
[email protected].
Flávia Maria Galizoni
antropóloga, professora da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) e do NPPJ/UFLA
[email protected]
Referências Bibliográficas:
BERTUCCI, A. de A.; SILVA, R. M. A. (Org.). 20 anos de economia popular solidária: trajetória
dos Pacs à EPS. Brasília: Cáritas Brasileira, 2003.
MELO, A. P. G de. Agricultura familiar e economia solidária: as experiências em gestão de bens
comuns e inserções nos mercados por organizações rurais do estado de Minas Gerais. 2005. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Lavras, Lavras.
RIBEIRO, E.M. Fé, produção e política – experiências associativas de camponeses de Minas Gerais.
São Paulo: Edições Loyola, 1993.
SINGER, P. Introdução à economia solidária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2002.
Baixe o artigo completo:
Revista V5N4 – Notas sobre projetos de geração de renda e experiências econômicas coletivas em comunidades e assentamentos rurais de Minas Gerais