Editorial da Revista Leisa , março de 2006
Os artigos publicados na Revista Leisa demonstram como projetos de desenvolvimento agrícola ou de manejo de recursos naturais podem ajudar a melhorar a produtividade das propriedades familiares e/ou a regenerar os recursos naturais. A adoção e a experimentação de inovações técnicas geram novas habilidades e conhecimentos e proporcionam melhoria de rendimentos e/ou aperfeiçoamento no manejo dos recursos localmente disponíveis. Aqueles que têm a oportunidade de viajar para as áreas rurais, em qualquer parte do mundo, freqüentemente encontram agricultores que estão melhorando sua produtividade e sua renda de uma maneira ecologicamente segura. Os resultados dessas iniciativas podem ser evidentes para quem visita diretamente as experiências, mas em geral permanecem desconhecidos para os que não têm essa oportunidade.
A principal razão disto é que as experiências raramente são documentadas. Tampouco as pessoas e organizações envolvidas fazem muito esforço para comunicar para outros os aprendizados de suas próprias experiências. Dessa forma, uma pessoa interessada em aprender com as experiências de um determinado projeto precisa ir à área onde ele foi implementado. É fácil entender então por que acadêmicos e formuladores de políticas acreditam que os projetos e programas de desenvolvimento agroecológico têm poucos resultados, ou que só alguns agricultores têm algo interessante a dizer ou a mostrar. Essa aparente “falta de evidência ”é um argumento freqüentemente usado contra a agroecologia.
Essas são algumas das razões pelas quais as instituições que promovem a agroecologia vêm se preocupando em desenvolver e implementar procedimentos de análise e documentação das suas atividades e seus resultados e impactos. Processos de sistematização de experiências vêm sendo desenvolvidos e aprimorados para cumprir com essas funções.
DE ESPECIAL RELEVÂNCIA PARA A AGROECOLOGIA
O objetivo do processo de sistematização, mais do que simplesmente descrever uma experiência, é construir novos conhecimentos. A agroecologia, como um conceito, está constantemente evoluindo e mudando em resposta às transformações nos contextos natural, social e político. Por isto, e para que ela continue evoluindo, é muito importante sistematizar seus novos desenvolvimentos. O propósito da sistematização não é só descrever: ela deve examinar de perto os resultados e os impactos alcançados em um determinado projeto e o porquê. Esse processo representa uma oportunidade de aprender e descobrir relações entre fatos, socializar opiniões e identificar aspectos que podem ser úteis e interessantes no aprendizado. Podem levar a adaptações das atividades, seja no planejamento de grandes projetos ou nos métodos de cultivo em uma determinada propriedade.
AS DIFICULDADES ENVOLVIDAS
Há diversas razões pelas quais experiências interessantes, sejam elas bem ou mal sucedidas, muitas vezes não são sistematizadas. Talvez o problema mais comum seja a falta de tempo. Os profissionais que atuam a campo ocupam-se na implementação de seus projetos ou programas, muitas vezes realizando diversas atividades ao mesmo tempo, todas as quais com prazos para finalizar. Nesse contexto, pouco tempo sobra para sentar, olhar para trás e ver o que realmente foi feito e alcançado. E há ainda menos tempo para colocar isso no papel, com frases bem construídas e em uma linguagem fácil de ser entendi- da. Da mesma forma, os agricultores estão ocupados em suas atividades cotidianas, com pouco tempo para registrar suas tarefas diárias, os insumos empregados ou os rendimentos obtidos.
Para outros, o principal impedimento é a falta de conhecimentos especializados ou de habilidade para sistematizar. Muitos extensionistas, tanto das organizações governamentais quanto de ONGs, reclamam que não se sentem preparados para analisar uma certa prática em detalhe ou para escrever sobre ela, argumentando também que suas principais responsabilidades estão no campo e não em frente a um computador. Não é de se estranhar que demonstrem um certo “receio” quando lhes é pedido que sistematizem uma experiência, como se fosse esperado deles algo que só pode ser feito por especialistas ou por um consultor externo. O terceiro tipo de dificuldade que costuma ser mencionada refere-se à falta de apoio institucional para dispor de tempo e recursos para a sistematização.
Aqueles que estão familiarizados com as atividades desenvolvidas pelas organizações governamentais e não-governamentais podem encontrar contradições nesse ponto, pois elas dedicam grande quantidade de tempo e de recursos na formulação de documentos: equipes passam um tempo considerável elaborando projetos e preenchendo formulários de avaliação. Há muitos relatórios para escrever e apresentar, descrevendo tudo o que foi feito e tudo o que precisa ser feito no futuro próximo. No entanto, eles não são verdadeiramente o resultado de uma sistematização, pois não cumprem os dois objetivos básicos desse processo: ajudar os envolvidos na experiência a aprender com ela e assim serem capazes de aperfeiçoar a própria experiência, e divulgar o que está sendo feito e seus resultados.
A maior parte dos relatórios e documentos preparados por organizações que trabalham no campo apresentam duas falhas: são unicamente descritivos e não são compartilhados. Ao nos concentrarmos unicamente na descrição dos projetos, perdemos a oportunidade de ver em detalhes as razões por trás de suas atividades e seus resulta- dos. Quando damos mais importância à descrição do que à análise, geramos documentos cheios de informações, mas dos quais é difícil extrair lições. Por isto, eles não contribuem para gerar novos conhecimentos. Ao mesmo tempo, ao não compartilhar os resultados de nosso trabalho – às vezes nem entre colegas e membros da mesma organização –, limitamos as oportunidades para que outros aprendam com nossos êxitos e fracassos.
AS VANTAGENS DE UMA SISTEMATIZAÇÃO ADEQUADA
As experiências das entidades habituadas em sistematizarem suas práticas demonstram que a sistematização não é um processo necessariamente difícil, nem é algo que só possa ser feito por especialistas externos. Pelo contrário, é uma prática que pode facilmente se tornar uma atividade regular. Há muito para aprender com nossas próprias decisões e atividades e com as conseqüências que trazem. Uma análise detalhada de nossas experiências, da qual extraímos lições claras, pode contribuir para definir melhor o que precisa ser feito para ir adiante e alcançar certos objetivos. Como parte de um processo mais amplo de monitoramento e avaliação, a sistematização pode ajudar a tomar decisões mais acertadas ou a (re)definir o curso de uma ação. Ao mesmo tempo, pode ter um importante papel ao apoiar os processos de aprendizagem sobre as metodologias empregadas pelas entidades, atuando como uma ferramenta poderosa para integrar e expandir o conhecimento agroecológico.
Um processo de sistematização é essencial para compartilhar resultados com os demais. Isso é importante quando estamos interessados em promover uma certa técnica ou procedimento, quando o objetivo é ampliar certas experiências de projetos ou quando queremos promover maior impacto. Qualquer documento específico, incluindo um dos produtos finais de um processo de sistematização, pode ser divulgado, copiado ou trocado com outras pessoas e, assim, alcançar um público além das barreiras geográficas dos projetos. Geralmente nos referimos a livros, folhetos, brochuras ou outros tipos de documentos escritos e impressos, mas o mesmo vale para outros meios: fotografias, um vídeo ou uma apresentação de slides. Os benefícios são ainda maiores quando consideramos todo o processo e não só o documento final. Como uma ferra- menta de aprendizagem, a sistematização pode contribuir também para compartilhar informação e conhecimentos ao mostrar o que fazer em determinada situação e – tão importante quanto – evitar repetir erros similares. Em vez de reinventar a roda repetidamente, cada novo esforço deve se basear no que outros fizeram –algo que só pode ocorrer se conhecermos o que foi feito e por que foi ou não bem-sucedido.
Um processo de sistematização pode também ser fundamental para garantir que o conhecimento existente não se perca. Coletar, compilar e registrar informações é particularmente importante quando lidamos com saberes locais ou tradicionais, especialmente se estes não estiverem registrados.
Em suas propriedades, agricultores(as) podem refletir sobre suas atividades ao registrar os insumos empregados, tais como a quantidade de sementes utilizada, além do preço final da produção, e analisar tudo isso mais a fundo. Essa prática é particularmente importante para agricultores(as) que tentam aumentar a sustentabilidade de seus cultivos com os recursos disponíveis. Dessa forma, os planos de manejo podem ser adaptados para apoiar de maneira mais adequada o desenvolvimento da propriedade agrícola na direção desejada.
DIFERENTES POSSIBILIDADES METODOLÓGICAS
O processo de sistematização raramente segue uma receita. Ele deve ser adaptado para cada situação e organização específicas. Ele também pode servir para diversos fins. Cada processo particular deve considerar as diferentes perspectivas de todos os envolvidos ou afetados, e não só a dos responsáveis por descrevê-las (ou a do responsável por um projeto). Assim, a questão sobre quem está realmente sistematizando uma experiência, e para quem, deve ser cuidadosamente considerada.
Por definição, a sistematização é uma atividade participativa. Muitas pessoas diferentes participam de uma experiência; cada uma delas pode ter uma opinião ou ponto de vista distintos; cada uma contribui de uma forma diferente. A maneira como estas diversas perspectivas são levadas em conta vai depender da metodologia adotada.
O enfoque empregado para a sistematização depende do tempo e dos recursos disponíveis, bem como do número de pessoas ou instituições envolvidas. Depende também do produto final esperado e de quem pode se beneficiar dele. Em alguns casos, pode-se considerar também o uso de modernas tecnologias da informação. O uso da internet, por exemplo, pode ajudar a alcançar um público mais amplo a custos muito baixos. Um CD pode guardar muita informação em pequeno espaço e pode ser facilmente distribuído. A fotografia digital pode formar a base de um processo de sistematização em situações em que a leitura e a escrita não fazem parte da cultura local, mas onde há séculos os elementos visuais têm facilitado a comunicação, a reflexão e o debate. Deve ficar claro, no entanto, que o uso de equipamentos caros nunca é uma necessidade, e sim uma ferramenta que pode facilitar o processo.
De qualquer forma, seja a sistematização escrita ou não, tudo fica mais fácil quando se emprega uma deter- minada estrutura de ordenação das informações. O uso de uma estrutura específica pode tornar o trabalho mais minucioso, sem descuidar dos aspectos relevantes. Esse enfoque também é importante porque o processo de sistematização pode ser bastante longo e envolver muitas pessoas.
Qualquer que seja a metodologia empregada, a importância da sistematização reside nas oportunidades que oferece para a aprendizagem. Estas são fruto tanto do produto final compartilhado quanto do próprio processo. Assim, tanto no plano individual quanto no plano organizacional, a sistematização traz inúmeros benefícios.
Editorial da Revista Leisa
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Revista V3N2 – Sistematização para a mudança