James Frank Mendes Cabral
O estado do Mato Grosso é emblemático quando se trata da agricultura brasileira. Exerce peso significativo na produção e exportação de grãos e na balança comercial do país. Por outro lado, sua agricultura promove imensos impactos negativos, seja pela destruição dos ecossistemas, pelos altos índices de utilização de insumos poluidores ou ainda pela geração de graves conflitos agrários. As pastagens ocupam aproximadamente 24% da área do estado, o que corresponde a 26 milhões de hectares. A agricultura ocupa 10% do estado, cerca de 11 milhões de hectares, sendo que, na safra de 2005/ 2006, apenas a cultura da soja se estendeu por mais de 5,5 milhões de hectares. As queimadas continuam devastando áreas de cerrado e de floresta para dar lugar ao agronegócio socialmente excludente e ambientalmente predatório.
Mesmo diante desse cenário, comunidades tradicionais resistem por meio da manutenção de seus sistemas de produção, compostos pela integração de atividades extrativistas com roças, criação animal e quintais diversificados. A posse dos materiais genéticos utilizados nesses sistemas e o domínio dos conhecimentos a eles associados são essenciais para a reprodução dessas comunidades e de seus meios de vida. É por essa razão que agricultoras e agricultores de algumas regiões do Mato Grosso estão empenhados em resgatar, valorizar, produzir e colocar à disposição de outras famílias esse acervo genético e cultural desenvolvido e/ou adaptado pela agricultura familiar ao longo das gerações.
Este artigo apresenta as ações, as dificuldades e os aprendizados vivenciados pela rede de troca de sementes do Grupo de Intercâmbio em Agricultura Sustentável (Gias), espaço constituído para articular esses grupos de resistência camponesa no estado.
O GIAS E A REDE DE TROCAS DE SEMENTES TRADICIONAIS
O Gias surgiu no ano de 1999 a partir de uma discussão sobre agricultura sustentável realizada por movimentos e organizações comprometidas com a viabilidade da agricultura familiar no Mato Grosso. Desde então, o grupo promove ações em três linhas centrais: 1) planejamento da produção, articulação de possibilidades de mercado e comercialização dos produtos da sociobiodiversidade; 2) encontros estaduais e regionais com realização de feiras de produtos da agricultura familiar; e 3) a constituição de uma rede de troca de sementes tradicionais.
A idéia de criação da rede de sementes surgiu ainda nas primeiras atividades desenvolvidas pelo Gias. O primeiro encontro sobre sementes foi importante para evidenciar o interesse das agricultoras e dos agricultores nessa temática. Muitos trouxeram sementes para trocar e para apresentar aos demais participantes. Durante o evento, verificou-se a disposição generalizada de todos os presentes em buscar novas sementes para testar nos seus quintais e nas suas roças. Esse interesse compartilhado motivou as entidades que integram o Gias a elaborarem as estratégias da criação da rede de troca e produção de se- mentes tradicionais. O objetivo é estimular o resgate, a conservação e a troca de sementes tradicionais, aumentando a segurança alimentar por meio do fortalecimento de sistemas locais de gestão de recursos genéticos.
Partimos do princípio de que as mulheres são responsáveis pela manutenção da maior parte da biodiversidade, sendo as protagonistas dessas trocas de materiais. Com o tempo, no entanto, os homens também foram sendo incorporados a essa dinâmica.
O Gias apóia a realização de encontros regionais com o objetivo de articular diversas experiências de grupos e instituições e de debater o tema das sementes tradicionais a partir de uma perspectiva agroecológica. O Gias atua também na promoção de discussões sobre as políticas públicas para o desenvolvimento sustentável da agricultura familiar. As atividades de troca e produção de sementes tradicionais articuladas pela rede ocorrem nesses eventos que envolvem membros das comunidades e assentamentos nos quais atuam as entidades que com- põem o grupo.
A rede abrange treze municípios das regiões da Baixada Cuiabana, Grande Cáceres e Vale do Guaporé, desenvolvendo ações de produção de sementes e de identificação de espécies vegetais tradicionalmente empregadas pela agricultura familiar. Nas comunidades quilombolas da Baixada Cuiabana, por exemplo, o Gias apóia a produção de variedades tradicionais de milho que estão sendo cultivadas há vários anos pelas famílias daquela região. Nos municípios de Cáceres e Mirassol do O’este, sudoeste de Mato Grosso, o grupo acompanha experiências de produção de variedades tradicionais de feijão e arroz, promove trocas de sementes entre comunidades e novos assentamentos rurais, assim como realiza oficinas para o debate sobre políticas públicas orientadas para a valorização das sementes tradicionais e da agricultura familiar agroecológica.
Essa experiência do Gias no estado tem inspirado mais recentemente a criação de uma rede amazônica de troca e produção de sementes tradicionais da biodiversidade.
O PAPEL DAS ANIMADORAS E DOS ANIMADORES DA REDE
Nos encontros promovidos pelo Gias, grande quantidade de sementes era trocada, sem que houvesse registro das suas principais características ou qualquer tipo de informação sobre as plantas. Em função disso, estava clara a necessidade de se realizar um levantamento sobre as principais espécies vegetais e variedades tradicionais empregadas nos sistemas de produção familiar no estado.
Essa situação levou o Gias a articular um grupo de agricultoras e agricultores responsável pelo resgate físico desses materiais, bem como pelo cadastramento das principais informações e características de cada um deles. Para auxiliar o trabalho, foi elaborada uma ficha de cadastro e construído um banco de informação sobre as sementes (BIS). Por meio do BIS é possível cadastrar informações sobre os agricultores e agricultoras que atuam como animadores da rede, os produtores familiares detentores das sementes tradicionais, as características de cada material genético resgatado, além do registro das trocas realizadas por estímulo da rede.
As animadoras e animadores assumiram as seguintes atribuições:
- debater sobre a importância das sementes tradicionais em suas comunidades (incentivando e mostrando a importância de resgatar e conservar as sementes tradicionais, etc);
- articular e negociar apoio e parcerias com outras entidades para intensificar a identificação de possíveis sementes em processo de perda ou extinção (sindicatos de trabalhadores rurais, associações, prefeituras, etc);
- ser o contato estratégico com as entidades de apoio para geração de informações sobre sementes tradicionais;
- registrar experiências sobre armazenamento e uso de sementes e passar essas informações para as entidades de apoio;
- plantar em seus lotes as sementes tradicionais, diversificar os seus cultivos e, sempre que possível, oferecer às demais famílias da comunidade as suas sementes tradicionais;
- promover encontros para a troca de sementes nas comunidades;
- estimular a movimentação das sementes (circulando com sementes na época de plantio e distribuindo e coletando entre as famílias); e
- alimentar o BIS com informações sobre sementes.
DIVERSIDADE DE SEMENTES TRADICIONAIS IDENTIFICADA PELO GIAS
No ano de 2006, foram cadastradas no BIS 314 variedades de 84 espécies. O maior número de variedades foi das seguintes espécies: feijão, com 50 variedades; milho, com 42 variedades; arroz, com 26 variedades; e abóbora, com 12 variedades. De cada variedade cadastrada, foram levantadas informações sobre uso, ciclo da planta, época de florada, tempo para a produção de sementes, porte da planta, manejo empregado no cultivo e no armazenamento. Também foram coletadas diversas informações sobre as características da semente, entre elas, cor, forma, tamanho, origem (se da propriedade ou da comunidade) e histórico de produção. Além disso, averiguou-se a quantidade de sementes em litros de que o agricultor dispõe para seu uso próprio e para troca, venda ou doação.
As informações sobre a disponibilidade de sementes demonstraram que algumas plantas cadastradas estão desaparecendo, o que torna necessária a implantação de estratégias para sua reprodução, entre elas o plantio em um número maior de estabelecimentos. Identificou-se ainda que a grande maioria dos agricultores não possui sementes em quantidades suficientes para disponibilizar para outras famílias integradas à rede: 43% das famílias informaram não ter sementes disponíveis; 12 % afirmam ter menos de um litro de sementes disponível; 32 % afirmam ter entre 1 e 10 litros disponíveis; e apenas 14% das famílias possuem mais de 10 litros de sementes para doação, venda ou troca.
Esses dados confirmam a importância da multiplicação dessas espécies, pois as ofertas das mesmas são reduzidas. Demonstram também que são pequenas as quantidades de sementes trocadas entre as famílias, sendo que, em muitos casos, quando há troca, elas se limitam a alguns grãos.
Essa constatação levou o Gias a estabelecer processos de multiplicação das sementes em várias regiões do estado. Atualmente alguns grupos estão plantando espécies e variedades tradicionais com o objetivo de elevar a disponibilidade desses materiais em seus assentamentos e comunidades.
Nos municípios de Nossa Senhora do Livramento e Poconé, na Baixada Cuiabana, comunidades quilombolas e tradicionais reproduzem milho tradicional. Nos municípios de Mirassol do O’este, Cáceres e Porto Esperidião, grupos de produção ligados ao Gias estão reproduzindo variedades tradicionais de feijão e arroz, intercambiando sementes entre comunidades locais e plantando as variedades de milho provenientes da região da Baixada Cuiabana. Na região do Vale do Guaporé, nos municípios de Ponte e Lacerda, Vila Bela da Santíssima Trindade, entidades e grupos de agricultores desenvolvem a produção de mudas de espécies florestais para o enriquecimento dos quintais e a implantação de sistemas agroflorestais (SAFs).
ESTRATÉGIAS PARA O FUTURO
Para o Gias, os caminhos para a construção de maiores níveis de auto-suficiência em sementes devem seguir várias direções. A produção e a conservação das sementes in situ é uma dessas estratégias. O lote das próprias famílias, suas roças, quintais, reservas e demais sistemas de produção funcionam como armazéns da agrobiodiversidade. Quanto mais as sementes estiverem sendo plantadas, maiores serão as possibilidades de conservação das espécies e variedades à disposição da agricultura familiar.
Os bancos de sementes, ou casas das sementes, centralizados em uma propriedade ou entidade, podem ser muito eficientes para esse fim. Para que tenham um bom desempenho, no entanto, é necessária a organização de grupos de produção de sementes nas comunidades que fiquem responsáveis pelo suprimento de determinadas espécies. Os grupos devem ainda ser capazes de, processualmente, construir as regras para o funcionamento desses espaços de gestão coletiva
Ao analisar os mecanismos de troca de sementes entre as famílias, observa-se que estão fundamentados nas relações sociais de reciprocidade A maior parte das famílias espontaneamente envolvidas nesses intercâmbios são vizinhos, parentes, compadres e comadres, ou possuem alguma relação especial de proximidade que garante a troca contínua e naturalmente organizada. Essa realidade aponta para a necessidade de elaboração de propostas baseadas em bancos de sementes organizados no âmbito das comunidades ou mesmo em grupos menores.
Muitas sementes ainda não foram identificadas e resgatadas pela rede. Levar à frente esse processo é um desafio assumido pelo conjunto de entidades que integram o Gias. As entidades, os movimentos e os agricultores e agricultoras sabem que cada espécie e/ou variedade localizada representa um passo importante para a consolidação da Agroecologia enquanto enfoque para a construção de um modo de produção mais sustentável para as famílias e para toda sociedade.
James Frank Mendes Cabral
engenheiro agrônomo, técnico em educação não-formal da equipe da Fase/Programa Mato Grosso
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Referências Bibliográficas
ALMEIDA, P.; CORDEIRO, A. Sementes da paixão: estratégias comunitárias de conservação de variedades locais no semi-árido. 1a ed. Rio de Janeiro: AS-PTA, 2002. 72 p.
CABRAL, James F.M. Redes de resgate e troca de sementes tradicionais em assentamentos: estratégias coletivas de conservação de variedades locais. 2007. 67 f. Monografia (Especialização em Agricultura Familiar Camponesa e Educação do Campo) – Universidade Estadual de Mato Grosso, Cáceres.
FEARNSIDE, Philip M. Controle de desmatamento em Mato Grosso: um novo modelo para reduzir a velocidade de perda de Floresta Amazônica. Manaus: Instituto Nacional de Pesquisa Amazônica, 2002.
Baixe o artigo completo:
Revista V4N3 – Sementes tradicionais e a resistência camponesa ao agronegócio em Mato Grosso