Lone B. Badstue
A semente é o insumo mais importante de toda agricultura baseada na produção de grãos, que é a maior fonte mundial de alimentos. Por essa razão, o manejo de sementes é um tema central para os agricultores e um elemento-chave para responder às suas necessidades de aumentar os níveis de produção e de segurança alimentar, bem como atender às suas distintas preferências culturais.
Embora a adoção de variedades melhoradas por parte dos camponeses tenha sido largamente estimulada pelos sistemas oficiais de pesquisa e extensão em várias regiões do mundo, a distribuição informal de agricultor para agricultor continua a ser o sistema predominante de suprimento de sementes para a agricultura familiar em muitos países em desenvolvimento. Esses mecanismos geralmente se apóiam nas alianças sociais e nas relações familiares tradicionais, tendo como base um contexto de interdependência e de confiança mútuas. Contudo, em que pese o fato de a troca entre agricultores ser ampla- mente reconhecida como importante fonte de sementes para um vasto número de agricultores, pouco se sabe como esses sistemas funcionam. Este artigo apresenta um estudo recente, conduzido nos vales centrais de Oaxaca, México –um centro de diversidade genética e de domesticação do milho –, que enfoca a importância das relações sociais nos intercâmbios de sementes e o papel central que a confiança mútua desempenha nesses sistemas tradicionais de acesso às sementes.
UMA FALTA GERAL DE TRANSPARÊNCIA
Os agricultores precisam de sementes de boa qualidade e com as características necessárias para seus objetivos e condições ambientais específicas. Contudo, esses aspectos podem ser difíceis de avaliar no momento da compra das sementes, uma vez que elas não são transparentes. Em outras palavras: é impossível saber as características e o desempenho que as plantas terão simples- mente olhando para o saco de sementes comprado. Isso só será conhecido quando a semente for plantada e o cultivo se desenvolver. A qualidade da semente é determinada por uma gama de fatores e pode ser difícil de avaliar, especialmente no que se refere à sua capacidade de germinação. Idade, patógenos ou armazenamento incorreto podem afetar a germinação, mas esses fatores não são necessariamente perceptíveis ao olho humano. Esse princípio também se aplica a outros tipos de materiais de plantio, tais como tubérculos, mudas, manivas, etc. É possível determinar se o material em questão é batata, banana ou mandioca, mas é limitada a quantidade de informação que se pode obter por inspeção visual do tubérculo, muda ou maniva. Além da cor, tamanho e alguns danos causados por insetos ou patógenos, não há como conhecer as características específicas da planta que irá crescer ou o seu potencial de desempenho em um determinado ambiente.
A falta de transparência também está ligada aos diversos fatores ambientais que influenciam o desempenho do cultivo. Isso é especialmente relevante em espécies de polinização aberta que apresentam maior variação em suas características genéticas de uma geração para a outra (em contraste com plantas que crescem de tubérculos, mudas ou manivas, ou de espécies de autopolinização, como o feijão). O milho é um exemplo do que os cientistas chamam de espécie com alta interação genótipo X ambiente, o que quer dizer que o seu desempenho produtivo em ambientes diferentes depende muito da composição genética da variedade. Em outras palavras, a variedade de milho que produz bem em um ambiente talvez não produza tão bem quanto plantada em outro.
Portanto, ainda que os agricultores inspecionem as sementes antes de comprá-las, eles dependem amplamente da informação oferecida pelo fornecedor no que se refere às características de produção e de uso, à adaptação ambiental e à qualidade da semente.
CONFIANÇA EM SUA PRÓPRIA SEMENTE
Para os agricultores dos Vales Centrais de Oaxaca, o meio mais comum e seguro de garantir as sementes para a próxima safra é selecionar e guardar a semente de sua própria colheita de milho. Há diversas razões para isso, mas um dos principais motivos mencionados é a confiança no seu próprio milho, ou seja, nas sementes que eles próprios selecionaram. Esse fato revela a consciência sobre o fato de que as plantas que germinarem de suas sementes irão apresentar um certo padrão sob as condições específicas em que são cultivadas.
Além disso, os agricultores escolhem as variedades de milho de acordo com suas preferências. Por questões sociais, culturais e ambientais, uma variedade pode ser apropriada para um agricultor, mas não necessariamente para outro. O agricultor conhece as características do seu milho tão bem quanto o manejo e o desempenho sob as circunstâncias específicas em que ele foi cultivado. Conhece também quando e onde a semente foi selecionada e como foi armazenada. Até mesmo as características de consumo relacionadas com aquele milho particular são bem conhecidas. Assim, ao utilizar as sementes que conhece e nas quais confia, o risco de perdas na safra é minimizado. Por essas razões os agricultores têm a convicção de que o uso de sementes por eles conhecidas e selecionadas é a melhor opção para atender às suas necessidades e preferências, além de minimizar riscos.
A habilidade para selecionar e armazenar sementes de milho de uma safra para a seguinte é altamente valorizada entre os agricultores da região. É uma das aptidões para ser considerado um bom agricultor. Entretanto, há outras ocasiões em que os agricultores procuram propositadamente por sementes externas. Por exemplo, quando a colheita é reduzida ou houve perdas de sementes na estocagem; quando a família utilizou a semente para alimentação ou teve que vender toda a produção para cobrir outras necessidades mais urgentes; ou, simplesmente, o que ocorre freqüentemente, quando deseja experimentar outros tipos de milho.
ADQUIRINDO SEMENTE DE MILHO DE OUTRAS FONTES
Em geral, as fontes alternativas de sementes são outros agricultores, vendedores nas feiras ou lojas agropecuárias nos centros regionais maiores. Contudo, devido à falta de transparência das sementes, sempre faltarão informações adequadas sobre as sementes adquiridas dessas fontes.
Os agricultores nos Vales Centrais de Oaxaca têm grande confiança nos membros de suas próprias comunidades. Mesmo que um indivíduo tenha sentimentos profundos de confiança (ou desconfiança) em relação a certas pessoas, muitos acham inconcebível que outros agricultores da mesma comunidade, conscientemente, lhes forneçam sementes de baixa qualidade. Por exemplo, ao longo dos anos, Cutberto e sua família têm plantado diferentes variedades crioulas de milho. Como muitos agricultores na região, todos os anos ele guarda as sementes das variedades que quer manter e nunca comprou sementes no mercado. Ao contrário, sempre que quis testar uma nova variedade, adquiriu sementes de outros agricultores de sua comunidade. Explicando sua preferência por obter sementes localmente, Cutberto diz: “Como posso lhe vender algo que não funciona? Logo você vai retornar para reclamar ou para me perguntar por que eu lhe vendi sementes ruins! ”As transações no mercado são diferentes: “Lá não há lugar para reclamar! Mesmo que você se lembre de quem lhe vendeu, como você irá encontrá-lo? E como você examinou o que estava comprando, a pessoa que lhe vendeu pode dizer que ela não tem culpa. Aqui na comunidade, se eu vender aos meus vizinhos algo que não funciona, eles reclamarão!” A maioria dos agricultores também pensa dessa forma, considerando que na cidade essa relação com as sementes “é estritamente comercial”. Uma grande parte dos vendedores nas feiras semanais é composta por agricultores que vão ao mercado para vender sua produção. “Eles estão lá para vender. E, assim que terminam, vão embora”.
Agricultores como Cutberto sentem que é muito mais arriscado comprar sementes em uma loja ou em uma das feiras regionais do que obtê-las na comunidade, onde as pessoas se conhecem bem e têm que arcar com as conseqüências caso as sementes que venderem não forem de boa qualidade. Afinal, quando não existem relações prévias entre o fornecedor da semente e o comprador, o agricultor tem que se contentar com a informação dada pelo vendedor. Alguns agricultores entendem que os vendedores não vão querer ser vistos como não-confiáveis, e por isso acabam acreditando que ele ou ela irá agir de maneira correta. Todavia, agricultores familiares nos Vales Centrais de Oaxaca têm muito pouca confiança nos vendedores das feiras das pequenas cidades próximas e das lojas da cidade de Oaxaca e costumam suspeitar dos argumentos dos vendedores. Eles têm pouca confiança não só na informação prestada pelos vendedores a respeito das sementes, como também na qualidade delas (veja quadro acima). Os agricultores sabem que, se houver algum problema, lhes será dito que eles não semearam adequadamente ou que suas terras não foram irrigadas na hora certa.
Quando compram sementes de milho (certificadas) das lojas agropecuárias ou sementes produzidas por agricultores nas feiras, os compradores percebem a maior falta de transparência e informação do que quando adquirem as sementes diretamente de agricultores vizinhos. Embora no México exista um sistema governamental que controla a qualidade do setor formal de sementes, não há mecanismos oficiais que controlem a venda no varejo de sementes vencidas. Além disso, quando pequenas quantidades de sementes certificadas são vendidas, geralmente são tiradas de um saco maior e não são acompanhadas de informações sobre suas qualidades, a não ser que o vendedor se disponha a passá-las verbalmente.
Assim, embora seja difícil julgar se as dúvidas ou suspeitas dos agricultores têm fundamento ou não, a questão aqui é que os agricultores vêem o setor formal de sementes e outras fontes não-locais como menos confiáveis e, portanto, de maior risco. Esses agricultores, conseqüentemente, preferem fornecedores de sementes considerados confiáveis – um conceito que pode se referir a diferentes categorias de pessoas, incluindo familiares, amigos ou conhecidos. Enfim, sempre alguém em quem o agricultor confia.
O PAPEL DAS RELAÇÕES DE CONFIANÇA E DE RECIPROCIDADE
A forma mais importante de confiança nos sistemas de trocas de sementes entre agricultores nos Vales Centrais de Oaxaca é baseada na reciprocidade. Isso se refere a interações nas quais a confiança é mútua, como uma via de mão dupla, que pode estar baseada em interesses, sentimentos de afeto, responsabilidade ou valores compartilhados. A cultura popular de Oaxaca tem uma forte tradição de reciprocidade e ajuda mútua, princípios que permanecem como uma característica significativa da vida social apesar das rápidas mudanças em tempos mais recentes. Isso é evidente, sobretudo, entre membros de uma família e em relações próximas (como entre compadres), mas também nas várias instituições da vida da comunidade, nas quais se espera que cada um contribua com sua parte. Numa certa medida isso também se reflete nas transações locais de semente de milho. Com freqüência a troca de sementes é apenas um dos muitos tipos de troca existentes entre duas partes, fazendo, então, parte de um fluxo diversificado de favores, serviços e apoios mútuos. Redes sociais e relações pessoais podem tornar a vida mais fácil e trazer alívio em certas situações, por exemplo, quando surgem emergências ou quando novas sementes de milho precisam ser obtidas.
Para os que não podem pagar a semente com dinheiro e, portanto, precisam adquiri-las por intermédio de uma transação não-monetária (como pegar algumas sementes emprestadas ou trocá-las por grãos), também é importante que o fornecedor de sementes seja alguém em quem se possa confiar e com quem possa se contar. Esse aspecto se relaciona a uma noção local do que significa ser um bom agricultor. Afinal, além de saber produzir e seguir os costumes locais, o bom agricultor deve ter integridade, independência e capacidade para atender às necessidades básicas de sua família. Dessa forma, um agricultor pode se sentir constrangido quando se encontra numa situação em que precisa pedir favores a outros, especialmente quando o que necessita é crucial para a sobrevivência, como é uma semente para uma família agricultora.
Numa relação de confiança, é possível pedir sementes de uma forma relativamente tranqüila e aberta. Muitos agricultores explicam que, quando necessitam de sementes, sua primeira escolha é dirigir-se a pessoas em quem confiam. Além de normalmente conhecer os tipos de milho cultivados pelos amigos próximos e familiares, o agricultor geralmente consegue obter, como parte da vida social normal, informações seguras sobre esses tipos de milho.
A importância da confiança e da reciprocidade também é sentida quando se tem problemas para adquirir sementes de milho. A maioria das pessoas diz que os agricultores que não têm dinheiro, parentes ou outras relações próximas são aqueles que passam por maiores dificuldades.
Apenas uma pequena parte das transações de sementes de milho nos Vales Centrais de Oaxaca é feita no mercado. A maior parte é realizada entre agricultores da mesma comunidade. Entretanto, os agricultores dos Vales Centrais em geral apreciam testar diferentes tipos de milho, que podem ser encontrados na feira, aonde pessoas de locais próximos ou distantes vão para vender seus produtos. Vale ressaltar, contudo, que as sementes de tais fontes, com baixo nível de confiança, são normalmente plantadas em pequenas áreas, para reduzir o risco de perdas na colheita.
O papel central que a confiança desempenha na aquisição de sementes tem implicações importantes sobre os métodos de manejo comunitário de sementes. O fato de os agricultores terem interesse em experimentar e aprender sobre diferentes variedades, mesmo sabendo dos riscos envolvidos, representa uma oportunidade no que se refere ao desenvolvimento e conservação da diversidade genética dos cultivos.
Lone B. Badstue
consultor internacional
[email protected]
Referências Bibliográficas:
BADSTUE, L.B. Small-holder seed practices: aize seed management in the Central Valleys of Oaxaca, Mexico. 2006. Tese (Doutorado) – Universidade de Wageningen, Wageningen, Holanda.
BADSTUE, L.B.; BELLON, M.R.; BERTHAUD, J.; RAMÍREZ, A; FLORES, D.; JUÁREZ, X. The dynamics of farmers’ maize seed supply practices in the Central Valleys of Oaxaca, Mexico. (no prelo). World Development, 2007.
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Baixe o artigo completo:
Revista V4N3 – Confiança mútua como base para a aquisição de sementes