Linda Jo Stern, Scott Killough, Ross Borja, Stephen Sherwood, Nina Hernidiah, Paul Joicey e Peter R. Berti
A World Neighbors (Vizinhos Mundiais), organização não-governamental que atua em vários países do Terceiro Mundo, tinha como tradição enfocar seus trabalhos na área de desenvolvimento agrícola. Entretanto, ao reconhecer a grande sinergia entre agricultura e saúde, e buscando formas de melhorar nosso trabalho, há cerca de 10 anos procuramos interagir mais com profissionais da área de saúde. Descobrimos que embora compartilhássemos esperanças e aspirações comuns, freqüentemente tínhamos maneiras bem diferentes de entender a pobreza e de auxiliar comunidades a enfrentá-la. Felizmente, fomos capazes de nos identificar em torno a um lema comum: uma boa alimentação para uma boa saúde.
Do ponto de vista dos que trabalham com desenvolvimento agrícola, esse lema significa processos saudáveis de produção de alimentos, tanto para o meio ambiente como para as famílias produtoras. Para os que trabalham com a promoção da saúde, ele se traduz em alimentos nutritivos que contribuem para a saúde humana.
Uma vez que descobrimos a importância de orientar nosso trabalho para a produção de alimentos de qualidade e focamos no imperativo de prevenir a desnutrição infantil por meio de alimentação em quantidade e qualidade adequadas, o desafio passou a ser o aprendizado conjunto.
Assim como muitas organizações, a Vizinhos Mundiais (VM) e seus parceiros passaram a trabalhar em torno a dois eixos programáticos centrais e interligados: agricultura sustentável e saúde comunitária. Os conceitos e práticas de segurança alimentar e nutricional fornecem importante elo entre esses eixos. Afinal, a superação da fome e da desnutrição exige ações que vão além da produção agrícola, tais como o cuidado na preparação dos alimentos, o acesso à água limpa e a serviços de saneamento, a mudança de práticas culturais relacionadas à higiene, às relações de gênero e aos cuidados com as crianças.
Neste artigo, apresentamos três exemplos de como nos esforçamos para fortalecer os elos entre os trabalhos de promoção da agricultura sustentável e da saúde comunitária. Todos enfatizam o papel central desempenhado pelas mulheres agricultoras na melhoria do bem-estar nutricional de suas famílias e a forma como as comunidades e os parceiros da VM vêm trabalhando para assegurar que esses elos entre saúde e agricultura não se quebrem.
VALORIZANDO OS POTENCIAIS LOCAIS
Desviante Positivo (DP) é um método que valoriza os bons exemplos de cuidado com a saúde e com a nutrição, considerados como sementes locais de mudança. Por meio dessa abordagem, busca-se identificar mulheres que adotam boas práticas no cuidado com as crianças, estimulando-as a apresentar suas experiências a outras pessoas de suas próprias comunidades. Durante os intercâmbios e visitas a suas casas, as mulheres debatem os significados, as condições e as razões de terem ou não boa saúde. Essa foi a base metodológica do trabalho que desenvolvemos em Mindanao, uma das ilhas das Filipinas.
A VM e sua parceira local, a Sikap, trabalham em comunidades onde as principais atividades econômicas são as grandes plantações de dendê e a extração de recursos naturais. Nas comunidades de Mate e Bayugon 2, muitos homens e mulheres trabalham de manhã à noite como diaristas nas plantações, enquanto os avós e as crianças mais velhas permanecem em casa tomando conta das crianças mais novas. Aqueles que não trabalham nas plantações tecem e vendem amakan ou painéis de rattan. Algumas famílias complementam suas rendas com a produção de hortaliças. Outras cultivam em pequenas áreas de encostas, concentrando-se sobretudo nos cultivos para a venda e não para o consumo doméstico. Há ainda os que têm seus meios de vida assegurados pela coleta de alimento na floresta e pela mineração de ouro em pequena escala.
Diante da realidade dessas comunidades, a disponibilidade e a qualidade da alimentação demonstravam ser temas centrais para orientar os trabalhos de promoção do desenvolvimento local. Para abordar esses temas, a VM, a equipe da Sikap e as lideranças comunitárias definiam que a nutrição seria a porta de entrada do programa. Optamos pela metodologia do Desviante Positivo e organizamos uma oficina com voluntários(as) da comunidade que, durante duas semanas, debateram entre si, cozinharam e aprenderam juntos. As refeições servidas nas oficinas foram preparadas sem a necessidade de qualquer recurso externo – todo o alimento veio de fontes locais, facilmente disponíveis a todos os participantes.
Durante o período das oficinas, as crianças ganharam suprimento extra em suas dietas, suas mães obtiveram novos aprendizados sobre o cuidado com a saúde e alimentação de seus filhos e filhas, enquanto os trabalhadores locais da área de saúde se beneficiaram por terem aprendido novas estratégias para enfrentar os problemas associados à desnutrição infantil. Na maioria dos casos, os grupos concordaram em continuar a se encontrar regular- mente, fortalecendo assim as capacidades de longo prazo das comunidades de enfrentarem os seus próprios problemas relacionados à saúde e à alimentação.
Por intermédio da troca de experiências, muitas famílias perceberam que a horta era um espaço que deveria ser mais valorizado nas estratégias para a melhoria da saúde de suas crianças. Tornou-se evidente que grande parte das famílias que eram positivamente desviantes mantinha hortas onde plantavam frutíferas e hortaliças. Desde que os grupos de DP foram formados, verificou-se o aumento do número de famílias com hortas, assim como um maior acesso das famílias a frutas e hortaliças. Além disso, muitos participantes dos grupos de DP demonstraram interesse em aprender mais sobre agroecologia. Foram então organizadas visitas de intercâmbio e fornecida assessoria técnica específica.
A partir do trabalho focado inicialmente na nutrição das crianças, as famílias envolvidas nesses grupos passaram a perceber os temas da saúde, do meio ambiente e da produção alimentar de forma mais abrangente e integrada.
PERGUNTAS, NÃO RESPOSTAS
Muitas soluções podem ser encontradas nas experiências locais e, nesse sentido, encaramos nosso trabalho não como meio de dar respostas aos problemas das comunidades, mas como um instrumento para auxiliar as pessoas a verem as oportunidades que existem ao seu redor. Concentramos nossas energias em responder boas perguntas e em facilitar discussões e análises dos problemas e das possíveis soluções para eles. No campo da nutrição, acreditamos ser eficaz explorar criticamente lições sobre agricultura juntamente com as comunidades.
Ao observar suas experiências sobre fertilidade do solo e das plantas, por exemplo, agricultores e agricultoras podem ser levados a aprimorar suas percepções sobre suas próprias condições de saúde. Isso porque as pessoas tendem a fazer conexões entre novos aprendizados e conhecimentos anteriores adquiridos por meio de sua própria vivência. Com essa abordagem pedagógica, a capacidade de análise crítica fica mais aguçada, tornando os efeitos dos programas sobre a vida das comunidades mais abrangentes e mais duradouros, mesmo que os problemas e os contextos delas sejam outros no futuro. Nosso trabalho no Timor Oeste, Indonésia, mostrou como as perguntas podem ser mais úteis do que as respostas.
Desde 1997, a VM tem trabalhado no Timor Oeste em parceria com a ONG local Yayasan Mitra Tani Mandiri (YMTM) no desenvolvimento de um programa agroflorestal. Através dos anos as comunidades adquiriram alto grau de consciência a respeito da relação direta que existe entre saúde e agricultura. Anteriormente, ao organizarem seus sistemas de produção, os agricultores não levavam totalmente em conta as necessidades nutricionais de suas famílias, já que seu foco principal era a produção para a venda nos mercados.
Com o programa da YMTM, os produtores passaram a dar mais atenção à sua própria segurança alimentar e nutricional. Começaram então a abordar a questão do planejamento da unidade produtiva não apenas pela perspectiva da produção para a venda, mas também a partir de suas necessidades de saúde.
As comunidades expressam que as mudanças mais significativas proporcionadas pelo programa estão associadas à melhoria de suas capacidades de planejar as unidades produtivas, em particular para que elas atendam suas necessidades nutricionais durante todo o ano. Enfatizam também que as mudanças nas relações sociais dentro da família influenciaram as práticas de produção, já que as tomadas de decisão agora são muito mais equilibradas entre maridos e esposas. Além disso, as mulheres conquistaram direitos de propriedade de terra, antes essencialmente dos homens, e passaram a administrar o gado da família. Essas alterações nas relações de gênero nas famílias agricultoras têm permitido que os sistemas de produção sejam transformados, em especial por intensificarem a produção de hortaliças orgânicas destinadas ao consumo doméstico. Todas essas mudanças são percebidas pelas mulheres, que alegam sentir sua atual situação mais segura e estável, além de manifestarem satisfação por suas famílias disporem de um leque muito mais amplo de alimentos durante todo o ano.
UNINDO O TÉCNICO AO SOCIAL
Além de apoiar as famílias agricultoras a melhorarem sua alimentação, consideramos importante que elas compreendam as razões pelas quais as situações de desnutrição permanecem. Por exemplo: quando comparamos o quadro de nutrição dos homens com o das mulheres nos Andes, é comum identificarmos que os homens e os meninos comem melhor do que as mulheres e as meninas. Isso nos levou a questões novas e mais profundas a respeito das raízes sociais dessa situação. O que se pode fazer diante desse contexto?
A partir de nossa experiência com métodos participativos para análise de relações sociais de gênero, aprendemos que oferecer a informação por si só geralmente não é suficiente para promover mudanças positivas. Temos a clareza de que a forma como nos comportamos durante as práticas educativas e, em particular, na facilitação dos processos de aprendizado, pode gerar efeitos muito diferentes sobre as comunidades em que atuamos. Isso se tornou claro em nosso programa no Equador, onde trabalhamos juntamente com mulheres andinas para entender e aprimorar suas estratégias de alimentação.
As mulheres andinas têm muito conhecimento prático sobre os alimentos que consomem. Por outro lado, não sabem muito sobre o conteúdo nutricional dos mesmos. Informações dessa natureza são especialmente importantes para as mulheres grávidas e para as mães, já que elas são muito vulneráveis a deficiências nutricionais. Ao procurarmos compreender as dietas das mulheres e de suas crianças na região, concluímos que a saúde das crianças não é determinada somente pela disponibilidade de recursos das famílias, mas também, e principalmente, pelo domínio de conhecimentos das mães a respeito da qualidade nutricional dos alimentos e dos cuidados com higiene. Com base nessa constatação, tornou-se evidente que a maior clareza sobre esses assuntos por parte das mães pode certamente auxiliá-las a identificar novas estratégias para melhorar a saúde de suas famílias.
Empregamos então o método dos desviantes positivos para colocar a questão em debate. Por meio de um levantamento sobre os alimentos consumidos no dia anterior por um grupo de mães, os promotores de saúde as auxiliaram a analisarem a qualidade nutricional de suas dietas, de suas crianças e do conjunto de suas famílias. Dessa forma, foi possível realizar uma avaliação coletiva do potencial nutricional dos alimentos típicos, bem como de suas combinações. Para converter o consumo de alimentos em necessidades diárias de nutrientes, utilizamos um notebook e um software livre de fácil manuseio chamado Nutri-survey, que automaticamente transforma informações sobre os alimentos consumi- dos em equivalente nutricional. Ao colocar os resultados do levantamento em uma tabela, o programa permite a elaboração de um gráfico de barras com base nas exigências de uma dieta padrão – estabelecida em função da idade, sexo e situação biológica (gravidez, por exemplo) –para consumo de diferentes alimentos, levando em consideração a quantidade e a preparação (veja o Quadro 1 ). Os gráficos mostrados na tela do computador contêm poucas palavras. Com um pouco de ajuda os participantes aprendem a entendê-los.
Trabalhando com os(as) participantes para entender e comparar os resultados, prestamos especial atenção às deficiências nutricionais. Como o consumo de alimentos varia diariamente, não é necessário e nem esperado que a dieta de um único dia contenha todos os nutrientes requeridos. Discutimos então como as deficiências nutricionais podem ser contrabalançadas em outros dias. Enfatizamos, particularmente, aqueles nutrientes que se mostram em deficiência quando analisamos as dietas de vários dias.
Com base nessas análises, passamos a refletir sobre as diferentes fontes locais de alimentos e as suas funções na dieta. Para subsidiar essas reflexões, passamos a fazer simulações de dietas. Incorporamos ao programa informações sobre diversas espécies alimentícias tradicionais e vimos como as barras do gráfico que correspondem aos diferentes nutrientes se moviam para um lado ou para o outro. Ao fazermos esse exercício, as pessoas se surpreenderam com os altos conteúdos de nutrientes presentes nos alimentos tradicionais. Dependendo dos interesses dos grupos, foram também discutidas questões relacionadas às diferenças das dietas entre homens e mulheres ou às mudanças nos padrões de alimentação nas últimas décadas. Também foram feitas reflexões sobre fatores não dietéticos que afetam a nutrição das pessoas, tais como falta de descanso, os cuidados com a higiene e as doenças. O aprofundamento desses conhecimentos estimulou as famílias a aprimorarem suas dietas e a darem início a hortas domésticas.
DESAFIOS FUTUROS
Em que pese o progresso que tivemos ao auxiliar organizações parceiras a descobrirem a relação entre saúde e agricultura, percebemos que há ainda muito a melhorar em nossos trabalhos. Freqüentemente as formas disciplinares e academicistas como analisamos a realidade – sejam elas na agricultura, na saúde ou em outras áreas – dificultam a nossa compreensão e comprometem nossa estratégia para agir sobre ela. Como conseqüência, nossas intervenções ficam sujeitas a uma desconexão entre o objetivo de garantir mais alimentos (seja através da melhoria da produção ou do aumento da renda) e o de promover melhor nutrição das famílias, podendo mesmo um objetivo se contrapor ao outro.
Há muitos desafios pela frente. Em particular, sentimos que é necessário dar especial atenção às tendências disciplinares mais profundas que orientam as ações de nossas equipes e as dos nossos parceiros, sobretudo entre os que trabalham com agricultura e saúde. Essas tendências continuam a criar barreiras de compreensão e de ação. Há necessidade de mudanças mais fundamentais na maneira como percebemos a realidade, pensamos e agimos. Essa é uma questão fundamental, pois determina diretamente as formas como procuramos engajar as pessoas e as comunidades no processo de desenvolvimento.
De forma geral, os profissionais que atuam em programas de desenvolvimento rural criaram uma linha arbitrária que divide os agricultores e as agricultoras. Costumam atribuir aos homens ações ligadas à agricultura, e às mulheres, ações ligadas à saúde. Sem atenção deliberada para tal construção de gênero, os benefícios de um bom alimento para uma boa saúde continuarão a ser distribuídos desigualmente. Quando as mulheres e meninas estão sem saúde, toda a família e a comunidade sofrem as conseqüências. Além disso, temos muito a apreender com as relações interativas entre nossa agricultura, o ambiente degradado, a tecnologia, as formas de integração aos mercados e o valor nutricional e a qualidade do alimento.
Nós e nossos parceiros estamos dispostos a continuar explorando mais essas questões relacionadas às interações entre saúde e agricultura. Esperamos que outros se juntem a nós nessa exploração.
Linda Jo Stern
especialista em saúde reprodutiva e comunitária, World Neighbors
[email protected]
Scott Killough
especialista em agricultura sustentável e meios de vida rurais, World Neighbors
[email protected]
Ross Borja e Stephen Sherwood
técnicos do Programa dos Andes, World Neighbors
[email protected];
[email protected]
Nina Hernidiah e Paul Joicey.
técnicos do Programa do Sudeste da Ásia, World Neighbors
[email protected];
[email protected]
Peter R. Berti
nutricionista
[email protected]
Referências Bibliográficas
BERTI, P. R.; KRASEVEC, J.; FITZGERALD, S. A review of the effectiveness of agriculture interventions in improving nutrition outcomes. Public Health Nutrition, v.7, n.5, p.599-609. 2003.
BONNARD, P. Improving the nutrition impacts of agriculture interventions: strategy and policy brief. FANTA/AED: Washington, 2001.
JOLLY, R. Nutrition. Our Planet 122 (“Poverty, Health, and the Environment”). UNEP. 1996.
NUTRITION WORKING GROUP, CHILD SURVIVAL COLLABORATIONS AND RESOURCES GROUP (CORE). Positive Deviance / Health: a Resource Guide for Sustainably Rehabilitating Malnourished Children. Washington, 2002.
WORLD BANK. Repositioning nutrition as central to development: a strategy for large-scale action. Washington, 2006. (Directions in Development)
Baixe o artigo completo:
Revista V4N4 – Trabalhando agricultura e saúde conjuntamente