Diferentemente da lógica que organiza os sistemas convencionais de extensão rural, baseados nos princípios da transferência de tecnologias, a agroecologia se constrói apoiada nas práticas e métodos tradicionais de manejo produtivo dos ecossistemas, desenvolvidos por gerações de agricultores e agricultoras familiares, e na valorização dos recursos naturais locais. Sua evolução se faz também à medida que o diálogo entre esses saberes populares e os acadêmicos é efetivamente promovido.
Assim, a construção do conhecimento agroecológico é resultante de processos locais de inovação orientados para aprimorar a convivência das famílias e comunidades rurais com seus meios socioambientais. Redes locais de experimentação se constituem organizando circuitos dinâmicos de troca e produção de novos conhecimentos. A geração do conhecimento agroecológico está, portanto, intimamente vinculada à capacidade de leitura e interpretação dos(as) agricultores(as) sobre os contextos em que vivem e produzem.
E é nesse sentido que a sistematização das experiências nas redes locais de inovação tem se apresentado como atividade essencial para que o conhecimento agroecológico avance pela via da integração de saberes. Sendo um processo necessariamente coletivo, a sistematização contribui para a recuperação e a ordenação da memória da experiência vivenciada conjuntamente; para distinguir seus erros; para identificar suas potencialidades; e extrair ensinamentos inspiradores de futuras ações.
Este número é dedicado ao tema da sistematização de experiências, procurando ressaltar a já considerável variedade de metodologias desenvolvidas e/ou adaptadas por organizações e grupos envolvidos na promoção de agriculturas mais sustentáveis.
Alguns artigos enfocam o processo de sistematização como meio para o fortalecimento de dinâmicas locais de inovação agroecológica. As experiências neles apresentadas evidenciam caminhos metodológicos adotados para que agricultores e agricultoras se assumam enquanto sujeitos da produção e da disseminação dos conhecimentos aplicados em suas próprias práticas produtivas e organizativas. Nesses casos, os grupos aprendem com suas experiências e agem sobre seus espaços para transformar suas realidades por meio do compartilhamento e análise coletiva de vivências locais.
A valorização desses saberes associados às técnicas e aos modos de vida das populações é também um aspecto bastante ressaltado nas modalidades de sistematização apresentadas nesses artigos. Para tanto, os instrumentos adotados para divulgar os conhecimentos sistematizados, sejam eles boletins informativos (pág. 9), artigos da revista da Universidade do Povo (pág. 13) ou os folhetos das Escolas de Campo de Agricultores (pág. 17), são centrados na história de vida das pessoas e comunidades diretamente envolvidas nas experiências.
Por se fundamentarem na reflexão e na análise crítica das próprias inovações técnicas ou intervenções no plano político-organizativo, as sistematizações provocam efeitos relevantes, com a promoção da autonomia do conhecimento, a elevação da auto-estima e a credibilidade das informações sistematizadas junto à população envolvida.
Com efeito, ao darem visibilidade às capacidades criativas, sejam elas individuais ou coletivas, as sistematizações motivam indivíduos e grupos a se engajarem em dinâmicas permanentes de inovação orientadas para o desenvolvimento local.
As sistematizações também podem cumprir um papel importante no reforço dos mecanismos tradicionais de transmissão de saberes, o que é realçado no artigo da página 9. Portanto, quando sensíveis às culturas locais e valorizadas nos espaços de sociabilidade existentes, as sistematizações podem apoiar a criação e a consolidação de processos sociais de inovação que facilitam diálogos de saberes e dinamizam circuitos interativos de comunicação em redes horizontais. Associados às trocas presenciais, as informações ganham cada vez mais credibilidade por parte de quem as recebe.
Outro grupo de artigos refere-se ao emprego da sistematização como meio para a reflexão e o aprimoramento das práticas institucionais, assim como para o favorecimento de intercâmbio entre as entidades promotoras da agroecologia. A experiência do Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM) na sistematização do Programa de Formação de Agricultores e Agricultoras em Sistemas Agroecológicos de Café Orgânico (pág. 22) ressalta a importância da incorporação das percepções dos diferentes atores sociais na descrição e análise dos programas de desenvolvimento em que estão envolvidos. Essa integração de pontos de vista torna possível a construção compartilhada de interpretações da experiência vivida conjuntamente, o que facilita a identificação de ensinamentos sobre as virtudes e as limitações das estratégias adotadas, bem como a análise da influência do contexto sobre o sucesso do programa.
Conduzida dessa forma, a sistematização cumpre uma dupla função: por um lado, é um exercício teórico e um esforço de revisão da prática institucional; por outro, permite a ampliação da capacidade de interação em rede da instituição, o que favorece os processos de aprendizado mútuo que ela estabelece com outras instituições.
Os processos de sistematização têm sido crescentemente estimulados como meios de fomentar interações em rede e intercâmbio entre instituições promotoras da agroecologia. O artigo da página 27 relata a iniciativa inédita de um concurso nacional de sistematização de experiências em agroecologia organizado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário. Identificar e socializar práticas agroecológicas em todo o país foram os principais objetivos desse concurso, que hoje caminha para a sua segunda edição.
Essa também foi a aposta do Projeto Demonstrativo (PDA) do Ministério do Meio Ambiente, que estimulou a geração de conhecimentos sobre proteção, uso e manejo dos recursos naturais a partir da sistematização de onze diferentes projetos que apóia com esse fim em diferentes estados (ver pág. 25). O sistema Agroecologia em Rede, um banco de dados virtual sobre experiências e pesquisas em agroecologia, é outra iniciativa orientada para dar visibilidade aos acúmulos técnicos, metodológicos e sócio-organizativos alcançados por projetos implementados nas diferentes regiões do Brasil (ver pág. 30).
Esperamos que os exemplos apresentados por meio desses artigos inspirem você e sua organização a qualificar suas próprias práticas de sistematização de experiências. Boa leitura!
Adriana Galvão Freire:
assessora técnica da AS-PTA
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Revista V3N2 – Construindo conhecimentos a partir das práticas