Manoel Baltasar Baptista da Costa
Em fins dos anos 70, se constituía na Associação dos Engenheiros Agrônomos do Estado de São Paulo – AEASP o Grupo de Estudos de Agricultura Alternativa (GAA), do qual participavam agrônomos, estudantes, físicos, artistas, intelectuais, militantes do movimento ambientalista, dentre muitos outros simpatizantes.
Com o objetivo de buscar alternativas para o modelo agrícola dominante, o grupo se pautava pela crítica ao padrão tecnológico da Revolução Verde, que já naquele momento, decorridas menos de duas décadas de sua implementação no país, provocara sérios efeitos negativos. Estudos comprovavam, entre outros dados alarmantes, elevados teores de resíduos de agrotóxicos (organoclorados) no leite materno; acentuada degradação do solo (para cada quilo de soja exportada se perdiam dez quilos de solo com a erosão); e a destruição irreversível dos recursos naturais (solo, flora e água) com a expansão da fronteira agrícola e a mecanização intensiva.
Constatávamos dessa forma o grande equívoco de o país adotar um padrão tecnológico capital-intensivo desenvolvido para atender aos interesses do complexo industrial petroquímico-mecânico que, com o fim da Segunda Guerra Mundial, ficara ocioso em função da perda do mercado dos artefatos militares.
No entanto, naquela época praticamente inexistia no Brasil a preocupação com a busca de alternativas que pudessem minimizar ou superar os impactos ecológicos e sociais, até esse momento pouco diagnosticados, produzidos pelo padrão tecnológico em rápida expansão. Diante desse contexto, o modelo técnico da Revolução Verde era fomentado pelo Estado brasileiro sem resistências organizadas por parte da sociedade civil.
As informações que inicialmente subsidiavam o GAA vinham na maioria das vezes do exterior, onde se expandiam os movimentos de agricultura alternativa: agricultura biológica na França; agricultura orgânica na Inglaterra e nos EUA; agricultura biodinâmica na Alemanha e Suíça; agricultura natural no Japão; assim como as práticas das comunidades rurais surgidas no bojo de movimentos de contracultura.
Foi nesse contexto, por intermédio de Ded Bourbonnais, que tivemos o primeiro contato com a Dou- tora Ana Maria Primavesi. Ela havia se mudado recente- mente para São Paulo após ter se aposentado da Universidade Federal de Santa Maria (RS), onde lecionara desde que chegara ao Brasil procedente da Áustria.
Com sua simplicidade, competência e participação ativa, a Dra. Primavesi rapidamente ganhou o res- peito e a admiração de todos que tiveram o imenso privilégio de conviver por muitos anos com ela. Portadora de conceitos até então desconhecidos na orientação da problemática do manejo e da conservação dos solos brasileiros, ela introduziu enfoques inovadores para abordar a pedologia a partir de uma perspectiva ecológica. Até então, o manejo da fertilidade dos solos era abordado de forma reducionista e compartimentada e centrava-se basicamente nas práticas de mobilização intensiva do solo e no emprego de adubos sintéticos com elevada concentração e solubilidade de nutrientes, sobretudo o NPK (nitrogênio, fósforo e potássio). A Dra. Primavesi criticava essa orientação restrita, dada a importância dos microelementos na eficiência produtiva e na sanidade vegetal. Assinalava os prós e os contras das distintas formas e fontes de nutrientes, sua eficiência e aproveitamento pelas plantas, sua ciclagem no ambiente, seus impactos sobre a biologia do solo. Ao tratar desse assunto, alertava para o fato de que a fertilidade do solo não poderia ser compreendida apenas por suas características químicas, já que é intrinsecamente ligada a fenômenos que também se relacionam às propriedades físicas e biológicas. Numa época em que a importância da dinâmica biológica dos solos era em larga medida ignorada pela pedologia convencional, ela enfatizou a relevância da biocenose na eficiência produtiva dos sistemas agrícolas nos trópicos baseados no manejo e na reciclagem da biomassa.
Do ponto de vista edáfico, a Dra. Primavesi apontava para as complexas relações entre o solo, a planta e o clima, sendo este último o determinante principal das características distróficas e de acidez que predominam nos solos tropicais. Com isso, chamava a atenção para a distinção entre as características climáticas das regiões mais frias e as dos trópicos e subtrópicos, estes últimos marcados por chuvas torrenciais com elevada energia cinética e um acelerado intemperismo resultante da maior disponibilidade de energia térmica, radiante e hídrica durante boa parte do ano. Diante dessa constatação, sua principal orientação é que o manejo dos solos tropicais se baseie em processos vegetativos, e não nas práticas mecânicas.
Outra contribuição no plano conceitual de enorme importância veio do fato de ela ter alertado de que na natureza não existem ervas daninhas, mas sim plantas adventícias e invasoras que devem ser percebidas como indicadores ecológicos de grande utilidade para a com- preensão do estado das qualidades físicas, químicas e biológicas dos solos.
Em 1979, o GAA/AEASP teve a honra de promover o lançamento de seu livro Manejo ecológico do solo: a agricultura em regiões tropicais, obra-prima da pedologia brasileira que viria revolucionar os conceitos até então dominantes no Brasil e na América Latina.
Decorridas mais de três décadas da expansão do Movimento de Agricultura Alternativa, que evoluiu para o movimento da Agroecologia, podemos sem risco afirmar que muito desse avanço foi possível graças às contribuições da Dra. Ana Maria Primavesi.
Manoel Baltasar Baptista da Costa
Professor de Agroecologia Universidade Federal de São Carlos (Campus de Araras)
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Revista V5N3 – Dra. Ana Maria Primavesi: a professora de todos nós