Esta edição da Revista Agriculturas enfoca o tema do uso e do manejo dos solos. Já em seu título, Manejo sadio do solo, chama a atenção para o fato de que o solo tem saúde e que, portanto, deve ser tratado como um organismo vivo. Com base nessa afirmação podemos refletir sobre o que é solo.
Na chamada de artigos para esta edição, os editores da revista diziam: “Ao realizar a interface entre a litosfera e a biosfera, os solos são o ambiente onde processos biogeoquímicos transformam água, nutrientes e radiação solar em vida. ”A litosfera é composta pelas rochas que estão abaixo dos solos e que lhes dão origem. A biosfera é formada pelos organismos que vivem no solo e acima dele. São todos, direta ou indiretamente, originados a partir de processos do solo que transformam elementos simples (água, nutrientes e energia) em vida.
Um viajante que atravesse o Brasil de ponta a ponta terá a oportunidade de conhecer paisagens muito diferentes. Essas diferenças vêm exatamente do fato de que os processos geradores de vida produziram em cada lugar um equilíbrio particular entre os solos, o clima e os organismos. Os grandes ecossistemas brasileiros, ou biomas, são a expressão desses equilíbrios. A Amazônia, a Mata Atlântica, a Caatinga, o Cerrado, os Pampas, o Pantanal, as restingas e os mangues, cada um tem seu clima, seu relevo, sua vegetação e, como não poderia deixar de ser, o seu solo com características próprias. Por isso, não podemos falar em solo no geral, mas sim em solos (no plural), dentro do contexto dos ecossistemas em que ocorrem. Eles são geradores de vida e são gerados pela vida. Por essa razão, o manejo dos solos deve ser sadio.
Em meio a tanta diversidade do território brasileiro, seria então possível pensarmos em algumas generalizações a respeito dos solos? Podemos sim. Entretanto, como em toda generalização, sempre cometemos injustiças. Mas vamos tentar. É comum escutarmos ou lermos que os solos brasileiros são pobres, ruins e velhos. Por que todos esses adjetivos negativos? De fato, os solos brasileiros, em geral, são velhos (os caatingueiros não vão concordar, mas lembrem-se de que não é possível generalizar sem cometer injustiças). São solos que já sofreram muito com a ação das chuvas e do sol e muitos nutrientes que vieram originalmente das rochas que os formaram já foram lavados (lixiviados) e levados para o mar. Afinal, vivemos em um país tropical, onde não nos falta sol e chuva. Justamente por isso é que dizemos que somos “abençoados por Deus”.
Mas aí ficou esquisito: como o mesmo Deus, que nos abençoa com chuva e sol, faz o nosso solo ficar pobre e ruim? Algo está errado (conosco ou com Deus?).
Vamos pensar. É o mesmo sol que aquece os nossos solos e são as mesmas chuvas que os lavam que fazem com que eles se tornem profundos e bem estruturados, facilitando a entrada de água e o crescimento de raízes. Um clima que faz com que as partículas do solo esquentem e esfriem o tempo todo facilita muito a formação dos torrões. Esse clima também favorece a formação de substâncias como os óxidos de ferro que ajudam a agregar o solo. Além disso, ele possibilita o desenvolvimento de plantas, animais e microrganismos durante boa parte do ano. Ao morrerem ou derrubarem folhas e frutos, esses organismos se decomporão, formando a matéria orgânica dos solos que também é um elemento essencial para a formação dos torrões. Como podemos ver, algo de bom começou a aparecer em nossos solos: eles são profundos e possuem excelente estrutura física. Se não fosse por essas características, como pode- ríamos explicar a existência das ricas vegetações nas várias regiões do país?
Onde está então a alegada pobreza dos solos? Talvez na cabeça daqueles que os encaram como um mero suporte físico para o (mono)cultivo de algumas poucas espécies de plantas. Para esses, em geral, a qualidade do solo é avaliada por meio de uma análise química a partir da qual é calculada a quantidade de adubação necessária para enriquecê-lo. Essas análises estimam a disponibilidade de quatro nutrientes demandados pelas plantas (fósforo, potássio, cálcio e magnésio), além dos teores de alumínio (um elemento tóxico para as plantas), de matéria orgânica e do pH do solo.
Como se vê, é uma forma de avaliar o solo que não o encara como um organismo dinâmico. Além de só identificar a presença desses nutrientes, as análises são feitas com amostras de solo coletadas somente até os primeiros 20 centímetros. Mas por que só considerar quatro nutrientes como indispensáveis quando a ciência do solo aponta que são pelo menos 15 e alguns autores, como a Dra. Primavesi, afirmam que eles chegam a 45? Por que as amostras dos solos analisados são coletadas somente até os 20 centímetros se os nossos solos são profundos? Alega-se que é porque a maior quantidade das raízes das plantas cultivadas está concentrada até essa profundidade.
Explica-se dessa forma o porquê da conclusão largamente aceita de que os nossos solos são pobres. Certamente, ao avaliá-los fora do contexto ambiental em que ocorrem, essa conclusão não poderia ser diferente. Mas, com essa maneira de avaliar, deixamos de valorizar aquilo que os nossos ecossistemas têm de favorável para o desenvolvimento das plantas: muita chuva (quase sempre), muito sol e solos que permitem o crescimento de raízes até grandes profundidades.
Pois bem, mudamos o enfoque da questão. Em vez de seguirmos lamentando a pobreza química dos solos, valorizamos aquilo que temos em abundância: radiação solar e água. Com esses recursos disponíveis muitos organismos (plantas nativas, microrganismos, animais do solo, etc) podem se desenvolver bem e mobilizar grandes quantidades de nutrientes que estão nos solos, mas não são identificados nas análises químicas porque elas são calibradas para extrair apenas os nutrientes que uma planta cultivada conseguiria absorver. Portanto, os nutrientes estão lá, mas não nas quantidades e nem no local que as plantas cultivadas necessitam.
Um manejo sadio é aquele que estimula que os organismos do solo se desenvolvam todo o tempo. Por isso, é importante que sejam plantadas diversas espécies vegetais adaptadas que servirão para cobrir o solo, protegendo-o do sol intenso e da força das gotas de chuvas, e que possuam sistemas radiculares que irão explorar volumes diferentes do solo. Junto com as raízes dessas plantas se desenvolverão microrganismos, como os fungos micorrízicos, que as ajudarão a aumentar o volume do solo explorado em busca do fósforo e outros nutrientes. Trabalhando juntos, plantas e organismos do solo absorvem quantidades grandes e diversificadas de nutrientes. Quando morrem, ou derrubam folhas e frutos, devolvem esses nutrientes principalmente nos primeiros 20 centímetros, possibilitando uma nutrição equilibrada para as plantas cultivadas. Derrubamos assim a crença da dependência dos primeiros 20 centímetros dos nossos solos para desenvolver nossa agricultura.
Tudo se passa como um ciclo de vida: os nutrientes presentes até grandes profundidades são absorvidos por plantas adaptadas e organismos do solo. Esses nutrientes voltam à superfície incorporados na matéria orgânica, que cobrirá e protegerá o solo das chuvas e do sol e que alimentará organismos do solo. Esses organismos atuam na decomposição da matéria orgânica, liberando os nutrientes nela contidos para serem absorvidos pelas plantas e por outros organismos que se desenvolverão junto às suas raízes. Nesse processo de decomposição da matéria orgânica, substâncias que ajudarão na formação dos torrões serão produzidas, criando boas condições para a infiltração da água e o desenvolvimento de raízes em profundidade. Ou seja: trata-se de um ciclo em que vida gera mais vida.
Como colocar esses princípios em prática para fazermos um manejo sadio dos solos? Nesta edição, a professora Ana Maria Primavesi detalha as diferenças entre o manejo químico (convencional) e o manejo agroecológico do solo. Em seu artigo Agroecologia e manejo do solo (pág. 7), apresenta cinco princípios fundamentais para o manejo sadio: solos vivos e agregados (bem estruturados); biodiversidade; proteção do solo contra o aquecimento excessivo, o impacto da chuva e o vento permanente; bom desenvolvimento das raízes; e a auto-confiança do agricultor. Primavesi é um ícone da agricultura ecológica brasileira que escreveu, em 1979, a primeira versão do livro clássico Manejo ecológico do solo. Outro expoente da Agroecologia brasileira, o professor Manoel Baltasar, em seu texto Dra. Ana Maria Primavesi: a professora de todos nós (pág. 39), apresenta a importância do legado de Primavesi e o significado de seu livro.
Na elaboração desta edição buscamos artigos que descrevessem experiências que comungam com os princípios apontados por Primavesi e que indicassem alguns caminhos de como “na prática se faz a teoria”. Conseguimos textos que relatam iniciativas em dois biomas brasileiros: Mata Atlântica e Caatinga. Embora desenvolvidas em ecossistemas muito distintos entre si e igualmente complexos, as experiências adotam soluções de manejo que incorporaram essencialmente os princípios elencados por Primavesi. Como já alertavam os editores da revista na chamada de artigos para esta edição: “Nossas práticas de manejo ecológico dos solos podem diferir em função dos contextos socioecológicos em que são conduzidas, mas elas devem ter em comum o objetivo central de criar condições adequadas à promoção e à manutenção de alta diversidade biológica dos organismos que neles vivem.”
Da Mata Atlântica vieram duas experiências, uma dos mares de morros de Minas Gerais e outra da região da mata de araucárias, no sul do Paraná e norte de Santa Catarina. Os agricultores agroecológicos de Minas, organizados em sindicatos de trabalhadores rurais e associações e trabalhando em parceria com o Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM) e a Universidade Federal de Viçosa (UFV), experimentaram com sucesso sistemas agroflorestais com café. Entre os pés de café plantaram abacate, ingá, fedegoso, banana e outras plantas. Com esse procedimento produziram, além do café, alimentos para a família, para a venda e para os seres acima do solo (abelhas, por exemplo) e abaixo dele (micorrizas, por exemplo). Protegeram o solo e ainda seqüestraram carbono, uma vez que o carbono que estava no ar agora está preso nas árvores e na matéria orgânica do solo, ajudando assim (mesmo que um pouquinho) a amenizar os problemas do clima, tão falados atualmente. A UFV vêm contribuindo para estudar as mudanças na qualidade dos solos e alguns resultados de suas pesquisas são apresentados no artigo Terra forte, na página 11.
O artigo Revendo o conceito de fertilidade: conversão ecológica do sistema de manejo dos solos na região do Contestado (pág. 16) critica o enfoque reducionista da ciência do solo que norteou o desenvolvimento dos métodos de fertilização baseados nos adubos químicos. Seus autores apontam que a solução para reverter essa lógica não está na simples substituição dos insumos agroquímicos por outros de origem orgânica ou natural. Afirmam que o manejo dos solos deve privilegiar um conjunto de práticas que promovam o restabelecimento de funções ecológicas essenciais à reprodução da fertilidade do agroecossistema como um todo. Realçam também que essa concepção de gestão integrada da fertilidade exige o emprego de enfoques metodológicos participativos para a construção e a socialização de conhecimentos sobre os processos ecológicos que ocorrem nos solos e que orientam o seu manejo sadio. Essa é a concepção de trabalho adotada pela AS-PTA ao assessorar e estimular a formação das redes de agricultores-experimentadores na região do Contestado, território que abrange municípios do Centro-Sul do Paraná e do Planalto Norte de Santa Catarina.
A experiência desenvolvida na Caatinga também demonstra a importância da diversificação dos sistemas produtivos para produzir mais matéria orgânica e melhor aproveitar os potenciais do solo. Como na Caatinga chove menos do que no restante do país, seus solos em geral são mais ricos em nutrientes. Portanto, para manejarmos de forma sadia os solos desse bioma é necessário protegê-los, estimular o crescimento de organismos e das raízes, assim como favorecer as condições para a manutenção de torrões firmes e macios, para que a água das chuvas infiltre com facilidade e seja mantida no solo o maior tempo possível. Como mostram os agricultores organizados em sindicatos de trabalhadores rurais e associações da agricultura familiar que trabalham em parceria com o Esplar – Centro de Pesquisa e Assessoria e com a Universidade Federal do Ceará (UFC), a solução para o manejo sadio dos solos dos algodoais passou pelo consorciamento do algodão com várias culturas (inclusive árvores). “Esta terra dá mais legume” é a constatação de um deles sobre o solo manejado de forma agroecológica e o título do artigo que descreve a experiência na página 24.
O caminho da diversificação produtiva e do manejo dos recursos locais com o objetivo de dinamizar a vida no solo foi também trilhado em ambientes distantes dos nossos. De Cuba, vem o artigo Conservando a fertilidade do solo em sistemas biointensivos (pág. 30). Segundo seus autores, a preservação da agrobiodiversidade, o uso eficiente da água, da energia e dos recursos disponíveis, bem como o equilíbrio adequado de nutrientes e da vida no solo, garantem a sustentabilidade dos sistemas agrícolas. A diversificação da atividade agrícola, inclusive por meio da integração com a criação animal, propicia o aproveitamento dos recursos naturais disponíveis de maneira eficiente e tem se mostrado uma estratégia eficaz para a obtenção de um manejo apropriado dos nutrientes e da fertilidade dos solos.
Além de apresentarem princípios técnicos comuns, as experiências citadas deixam claro que as práticas de manejo sadio dos solos devem ser desenvolvidas junto com as comunidades rurais, de forma que cientistas e agricultores compreendam melhor como os processos ecológicos que potencializam a vida no solo funcionam na prática. Construir estratégias com os agricultores, valorizar seus saberes e contribuir para sua ampliação é uma forma de melhorar a sua auto-estima (como sugerido por Primavesi) e ao mesmo tempo de ampliar e valorizar os saberes acadêmicos. Junto com os agricultores devemos construir o diagnóstico dos problemas relacionados ao manejo dos solos para experimentar e avaliar soluções com base em indicadores úteis para todos os envolvidos. Para que isso ocorra torna-se necessário o emprego de metodologias que facilitem a comunicação e o diálogo entre agricultores, cientistas e técnicos. O artigo Falando de ciência do solo com os agricultores (pág. 35) traz uma contribuição nesse sentido. Ao relatar uma experiência desenvolvida no Quênia, um país africano, apresenta a forma adotada pelos pesquisadores para construir com a comunidade uma compreensão compartilhada sobre conceitos importantes relacionados à fertilidade dos solos. Enfatiza que uma boa comunicação é condição essencial para que esse compartilhamento de percepções e conhecimentos seja alcançado. Como mostra a experiência, às vezes é necessário utilizar analogias, parábolas, paródias, ajustar o vocabulário para que os segredos da natureza sejam desvendados com a ajuda de todos.
Enfim, segundo Amauri, agricultor agroecológico de Espera Feliz (Zona da Mata de Minas Gerais), o grande segredo da natureza é trabalhar em mutirão. Que mutirão? Faça um esforço de reflexão, anote em um caderninho todos os seres que fazem parte da cadeia da vida e depois confira sua listinha lendo o texto do Amauri publicado na seção Agroecologia em Rede.
Irene Maria Cardoso
Professora do Departamento de Solos da Universidade Federal de Viçosa
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Revista V5N3 – O solo vive