Célia Santos Firmo
O semiárido brasileiro abrange uma área geográfica de 974.752 Km² e possui uma população aproximada de 21 milhões de pessoas, sendo considerado um dos mais populosos do mundo. Encontram-se na região cerca de dois milhões de estabelecimentos familiares, que correspondem a 42% do total nacional, embora ocupem apenas 4,2% do total da área. Submetida a uma estrutura fundiária altamente concentrada e a programas públicos que historicamente reforçaram estruturas econômicas que reproduzem as enormes desigualdades sociais, a agricultura familiar no semiárido vivencia graves privações de suas necessidades mais elementares a cada novo período de seca prolongada. A combinação desses fatores explica por que cerca de dois terços dos pobres rurais brasileiros se encontram nessa região.
Nesse quadro geral de concentração de pobreza, cumpre ressaltar que a exclusão social se manifesta de forma diferenciada quando é enfocada a partir de uma perspectiva de gênero. Indicadores sociais apontam o crescimento da feminização da pobreza, especialmente devido a elementos como a divisão sexual do trabalho.
Das maneiras mais variadas, costumes, posturas e normas sociais funcionam como mecanismos de dominação masculina sobre as mulheres. Lutas históricas se travam há décadas contra esse processo, mais foi a partir dos anos 1980, com a institucionalização da Década da Mulher pela Organização das Nações Unidas (ONU), que o debate sobre as desigualdades sociais de gênero se tornou mais presente em diferentes instituições da sociedade.
Uma das desigualdades de gênero mais marcantes reside no campo do acesso a oportunidades de geração de trabalho e renda. O pequeno número e a ineficiência de ações afirmativas para a inclusão das mulheres em atividades econômicas é uma característica constante nas políticas públicas.
As mulheres rurais do semiárido não fogem a essa regra geral, já que vivenciam condições marcadas pelo trabalho duro e mal ou não-remunerado, em uma situação claramente desfavorável em relação aos homens.
Frente a esse quadro, os movimentos sociais têm atuado para criar e implementar outra possibilidade histórica em que as mulheres rurais se insiram como agentes protagonistas do desenvolvimento rural. Esse é um desafio de grande complexidade, já que elas têm que enfrentar simultaneamente duas estruturas de opressão: a socioeconômica, que é reproduzida pelo modelo excludente de desenvolvimento, e a sociocultural, sustentada por normas injustas de convivência entre homens e mulheres.
A iniciativa dos Fundos Solidários apresentada neste artigo é um exemplo de alternativas de organização de empreendimentos solidários que impulsionam a construção da autonomia política e econômica das mulheres rurais.
AS MULHERES RURAIS DA REGIÃO SEMIÁRIDA DA BAHIA
A constituição de empreendimentos econômicos solidários (EES) formados exclusivamente por mulheres tem sido uma estratégia adotada por agricultoras da região semiárida da Bahia para complementar os poucos recursos financeiros provenientes da atividade rural. Esses empreendimentos têm se desenvolvido a partir de 2002 e atuam em vários campos: produção artesanal em pequena escala, segurança e soberania alimentar das famílias agricultoras e venda local de produtos gerados a partir de práticas de convivência com o semiárido.
As mulheres vêm se valendo desses espaços da economia solidária para debater questões mais amplas ligadas às relações sociais de gênero e à situação de pobreza da população rural, especialmente a das mulheres. Com a evolução das iniciativas, optou-se pela constituição da Rede de Produtoras da Bahia, por intermédio da qual as mulheres se articulam a outros fóruns da sociedade civil, influenciando os debates sobre políticas públicas com o objetivo de assegurar melhorias em suas condições de vida.
Apesar de a maior parte dos empreendimentos econômicos solidários já existirem há mais de três anos, ainda são diversos os desafios para a sua expansão e consolidação. Dentre eles, destaca-se a dificuldade de acesso a créditos oficiais, já que esses recursos são essenciais para dinamizar os empreendimentos, permitindo a constituição de capital de giro para a produção e para a comercialização. A dificuldade e/ou bloqueio aos créditos oficiais obrigam as mulheres a recorrerem a instituições financeiras privadas, o que implica em menores rentabilidades das atividades uma vez que parte significativa da renda bruta é direcionada ao pagamento dos altos juros cobrados por essas instituições.
Frente a esses desafios, a Rede de Produtoras da Bahia vem resgatando práticas solidárias enraizadas na tradição cultural local com o objetivo de construir alternativas que viabilizem a dinamização dos EES. As Trocas Solidárias e os Fundos Solidários são dois mecanismos que vêm sendo colocados em prática nesse sentido.
As Trocas Solidárias
As trocas solidárias surgiram por duas influências: de um lado, pela experiência da própria rede, a partir da criação do Fundo Solidário, no qual cada grupo doava alguns de seus produtos e serviços para a formação do fundo; e, de outro, por meio do resgate da cultura da região de troca de alimentos, serviços e outros recursos.
Assim, orientadas pelos princípios da intercooperação e da ajuda mútua, as mulheres praticam a solidariedade por meio do intercâmbio de seus produtos e/ou serviços com outros EES. Inicial- mente, as trocas aconteciam nas Feiras Regionais de Produtos, nas quais eram criados espaços específicos para essa prática. Bolsas de palha são trocadas por roupas, e aipim é trocado por mel, sem que para isso haja uma referência diretamente relacionada ao valor desses produtos nos mercados convencionais.
Com o passar do tempo, as trocas viraram rotina na vida das mulheres, tornando-se comuns também nas suas reuniões e em outras oportunidades quando agricultoras de um empreendimento visitam as de outro. Com o avanço dessas práticas, as trocas solidárias extrapolaram o intercâmbio entre EES e começam a acontecer até em escolas, onde as agricultoras são convidadas para expor e trocar seus produtos com professoras(es) e crianças.
“A Troca Solidária é muito importante, pois estamos resgatando a cultura da nossa região. O que os nossos avôs faziam trocando os alimentos, achamos importante que os mais novos conheçam e pratiquem também. Nos grupos, muitas vezes queremos comprar alguns produtos, mas não temos recursos. Com a troca conversamos com outras produtoras e trocamos os nossos produtos pelos delas. Já trocamos nossas bolsas de palhas por roupas. Isso é muito importante para fortalecer a solidariedade entre as mulheres… ”
Valmira Lopes, produtora do Grupo Mulheres de Fibra, Santa Luz (BA)
O Fundo Solidário
Diante da inexperiência das mulheres produtoras integrantes dos EES no acesso e gestão de créditos direcionados para as atividades coletivas, a Rede de Produtoras da Bahia criou o Fundo Rotativo Solidário. Inicialmente, o fundo foi constituído por meio da doação de produtos por parte dos grupos filiados à rede. Em seguida, buscou-se obter doações externas, por intermédio de projetos específicos.
O Fundo Solidário é gerido pela Rede de Produtoras da Bahia e os EES filiados, por meio de uma comissão responsável que divulga a iniciativa para as mulheres e ao mesmo tempo reúne e avalia as propostas apresentadas pelos EES.
A Comissão Gestora se reúne mensalmente para socializar informações sobre o funcionamento do fundo para o conjunto da coordenação da Rede de Produtoras da Bahia. Além disso, a prestação de contas é realizada trimestralmente ao Coletivo Regional, espaço composto por mulheres representantes dos 47 EES que integram a rede.
Para regular o acesso aos recursos e o funcionamento do fundo, foi criado um regimento interno, a partir das vivências das mulheres e do conhecimento de experiências similares. Para acessar o fundo, um EES deve elaborar um pequeno projeto, no qual a solicitação do empréstimo é justificada, assim como é demonstrado um plano para o desenvolvimento da atividade econômica e o seu retorno financeiro.
A constituição de uma poupança no valor mínimo de 10% do montante solicitado ao fundo é um dos mecanismos adotados no sistema. Essa poupança funciona como uma reserva que pode ser empregada para o pagamento de parcela, caso o EES encontre dificuldades para efetuar a devolução, ou para a constituição de capital de giro após a devolução integral do empréstimo. Essa reserva é constituída ora pela cotização entre as agricultoras do EES, ora via venda de produção do grupo.
Com o uso dos recursos do fundo, as mulheres vêm implantando e fortalecendo suas atividades produtivas, além de exercitarem a gestão coletiva de projetos de financiamento, construindo novas capacidades para o acesso e a gestão do crédito rural oficial.
Dentre os projetos apoiados pelo fundo solidário, destacam-se: a constituição de capital de giro para aquisição de matérias-primas (como feijão, farinha, carne caprina, galinha caipira, ovos caipiras), todas utilizadas para formação de estoque; a prestação de serviços, no qual trabalham diretamente cinco EES; a constituição de capital de giro para aquisição de freezer com finalidade de armazenar insumos para a produção de alimentos comercializados via Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab); a compra de matéria-prima para confecção de produtos a serem comercializados nas Feiras Estadual e Regionais.
“Ao longo do tempo lutamos pela geração de renda, mas sempre paramos quando o assunto era dinheiro. Primeiro pela dificuldade de acessar o crédito, mas também pelo medo e a falta de documentos, já que na maioria das vezes a terra é no nome do marido. Quando se parte para o grupo, ainda fica mais difícil acessar o crédito, já que os grupos são informais. Mas, com a construção do fundo solidário, quebrou-se essa barreira, facilitando para nós produtoras chegar de forma mais confiante e com menos burocracia, até porque nós construímos todo o processo desde o início, conhecendo todas as regras e a importância desse recurso, facilitando assim aplicar e devolver o recurso de forma correta, porque entendemos que, se não devolvemos, estamos prejudicando as outras companheiras.”
Patrícia Nascimento –coordenadora geral da Rede de Produtoras da Bahia
“Eu vejo o fundo solidário como uma solução para os grupos, porque nós queremos produzir, mas não temos dinheiro. Muitas vezes achamos onde vender nossos produtos, mas não produzimos porque não podemos comprar os materiais. Agora, com o fundo, compramos os materiais que precisamos para produzir, vendemos os nossos produtos e não pagamos os juros altos que o comércio e os bancos cobram.”
Maria Júlia Santana –produtora do Grupo Tecer Arte, Feira de Santana (BA).
As aprendizagens com o Fundo Solidário
Hoje, as mulheres criam e gerenciam autonomamente recursos coletivos, num exercício importante de solidariedade e responsabilidade. Dentre as aprendizagens dessa experiência, podemos apontar os seguintes elementos:
a) A importância do sentimento de pertencimento, uma vez que o fundo surge a partir da necessidade sentida e vivenciada por elas, assim como é formado por recursos captados por meio de projetos ou de doações das próprias mulheres.
b) A mudança na lógica de acesso a recursos, já que os empréstimos via fundo são acessíveis, desburocratizados, além de garantidos e comprometidos, dinamizando os empreendimentos econômicos solidários.
c) Crescimento do giro de recursos entre a parcela da sociedade mais excluída: as mulheres pobres rurais.
d) Melhora global na vida das famílias em função das atividades econômicas desenvolvidas pelas mulheres.
e) Crescimento, entre as mulheres, da autonomia, liberdade, autodeterminação e capacidade de se relacionar de igual para igual com seus companheiros, porque detêm o resultado do seu trabalho, digno e valorizado.
f) Desconstrução do sentimento de incapacidade de acesso e gestão de créditos, especialmente para atividades coletivas gestadas exclusivamente por mulheres agricultoras.
Essas e outras conclusões estão claras nos depoimentos das mulheres, que expressam seus sentimentos e suas vivências. Sinteticamente, podemos afirmar que o Fundo Solidário é um instrumento de desenvolvimento, de promoção de relações de gênero justas, de empoderamento e de facilitação no acesso a novas oportunidades de geração de renda e de melhoria de vida para as famílias rurais.
Célia Santos Firmo
administradora de empresas, especializando-se em Gestão Pública e Democracia Participativa, República e Movimentos Sociais. Coordenadora pedagógica da Equipe do Movimento de Organização Comunitária (MOC)
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Referências Bibliográficas
AUAD, Daniela. Feminismo: que história é essa? Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
BAPTISTA, Naidison de Quintela; DIAS, Wilson José Vasconcelos. Gestão social para o desenvolvimento local. Feira de Santana: MOC, 2000.
CATTANI, Antônio David (Org.). A outra economia. Porto Alegre: Editora Veraz, 2003.
KRAYCHETE, Gabriel. Economia dos setores populares: entre a realidade e a utopia. Salvador: UCSAL, 2000.
MOVIMENTO DE ORGANIZAÇÃO COMUNITÁRIA. Relatório Anual 2007. Feira de Santana: MOC, 2008.
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Revista V5N4 – Fundos Solidários: alternativa para construção de autonomia e empoderamento das mulheres rurais