Conceição Dantas
Organizações e movimentos sociais vinculados à Articulação Semi-árido Brasileiro (ASA-Brasil) vêm construindo na prática uma proposta de convivência com o semi-árido que tem como um de seus fundamentos centrais as variadas formas de aproveitamento das águas das chuvas. As experiências dessas organizações apontam para um caminho contrário ao que foi trilhado historicamente pelos programas oficiais. Ao passo que estes últimos orientam-se essencialmente na construção de grandes obras de infra-estrutura, deixando à margem de seus benefícios centenas de milhares de famílias que habitam o meio rural da região, as iniciativas da sociedade civil voltam- se para a descentralização da oferta hídrica, investindo em pequenas obras e equipamentos destinados a captar, transportar e armazenar a água das chuvas.
Além do emprego de uma concepção técnica inovadora que permite o atendimento das reais demandas das famílias no meio rural, as experiências impulsionadas pela sociedade civil diferenciam-se por serem promovidas por processos de mobilização comunitária articulados por organizações locais. Apenas no âmbito do Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semi-Árido: 1 Milhão de Cisternas Rurais (P1MC), ação implementada desde 2003 pela ASA-Brasil, cerca de 200 mil cisternas de uso doméstico e comunitário foram construídas até junho de 2007, sendo 25 mil delas no Rio Grande do Norte.
Nesse quadro mais amplo de avanços na convivência com o semi-árido, a experiência das cisterneiras do Rio Grande do Norte destaca-se por ressaltar uma dimensão central em qualquer estratégia que vise à construção da sustentabilidade socioambiental: o reconhecimento das mulheres agricultoras como agentes protagonistas dos processos de desenvolvimento local.
Nesse sentido, o movimento feminista do oeste do Rio Grande do Norte tem demonstrado que a luta das mulheres representa também a luta de todas as pessoas que querem viver em um mundo sustentável em harmonia com as condições geográficas e climáticas de seus respectivos locais. Situada no contexto desse movimento, a experiência das cisterneiras deixa claro que essa bandeira integra duas dimensões interdependentes: de um lado, a implementação de políticas promotoras de soluções técnicas adaptadas às características naturais do ecossistema; de outro, a luta contra a naturalização de injustiças socialmente construídas, tais como o latifúndio, a exploração do trabalho, a invisibilidade social das mulheres e a divisão sexual do trabalho.
TUDO COMEÇA COM A AUTO-ORGANIZAÇÃO DAS MULHERES TRABALHADORAS RURAIS
À época do lançamento da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e da Marcha das Marga- ridas no ano de 2000, houve intensa participação das trabalhadoras rurais do Rio Grande do Norte, o que foi significativo para a consolidação do movi- mento de feminista na região oeste do estado. Segundo o diagnóstico de relações de gênero realiza- do pelo Centro Feminista no Apodi, em 2003, 63% das mulheres entrevistadas afirmaram participar de algum grupo no assentamento ou comunidade. Com isso, a Coordenação Oeste de Trabalhadoras Rurais também teve suas ações fortalecidas, por meio do resgate de grupos de base, da ampliação das manifestações massivas e da coalizão dos muitos movi- mentos de mulheres em torno de bandeiras comuns.
Em outubro de 2003, no Encontro de Mulheres Trabalhadoras Rurais, realizado na cidade de Mossoró, o acesso à água de boa qualidade para o consumo humano foi apontado como tema central na pauta das trabalhadoras. Conforme as reflexões então realizadas, a garantia desse direito básico exigia ações de caráter emergencial, já que essa privação representava um dos principais obstáculos para a convivência com o semi-árido. A partir desse encontro, foi construída uma aliança entre movimentos e lideranças populares orientada para reivindicar políticas que viabilizassem o acesso à água de qualidade para os assentamentos que vivenciavam as maiores dificuldades nesse campo.
A Coordenação de Mulheres Trabalhadoras da Região Oeste apresentou as reivindicações do encontro ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Após essa audiência, o projeto de construção de cisternas nos assentamentos, viabilizado no âmbito do P1MC, transformou-se em ação concreta, com o apoio institucional e financeiro da Unidade de Ações Afirmativas do Incra, da Associação de Apoio às Comunidades do Campo (AACC), do Centro Feminista 8 de Março (CF8) e da Cooperativa de Assessoria e Serviços Múltiplos ao Desencolvimento Rural (Coopervida).
Na microrregião de Apodi, um total de 28 localidades nos municípios de Campo Grande, Baraúna, Caraúbas, Felipe Guerra, Governador Dix-Sept Rosado, Mossoró e Upanema foram contempladas com ações resultantes dessa conquista alcançada pelo protagonismo das mulheres trabalhadoras.
ASSEGURANDO A CONQUISTA
Passado o entusiasmo da primeira conquista, sucederam-se as preocupações com a organização e operacionalização do processo. As mulheres tinham a convicção de que aquela seria, de fato, uma ação política protagonizada por elas. Sabiam que teriam que aproveitar essa oportunidade para expandir o espaço político conquistado e mostrar na prática que podem fazer qualquer atividade que desejam. Além de serem capazes de fazer o gerenciamento da água para o consumo doméstico, deve- riam também assumir outras funções que fugissem aos padrões estabelecidos pela sociedade em que viviam. Com essa noção em mente, fortaleceram a idéia de que todo o processo teria que ser comandado por elas. Para tanto, seria necessário elaborar estratégias que assegurassem as conquistas por meio do enfrentamento da lógica da hierarquia de poder entre homens e mulheres.
PIONEIRISMO DAS MULHERES
Três mulheres capacitadas em Afogados do Ingazeiro (PE) serviram de exemplo para as assentadas potiguares inovarem, formando a primeira turma de pedreiras do Brasil. Elas assumiram a responsabilidade de capacitar outras mulheres e de atuar diretamente como cisterneiras.
As mulheres que demonstravam maior potencial de atuação como multiplicadoras foram priorizadas durante a seleção para participar do projeto. Além disso, a candidata tinha que residir no assentamento, ser posseira, sócia da associação, participar do grupo de mulheres e não ser beneficiária de cisternas provenientes de outros projetos. As mulheres que possuíam o maior número de filhos e filhas, que eram responsáveis pela renda familiar ou tivessem em suas famílias idosos e idosas e/ou pessoas portadoras de necessidades especiais também foram priorizadas.
O projeto tinha o claro objetivo de conjugar a apropriação de novas tecnologias adaptadas ao semi-árido e a possibilidade de geração de renda para as mulheres, com isso questionando a ordem hierárquica estabelecida entre homens e mulheres nos assentamentos.
A MÃO NA MASSA E A CERTEZA NA LUTA
Em fevereiro de 2004, 17 mulheres participaram do curso de três semanas e se tornaram construtoras de cisternas. Mais do que isso, conseguiram estabelecer um novo modelo de construção do P1MC. Todas estavam convencidas de que eram aptas à construção, seja em dupla ou em pequenos grupos. As agricultoras voltaram para as suas comunidades sabendo erguer e modular as placas da cisterna. Com isso, tiveram reforçada a certeza de que poderiam assumir qualquer trabalho que desejas- sem e de que não existe ofício (pre)destinado para homens ou mulheres.
A capacitação foi literalmente realizada com a mão na massa, sendo a conclusão do curso comemorada com a entrega da primeira cisterna. Os(as) donos(as) da casa assistida também contribuem, sendo responsáveis por cavar o buraco onde a cisterna é construída e preparar a terra para o trabalho das pedreiras. Elas assumem o trabalho a partir do nivelamento do terreno e da construção do contrapiso que sustenta as placas.
TRABALHO DE HOMEM, TRABALHO DE MULHER: O MITO DA FORÇA FÍSICA
A evolução do projeto demonstrou que a produção das placas não era o maior desafio que elas teriam que superar. A idéia de que mulheres e homens nascem com capacidades distintas para realizar determinadas atividades é uma construção histórica que oculta o trabalho das mulheres e institui a noção de superioridade do trabalho masculino. Em outras palavras, a consideração de que o esforço físico é algo inato ao homem – um imaginário sexista com base material na divisão sexual do trabalho – legitima a percepção de que as mulheres são naturalmente desfavorecidas para os trabalhos que demandam força. Vale lembrar, no entanto, que a classificação de uma atividade pesada ou leve é definida a partir de quem a executa (Nobre, 1999).
Assim, tão logo as mulheres tomaram a decisão de estar à frente do processo, elas se depararam com o ônus da polêmica e da contestação. Um projeto feito por mulheres costuma dividir opiniões dentro da própria comunidade, que não hesita em questionar: “Será que elas conseguem mesmo?”. As dúvidas quanto à capacidade das mulheres de, sozinhas, levarem adiante a proposta se espalharam por todos os setores envolvidos – inclusive entre mulheres e parte da assistência técnica. As entidades parceiras chegaram a enunciar a proposta de que as cisternas não fossem construídas apenas pelas mulheres, sugerindo a possibilidade de admissão de homens na turma.
Diante desse ambiente desfavorável, as mulheres enfrentaram muitas dificuldades para manter sua organização e superar o desafio. O descrédito crescente e in- flexível a respeito de sua força de trabalho evidenciava o preconceito forjado pela estrutura da divisão sexual do trabalho. As pedreiras tiveram que engolir piadas do tipo: “Coisa de mulher não pode prestar”; “Isso é coisa de quem quer inventar de fazer o que não é pra fazer”; “Se com homens é difícil, imagine com mulheres”.
Contudo, as mulheres envolvidas no projeto estavam conscientes de que a garantia da execução por elas próprias constituía uma oportunidade para a conquista de um novo espaço na comunidade, abrindo o caminho para a geração de renda com o aprendizado de um novo ofício. Algumas já previam que, depois de cisterneiras, estariam capacitadas também para construir casas, como Lindinalva Martins, de 18 anos, do município de Mossoró. Vinda de uma família de pedreiros e agricultores, ela enfrentou a desconfiança dentro de sua casa. Seu pai e seus irmãos achavam que ela não poderia fazer um trabalho tido como da alçada de homens. Um de seus irmãos, designado para a função de servente de pedreiro, queixou-se do inoportuno fardo: “É ruim porque tem que fazer tudo o que a mulher manda.”
Resistentes, as mulheres, que já eram membros de associações e tinham experimentado na prática o difícil diálogo com a comunidade, não recuaram diante das ameaças do sexismo, mas valeram-se delas para também fazer da construção das cisternas uma conquista política das mulheres no mundo público. Como nos revela o depoimento de Maria Iracema Silva, também da primeira turma de pedreiras: “Um homem disse pra mim: “Eu deixo rolar meu pescoço se vocês fizerem essa cisterna”. Eu respondi: pois apronte o pescoço porque ele vai rolar e a gente vai fazer”.
Passada a primeira etapa da luta, houve um segundo movimento, que se configurou como desqualificação da própria conquista. Contraditoriamente, depois do estranhamento inicial e vencido o forte descrédito na força de trabalho das mulheres, a partir do instante em que as cisternas foram erguidas e já se mostravam em funciona- mento, a função de pedreiras de cisternas passou a ser desvalorizada pela comunidade, que começou a qualificá-la como serviço leve. Nesse momento, o discurso sexista mudou: “Se elas puderam, qualquer um consegue”.
As mulheres, no entanto, apreenderam onde residia a base de tal desqualificação. Como podemos identificar nas palavras da pedreira Francisca das Chagas: “Se nós somos capazes de cozinhar, lavar, passar e ainda deitar de noite com eles, por que não podemos construir cisternas? ”. É a simplicidade desse questiona- mento que nos leva a retomar o conceito de divisão sexual do trabalho. Afinal, se não se cogita fragilidade quando se atribui à mulher o cuidado com a família e a difícil e custosa travessia da busca pela água – no transporte braçal de diversas latas d’água –, por que é tão conveniente que elas sejam frágeis no momento em que sua tarefa passa a ser uma função pública, remunerada e de valor reconhecido em toda a comunidade? (Cadernos 8 de março N° 7, 2006).
O impacto dessas questões no dia-a-dia das mulheres, desmentidas com a conquista das pedreiras do Rio Grande do Norte, já é suficiente para justificar e compensar todo o empenho investido nessa experiência.
UMA DUPLA CONQUISTA
A capacitação de pedreiras –realizada também por uma mulher, Maria José, da primeira turma de construtoras de cisternas de Afogados do Ingazeiro – foi uma vitória simbólica e política para a mulher do campo. Mas esse significativo avanço e suas conseqüências para o público assistido – seja pela própria execução física do projeto ou pelos dilemas sociais por ele suscitados – mostram mais uma vez que o machismo é ainda a grande ponte a ser cruzada no caminho rumo a uma sociedade sustentável, com igualdade entre homens e mulheres.
Cumpre ainda ressaltar que o projeto desenvolveu uma sistemática que permite o monitoramento contínuo da execução do cronograma de obras. Seus resultados são acompanhados por reuniões freqüentes de um grupo formado por representantes das mulheres cisterneiras da região. Em dezembro de 2006, já passavam de 250 as cisternas construídas por mulheres no estado.
Finalmente, para as mulheres organizadas nessa experiência, tornou-se evidente que a construção da Agroecologia só se dará se for capaz de, no processo, mobilizar a participação política delas em todas as etapas do desenvolvimento local. Diante dessa nova percepção, podemos concluir que essas mulheres cisterneiras realizaram mais do que levantar placas de concreto. Elas se tornaram multiplicadoras cientes de seus direitos na sociedade e na família, garantindo sua visibilidade como agentes protagonistas no campo, construindo e fortalecendo alternativas para os grupos e coletivos de mulheres organizados na região oeste do Rio Grande do Norte.
Conceição Dantas
coordenadora do Centro Feminista e militante da Marcha Mundial das Mulheres.
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Revista V4N2 – Organização de mulheres e convivência com o semi-árido: a experiência das cisterneiras no Rio Grande do Norte