Emanoel Dias da Silva e Paula Almeida
A Articulação do Semi-árido Paraibano (ASA-PB) já conta com uma rede estadual composta por 228 bancos de sementes comunitários, que envolvem 6.561 famílias residentes em 63 municípios e que conservam mais de 300 variedades de milho, feijão, fava, mandioca, girassol, amendoim e espécies forrageiras e frutíferas resgatadas nas próprias comunidades. Em parceria com organizações da Via Campesina, a ASA-PB decidiu aceitar o desafio de organizar, em julho de 2007, a Festa da Semente da Paixão.
O evento reuniu mais de 2 mil agricultores e agricultoras na cidade de Patos para celebrar o trabalho e planejar ações futuras. Ao passear pela feira de saberes e sabores organizada pelos agricultores e agricultoras durante a festa, um visitante teve a chance de obter informações sobre as diferentes experiências familiares, comunitárias ou regionais e pôde conhecer a Rede Sementes da Paraíba. Logo no início da feira, as primeiras barracas chamavam à atenção: coloridas com mosaicos de sementes em garrafas, potes, em sacos e enfeitando arupemas, peneiras da herança tradicional indígena típicas da região. Nesse espaço ele também encontrou grande diversidade de sementes vindas de todos os recantos do estado e usadas para as mais diversas finalidades e gostos. Também assistiu a muitos agricultores e agricultoras trocando suas sementes, levando para seus vizinhos e compadres e para seus bancos de sementes. O visitante pôde ainda observar e perceber que os agricultores encaram esse tipo de troca não somente como meio para enriquecer os seus roçados, mas também como forma de fortalecer os laços de solidariedade e confiança entre as famílias e diferentes grupos envolvidos. Eles sabem que as sementes da paixão trazem em si muito mais do que boa qualidade genética para a produção segura no semi-árido. Elas são portadoras de lembranças, costumes e histórias de seus antepassados.
A visita à feira foi muito esclarecedora para o nosso visitante. Ele pôde aprender bastante sobre as estratégias de conservação das sementes da paixão adotadas tradicionalmente pelo povo do semi-árido e como a ASA-PB vem atuando para reforçá-las. Compreendeu também quais são as principais ameaças que colocam em risco toda essa cultura de convivência com o semi-árido e como as organizações do estado estão se articulando para enfrentá-las.
AS RESERVAS DE SEMENTES FAMILIARES E COMUNITÁRIAS
No semi-árido, a agricultura familiar reconstitui seus estoques de sementes a partir da produção própria de variedades locais, conhecidas como sementes da paixão. Embora as estratégias tradicionais de conservação desses estoques tenham sido responsáveis pelo desenvolvimento da rica agrobiodiversidade na região, elas vêm se mostrando insuficientes frente aos atuais processos de erosão da diversidade genética na agricultura.
O tamanho cada vez mais reduzido das propriedades familiares, associado à irregularidade climática, vem levando à perda das sementes da paixão. Diante desse contexto, os roçados, cada vez menores, dificilmente produzem o suficiente para atender às necessidades alimentares das famílias e recompor suas reservas de sementes para a safra seguinte. Outro fator que exerce grande pressão sobre os recursos da agrobiodiversidade é a substituição das sementes da paixão por sementes certificadas produzidas em outras regiões e pouco adaptadas ao semi-árido e aos sistemas de cultivo nos roçados diversificados dos agricultores. Essas sementes são disponibilizadas por programas públicos que vêm historicamente reforçando os meios clientelistas de manutenção do poder adotados pelas oligarquias rurais da região.
Os bancos de sementes comunitários surgiram como forma de enfrentar esses problemas, ao criarem estoques suplementares às reservas familiares. Trata-se de um mecanismo por meio do qual a família toma emprestada uma quantidade de se- mentes e se compromete, segundo regras definidas na própria comunidade, a devolver a mesma quantidade acrescida de uma percentagem no momento da colheita. A estocagem, a entrega e a devolução das sementes são realizadas na própria comunidade, sob a gestão de uma associação ou um grupo informal.
Outra iniciativa importante que vem se disseminando na rede estadual são os roçados comunitários, nos quais as famílias plantam as variedades de sementes da paixão para multiplicar e compor o estoque dos bancos comunitários e familiares. Juntas essas reservas individuais e coletivas compõem um sistema de segurança de sementes adaptadas, de qualidade e disponíveis nas quantidades e na hora certa para o plantio.
APROVEITAMENTO INTEGRAL DOS FRUTOS DA NATUREZA
Andando mais um pouco na feira, o visitante encontrou a barraca das mulheres experimentadoras. Elas beneficiam as frutas nativas, produzindo doces, geléias, compotas, cocadas, bolos e sucos diversos, com destaque para os de umbu, caju, manga, cajá, fruta de palma, pinha e ubaia. Aqui, homens e mulheres trocam receitas que utilizam os produtos da natureza, importantes para a diversificação da alimentação das famílias. Conversam sobre suas conquistas no que diz respeito ao reconhecimento e à valorização do papel da mulher agricultora e de suas contribuições para o aumento da segurança alimentar e nutricional no semi-árido.
Ao lado, na barraca da Catequese Familiar de Solânea, Dona Socorro e Zui trocam mudas e receitas de pomadas, sabonetes, xaropes, garrafadas e diversos chás de plantas medicinais. A valorização e o resgate de práticas e conhecimentos antigos têm ajudado na prevenção de doenças a partir dos saberes repassados de geração para geração.
Ao encontrar essas experiências na festa, o nosso visitante pôde entender que, para as agricultoras e agricultores da Paraíba, a semente da paixão significa muito mais do que a semente colocada na terra para germinar. Representa o conjunto da agrobiodiversidade no semi-árido, com suas frutas nativas, cactáceas, árvores que alimentam os animais na seca, as espécies cultivadas nos quintais diversificados e até mesmo os animais de diferentes espécies e raças.
Na convivência com o semi-árido, o roçado mantido com base em policultivos é um elo fundamental da unidade produtiva, contribuindo para a segurança alimentar das famílias. Mas ele não existiria se não estivesse integrado ao resto da propriedade, seja como receptor ou como fornecedor de insumos para outros sistemas produtivos. Foi com essa compreensão em mente que a idéia de conservar e multiplicar as sementes da paixão foi assimilada em outros espaços e por grupos de agricultores experimentadores e não ficou restrita aos grupos que lidam com os bancos de sementes comunitários.
UMA REDE DE CULTURA POPULAR
Um espaço chamado cenário vivo foi armado pelos organizadores da festa para mostrar como uma família agricultora vive em sua propriedade na Paraíba. Ali o nosso visitante visualizou as muitas inovações que os agricultores e agricultoras vêm introduzindo em suas propriedades nos últimos anos para aprimorar suas estratégias de convivência com o semi-árido. O arredor da casa, por exemplo, foi composto por muitas plantas medicinais e fruteiras, diferentes raças de galinhas, patos, cabras, ovelhas, guinés, porcos, gansos, além das vacas. Também pôde compreender as diferentes formas de estocar água e forragens para atravessar os períodos secos do ano, bem como os anos secos. Foi aí que ele pôde constatar que a combinação das estratégias de diversificação com as de estocagem constitui o pilar que tem permitido às famílias do semi-árido construírem crescentes níveis de segurança alimentar e estabilidade econômica.
Já no final da feira, Joaquim Pedro de Santana, agricultor do município de Montadas, declamou seus versos, revelando a perfeita harmonia entre os saberes técnicos e as formas de expressão cultural da região. Assim como outros agricultores e agricultoras poetas, Joaquim traz na ponta da língua seus conhecimentos em forma de versos.
“A confiança em Jesus
É meu ponto de partida
Também a experiência
Nos longos dias de vida
Afirmo com perfeição
A semente da paixão
É boa e é garantida
Esta semente querida
Que já vem de tradição
De todas variedades
Milho, arroz, fava e feijão
Plantio só é sagrado
Se plantado no seu roçado
A semente da paixão
Toda a nossa plantação
Para fortalecer a gente
Plante tudo escolhido
Sem ter nada diferente
Eu fico realizado
Porque sou apaixonado
Por essa tal de semente
Mas essa tal de semente
Já vem dos nossos bisavós
Eles morreram e deixam
Ela para nossos avós
Hoje plantam nossos pais
Quando eles não plantarem mais
Plantarão nossos filhos e nós
No tempo dos meus avós
Os santos eram Pedro e João
Pelas imagens serem ocas
Guardavam milho e feijão
Em Nossa Senhora era a fava
Botavam dentro e tampava
Era assim que se guardava
A semente da paixão”
Foi para fortalecer esse trabalho que foi criada a Rede Sementes da Paraíba, constituída por centenas de famílias e grupos comunitários que possuem ricas experiências e que se estimulam mutuamente pelas visitas que fazem entre si. Os intercâmbios permitem que os portadores de experiências conheçam e avaliem as iniciativas de outros grupos e famílias. Além disso, valorizam e estimulam os processos de inovação que vêm se desenvolvendo no estado. Essas ocasiões de troca de experiências permitem não só a disseminação de conhecimentos técnicos para o manejo das propriedades, mas também, e fundamentalmente, de uma determinada concepção metodológica que afirma e estimula a partilha de conhecimentos como a principal fonte de empoderamento das famílias e de fortalecimento das redes regionais, microrregionais e estadual.
A ESTRUTURA E O FUNCIONAMENTO DA REDE ESTADUAL DE SEMENTES
Os bancos de sementes comunitários são as unidades básicas de referência da Rede Sementes da Paraíba. Eles funcionam como núcleos polarizadores das famílias a eles associadas que, por sua vez, possuem seus próprios estoques de sementes. Os bancos funcionam não só como estruturas físicas para o armazenamento seguro das sementes, mas também como espaços de articulação das famílias para a realização de processos de inovação agroecológica e de trocas de conhecimentos e sementes da paixão.
Em muitos municípios foram constituídas comissões de agricultores e agricultoras responsáveis por articular os bancos e administrar o complexo sistema de intercâmbios de conhecimentos e sementes. Em cada uma das regiões do estado existem articulações dos grupos gestores dos bancos de sementes. Há, por exemplo, a Rede Sementes do Alto Sertão, que reúne 90 bancos de sementes. Na região da Borborema, o Pólo Sindical formou uma comissão de agricultores e agricultoras que gerencia uma rede de 80 bancos comunitários. No Cariri e no Seridó, o Coletivo Regional organiza a rede, articulando aproximadamente 200 agricultoras e agricultores inovadores. O mesmo ocorre no sertão, no Curimataú, no Coletivo ASA Cariri Ocidental (Casaco), no Fórum de Lideranças do Agreste (Folia), no brejo e no litoral. A Rede Sementes da Paraíba realiza suas avaliações e planejamentos por meio de uma comissão estadual composta por representações dessas diferentes redes microrregionais. Trata-se, portanto, de uma rede de redes.
DAS AÇÕES COMUNITÁRIAS À ARTICULAÇÃO ESTADUAL
Embora os bancos de sementes comunitários sempre tenham sido estratégicos para as milhares de famílias do estado a eles associadas, foi somente após a construção de uma identidade coletiva, que abarcava todas as iniciativas, que se consolidou o sentido de pertencimento a uma rede de abrangência estadual. Essa foi uma condição para que a ASA-PB pudesse se constituir, ao vincular os processos de base e lideranças locais presentes nos municípios e comunidades do estado às lutas mais amplas em defesa da agrobiodiversidade e de um modelo de desenvolvimento rural sustentado fundamentado na agricultura familiar.
A Festa da Semente da Paixão tem sido um momento importante para a construção dessa identidade. Agricultores e agricultoras aguardam com ansiedade, a cada ano, a realização da festa que representa a reafirmação de um trabalho de mais de uma década de lutas e conquistas. A cada ano a festa acontece em uma região diferente, valorizando as iniciativas e celebrando os avanços das diversas dinâmicas regionais: Soledade, no Cariri, em 2004; Cajazeiras, no alto sertão, em 2005; Lagoa Seca, no brejo paraibano, em 2006; e Patos, no sertão, em 2007. Em suas duas últimas edições, a festa recebeu agricultoras e agricultores, lide- ranças e assessorias de outros estados nordestinos também envolvidos em experiências similares. Pouco a pouco vai se constituindo uma rede nordestina voltada para a defesa e a promoção da agrobiodiversidade.
A coesão construída entre os grupos comunitários e articulações microrregionais ao longo dos últimos anos tem sido condição fundamental para que a Rede Sementes da Paraíba articulada pela ASA-PB se afirme como ator político importante na negociação de políticas públicas junto a diferentes instâncias do estado. Uma evidência disso foi a aprovação da Lei nº 7.298, de dezembro de 2002, que criou o Programa Estadual de Bancos de Sementes Comunitários, autorizando o governo da Paraíba a adquirir sementes de variedades locais para o fortalecimento e ampliação dos bancos em todo o estado. Nesse mesmo sentido, os convênios posteriormente celebrados entre a ASA-PB e a Companhia Nacional de Abasteci- mento (Conab) foram outra importante conquista desse processo construído de baixo para cima, com a mobilização ativa dos grupos comunitários.
AS CONCLUSÕES DE UM VISITANTE
Ao final de seu passeio pela festa, nosso visitante concluiu que todo esse trabalho realizado pelas famílias agricultoras no semi-árido vem apenas confirmar o zelo que a agricultura familiar tem pela natureza e, em particular, pela biodiversidade. Esse cuidado faz parte de uma tradição cultural marcada pelo princípio da convivência com o meio ambiente que vem sendo atualizada por meio das redes que colocam os diferentes grupos de experimentadores em contato entre si para refletir sobre suas experiências e lutar pela reorientação dos rumos do desenvolvimento no semi-árido. Processos dessa natureza reafirmam o projeto político da Agroecologia, que tem pela frente grandes ameaças. A introdução de sementes transgênicas, em especial as de milho e algodão, é um dos riscos iminentes que a ASA-PB identifica. Se liberados no meio ambiente, esses transgênicos promoverão danos irreversíveis ao patrimônio genético que vem sendo conservado e multiplicado há gerações de agricultores no semi-árido.
Ao ser informado da origem do termo semente da paixão e o seu significado estratégico para a agricultura familiar, o visitante ficou definitivamente convencido de que as propostas que vêm sendo construídas pelas organizações na Paraíba devem ser reforçadas pelas políticas públicas, sempre assegurando aos grupos comunitários seus papéis como protagonistas do desenvolvimento. Assim foi relatado a ele: “Em um encontro estadual sobre sementes realizado em 1998, o embrião do que viria a se tornar a Rede Sementes discutia as origens das se- mentes. No decorrer dos debates já estava mais do que evidente que os agricultores queriam plantar suas variedades crioulas e não as distribuídas pelos programas de governo. Foi quando o senhor Dodô, agricultor do sertão, se levantou e disse: ‘O que eu quero plantar é o milho jabatão, o feijão corujinha e a fava cara larga, e não a semente que vem de fora. Essas são minhas sementes da paixão. Cada um tem suas sementes da paixão e é nessa diversidade que nós temos que nos apoiar.’” E foi justamente com essa idéia em mente que foi construída a Rede Sementes da Paraíba.
Emanoel Dias da Silva
engenheiro agrônomo, membro da equipe do Programa de Aplicação de Tecnologias Apropriadas às Comunidades (Patac)
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Paula Almeida
engenheira agrônoma, assessora técnica da AS-PTA
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Referências Bibliográficas
ALMEIDA, P.;SIDERKY, P. Convivendo no semiárido com as sementes da paixão: experiência da Rede Sementes da Paraíba. Caderno do II Encontro Nacional de Agroecologia, 2006.
ASA-PB. Sementes da Paixão: cultivando a vida e guardando os frutos no semi-árido. Cartilha de poesias Cajazeiras, 2005.
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Revista V4N3- Um passeio pela Festa da Semente da Paixão