Shree Padre
A dike Patrike é uma revista mensal sobre agricultura publicada na língua local Kannada e distribuída no estado de Karnataka, na Índia. Hoje em seu 18º ano, a revista pode ser considerada uma iniciativa única, por ser escrita, editada e publicada exclusivamente por agricultores. Este artigo relata algumas de nossas experiências e aprendizados como jorna- listas.
Desde meados da década de 90, o tema da captação e manejo de água da chuva é o principal assunto da revista. O motivo dessa decisão é simples: naquela época, assim como agora, esse era um tema muito importante para os leitores. O nível de água subterrânea caía drasticamente ano após ano e, na maioria dos municípios, o árduo trabalho na agricultura não vinha trazendo resultados satisfatórios para os agricultores. A cada verão, a crise da água se tornava mais grave. Em geral, os principais meios de comunicação não divulgavam conhecimentos práticos sobre captação e manejo de água de chuva e suas coberturas jornalísticas sobre a crise da água e as secas só enfocavam os aspectos negativos.
Como jornalistas envolvidos com temas ligados à agricultura e ao meio rural, constantemente ouvíamos falar sobre projetos de microbacias e das práticas de captação e armazenamento da água de chuva. No entanto, nem mesmo os técnicos detinham conhecimentos práticos de como desenvolver trabalhos nesse campo. E pior: os métodos descritos em livros ou recomendados pelos órgãos do governo não eram adaptados às condições locais e às possibilidades materiais das famílias agricultoras. De acordo com essas recomendações, a captação e o armazenamento da água da chuva deveriam ser feitos por grandes barragens que exigiam muito dinheiro em sua construção. Diante dessa realidade, começamos a procurar métodos que agricultores pudessem implementar por conta própria.
GANHANDO CONFIANÇA
Felizmente, conseguimos encontrar algumas organizações não-governamentais que desenvolviam experiências interessantes em captação e manejo da água de chuva. A partir da identificação dessas experiências, criamos diretrizes próprias para nossa ação. Primeiro, nos voltaríamos para os êxitos obtidos por agricultores(as), referindo-nos a isso como sendo experiências produzidas pela “universidade do povo”. Em segundo lugar, cobriríamos apenas iniciativas bem-sucedidas que não tivessem conta- do com subsídios do governo. A terceira condição foi de que os métodos sistematizados e publicados em nossa revista teriam que ser replicáveis em pelo menos algumas poucas comunidades ao redor.
Como a captação e o manejo de água de chuva era um conceito novo, nosso primeiro desafio foi criar confiança nos leitores da Adike Patrike de que os métodos funcionavam. Experiências anteriores mostraram clara- mente que as histórias de famílias agricultoras que tiveram iniciativas bem-sucedidas eram uma fonte excepcional de inspiração para nosso público. Esses relatos de sucesso podem ser bastante inspiradores porque têm maior credibilidade junto aos leitores. Se necessário, ele pode visitar uma determinada experiência relatada e conferir pessoalmente se as informações são verdadeiras. Isso faz com que ele acredite que também pode adotar o método, que é acessível. O mesmo não podia ser dito das histórias de êxitos obtidos pelos órgãos do governo.
Outra lição que o jornalismo nos ensinou é a de agregar uma certa dose de interesse humano aos relatos. Simples estatísticas e detalhes técnicos não são muito atrativos para o público. Por isso, combinamos as alegrias e tristezas das pessoas com o esforço que elas despenderam, as lições que aprenderam pela experimentação e as mensagens que podem oferecer para os outros e transformamos tudo numa história. Procuramos também assegurar que cada relato contenha algumas passagens de caráter prático, que provoquem reflexão, apontando erros come- tidos no manejo dos solos, da água, da vegetação.
A publicação dessas experiências gerou interesse imediato. Como resultado, começamos a ser convidados para participar de encontros com agricultores. A princípio, educadamente, recusávamos os convites, sentindo que não tínhamos experiência suficiente. No entanto, logo nos demos conta de que conhecíamos uma série de histórias de sucesso incentivadoras, todas carregadas de otimismo, ao apresentar a mensagem de que nós, pessoas comuns, podemos conservar o solo e a água empenhando pequenos esforços.
Isso nos animou a aceitar os convites para muitos encontros de conscientização organizados por agricultores, ONGs e órgãos governamentais. Elaboramos materiais de comunicação e organizamos projeção de slides ilustrando o tema com situações concretas que apresentavam ensinamentos. A pedido de grupos locais, o autor deste artigo teve a oportunidade de viajar bastante pelos estados de Karnataka e Kerala, tendo apresentado projeções de slides em mais de 400 reuniões.
DESCOBRINDO EXPERIÊNCIAS
Os contatos feitos durante essas exibições de slides ofereceram grandes oportunidades para “farejar” outras iniciativas de sucesso. Começamos a fazer isso perguntando sempre para as pessoas presentes: há alguém aqui que possa apresentar bons resultados, tenham eles sido obtidos de forma intencional ou não, da prática de captação e manejo de água de chuva? Cacimbas que secaram são muitas vezes consideradas um desperdício de espaço e as pessoas costumam cobri-las com terra: numa vila onde a maior parte desses poços foi coberta, há algum reservatório de água? Existem agricultores que tenham colhido grãos suficientes para sua família durante um período de seca mais severa? Há alguma propriedade ou área que não permite que a água barrenta flua quando chove? Alguém acredita que, em volta de sua casa ou propriedade, tenha água suficiente, inclusive para a próxima geração?
Adotando esse procedimento, pudemos conhecer muitas outras experiências bem-sucedidas. Uma das mais interessantes é a de Mundya Shrikrishna Bhat, um agricultor do estado de Karnataka. Há muitos anos, ele permitiu que pedras usadas para construção fossem retiradas do morro do lado oposto de sua casa. Com o tempo, a pedreira ficou bastante grande, parecendo um imenso tanque vazio que gradativamente era preenchido com água das chuvas. Não era de se espantar que o nível de água do poço do quintal de Bhat, que ficava ao pé do morro, tenha aumentado bastante. Embora ele não estivesse total- mente consciente da ciência por trás desse processo, ele seguiu à risca a sugestão de desviar qualquer curso d’água superficial disponível para essa pedreira. Isso fez com que ele tivesse ainda mais água em seu poço.
Outro caso é o de Vijayamma, uma agricultora que, juntamente com seu marido, há vinte anos começou a desviar o escoamento da água vinda de uma estrada próxima para seus pés de coqueiros. Apesar de a maioria dos 45 poços artesianos da região ficar seca quatro meses por ano, Vijayamma não tem com que se preocupar. Ela até mesmo tem podido fornecer água para vizinhos na estação seca. Durante uma projeção de slides sobre a captação e manejo de água de chuva em seu vilarejo no estado de Kerala, ela orgulhosamente mencionou que nós estávamos apresentando algo que eles vinham fazendo com sucesso por mais de duas décadas.
Por um período de quase dez anos, conseguimos colher idéias a partir de diálogos, reuniões de grupos e observações casuais feitas durante conversas ou ainda pelas cartas que recebemos de tempos em tempos de nossos leitores. Muitas desses contatos têm finalmente se convertido em experiências de sucesso na conservação do solo e da água, com grande valor para inspirar outras pessoas.
SISTEMATIZANDO OS SUCESSOS
Como sistematizamos as experiências bem-sucedidas? Na maior parte das vezes, fazemos visitas a campo. A informação vital que buscamos em tais visitas inclui: detalhes sobre a gravidade da falta de água na região; a descrição precisa dos métodos utilizados na captação e no manejo da água de chuva; a razão dos agricultores para optarem pelo método que está sendo sistematizado; os custos de implementação do método e os benefícios obtidos; as lições aprendidas no processo de experimentação do método; outras mudanças que ocorreram (além do aumento da disponibilidade de água); e outros conselhos que podem ser oferecidos a outros agricultores. Além das entrevistas, registramos fotograficamente a experiência.
Os recursos de que dispomos não permitem viagens de longa distância. Portanto, em alguns casos, adotamos um método diferente. Ao recebermos a indicação de uma experiência inovadora, telefonamos para o agricultor indicado e checamos se a informação é verdadeira. Se for, discutimos os principais aspectos do êxito da experiência. Isso nos oferece um quadro amplo, o que nos ajuda a montar um questionário detalhado, e fornece sugestões para as fotografias. O agricultor então responde ao questionário e pede que um fotógrafo amigo ou mesmo profissional tire algumas fotos de acordo com nossas orientações. Isso pode levar algum tempo, o que às vezes nos obriga a realizar cobranças antes de conseguirmos receber o material escrito e as fotos. Em seguida, realizamos novas discussões ao telefone para colher informações adicionais, de forma a suprimir eventuais lacunas ou obter esclarecimentos sobre algumas declarações. É nessa etapa de discussões finais que muitas vezes conseguimos pegar depoimentos e ensinamentos valiosos do agricultor. Se for necessário, também contatamos aqueles que aprenderam algo sobre a captação e manejo de água de chuva com o agricultor em questão, aqueles que pessoalmente testemunharam os benefícios trazidos, e ouvimos suas impressões. Sempre tentamos superar os obstáculos impostos por esse tipo de método de sistematização com mais discussão, até que a maior parte de nossos questionamentos seja esclarecida e tenhamos um quadro aprofundado do caso que temos diante de nós. Final- mente, esse grande volume de informação é editado e reduzido para um texto contendo entre 800 e 1000 palavras, ilustrado com duas fotografias.
EXPERIÊNCIAS DA REVISTA ADIKE PATRIKE
Em setembro de 1996, iniciamos a publicação de uma seção de artigos especiais chamada Nela Jala Ulisalu Nooru Vidhi (“Centenas de maneiras de conservar o solo e a água”). Nessa seção, somente experiências de campo testadas e comprovadas eram selecionadas para a publicação. Após mais de oito anos, essa série foi elevada a outro patamar, ao percebermos o interesse considerável que provocou entre as pessoas, os principais meios de comunicação e os governos locais. Durante o processo, aprendemos lições muito importantes sobre como funciona uma comunicação efetiva. Em primeiro lugar, em vez de escrever sobre centenas de teorias, retratar uma história real de sucesso, mesmo que pequena, em geral causa maior impacto. Em segundo lugar, uma experiência bem-sucedida desenvolvida na região é um forte incentivo para que vizinhos experimentem a inovação. Por uma questão de motivação, percebemos que vale à pena até mesmo publicar relatos de experiências muito similares.
A qualidade e a disponibilidade da água têm uma série de implicações na vida das famílias. Se um agricultor estava comprando água e agora não o faz mais por estar empregando uma técnica de captação e manejo de água de chuva, água para ele significa dinheiro. Numa região em que a água contaminada vem causando doenças, água é saúde. Identificar tais elos sempre nos ajudou a apresentar as histórias de forma que elas atraiam o interesse dos leitores.
A complexidade da captação e do manejo de água de chuva reside no fato de que somente métodos específicos e adaptáveis para cada lugar podem ser escolhidos. Sendo assim, não podemos oferecer uma solução generalizada e superficial ou mesmo dar todas as orientações como se estivéssemos dando comida na boca a um bebê. Adotamos, portanto, a política de “apresentar um leque de opções”, apresentando os prós e contras por meio de nossa revista, livros e exibições de slides. Cada agricultor é quem melhor pode avaliar seu tipo de solo e topografia e as vantagens e desvantagens da aplicação de uma certa técnica. Extraindo os princípios e as dicas práticas das diversas iniciativas de sucesso apresentadas, eles podem desenvolver seus próprios meios para conservar o solo e a água.
Temos recebido bastante retorno de nossos leitores. Após quatro anos de publicação, suas histórias também ganharam espaço na seção. Embora os primeiros casos bem-sucedidos fossem individuais, histórias de sucesso de iniciativas comunitárias começaram a surgir lentamente. Hoje, há milhares de agricultores no estado de Karnataka que adotam de forma bem-sucedida as práticas de captação e manejo da água de chuva.
Os meios de comunicação convencionais começaram a se interessar pelo assunto. Hoje, em Karnataka, três dos principais jornais diários dedicam uma coluna semanal sobre captação e manejo de água de chuva. Em Karnataka e em Kasaragod, um distrito vizinho do estado de Kerala em que somente a minoria da população fala a língua Kannada, lições simples sobre captação de água de chuva são incluídas até mesmo nos livros escolares. O sucesso obtido em suas próprias casas levou a administração de algumas escolas privadas a também inserir o assunto em suas diretrizes, como forma de educar os alunos. Um movimento “silencioso” de captação e manejo de água de chuva pode ser agora encontrado em seis distritos com alto índice pluviométrico em Karnataka, e nós da Adike Patrike estamos orgulhosos de ter desempenhado um papel decisivo para seu desenvolvimento.
Shree Padre:
jornalista da Adike Patrike.
Post Vaninagar, Via Perla 671 552, Kerala, Índia.
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Baixe o artigo completo:
Revista V3N2 – Sistematizando experiências da “Universidade do Povo”