Simone Ribeiro, Fernanda Testa Monteiro e Eugênio A. Ferrari
Algumas entidades que atuam na promoção da agricultura familiar têm acumulado experiências metodológicas muito ricas no campo da construção coletiva do conhecimento agroecológico. A sistematização dessas experiências cria ambientes fecundos para que os agentes diretamente envolvidos na ação reflitam, aprendam e aprimorem suas próprias intervenções, além de possibilitar a organização e a disseminação dos aprendizados gerados.
O Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA), por exemplo, tem incorporado a prática da sistematização das abordagens metodológicas que emprega como atividade voltada para o contínuo aprimoramento de sua ação institucional. Ao sistematizar um projeto, a entidade entende que esse esforço não pode se resumir ao agrupamento e ordenação de informações, mas deve, sobretudo, enfatizar a reflexão crítica sobre suas próprias experiências para, a partir delas, identificar lições e aperfeiçoar seus métodos de ação. Assim compreendidos, os processos de sistematização têm contribuído para gerar conhecimentos úteis tanto para o CTA e seus parceiros quanto para outras instituições que se proponham a iniciar intervenções similares. Este artigo descreve a experiência de sistematização do Programa de Formação de Agricultores e Agricultoras em Sistemas Agroecológicos de Café Orgânico e apresenta algumas das reflexões e aprendizados que são fruto desse processo.
A SISTEMATIZAÇÃO DO PROGRAMA DE FORMAÇÃO DE AGRICULTORES E AGRICULTORAS – PFA
A sistematização do PFA teve por objetivo analisar de forma participativa o contexto em que este se desenvolveu, suas estratégias metodológicas e resultados. Para tanto, procurou recuperar impressões e vivências dos envolvidos e avaliar os impactos na vida de agricultores(as) monitores(as), nas práticas metodológicas das entidades parceiras, bem como a irradiação das iniciativas em agroecologia promovida pelo programa.
O PFA buscava valorizar as experiências adquiridas por agricultores(as) na produção agroecológica de café por meio de três tipos de atividade interdependentes: encontros temáticos, que inicialmente abordavam questões específicas relacionadas à produção orgânica de café, mas que ao longo do programa passaram a incorporar outras dimensões temáticas de forma a contemplar a complexidade envolvida no enfoque agroecológico; experimentação de inovações agroecológicas por agricultores(as) monitores(as) em suas propriedades; e a socialização dos conhecimentos entre agricultores(as) monitores(as) e outros(as) agricultores(as).
Além dos impactos positivos na vida das famílias envolvidas, o PFA inova metodologicamente no que se refere à assistência técnica e extensão rural, já que são os(as) agricultores(as) que assumem a centralidade nos processos de produção e circulação de conhecimentos agroecológicos.
O desenvolvimento da sistematização do programa teve duração de seis meses e passou pelas seguintes etapas:
- Definição da equipe e da metodologia de sistematização, envolvendo a equipe do CTA e agricultores(as) monitores(as) do PFA.
- Pesquisa documental e elaboração do roteiro de entrevistas para levantar as informações necessárias.
- Realização das entrevistas, feitas individualmente ou em encontros/reuniões de grupos.
- Reuniões e encontros para a devolução e aná- lise das informações bem como para a identificação de lições parciais. Para assegurar que as percepções e perspectivas dos diferentes atores envolvidos no processo fossem contempladas nessa etapa, foram formados três grupos: de agricultores(as) monitores(as); da equipe técnica do CTA; e de organizações parceiras (grupo que se subdividiu em organizações da agricultura familiar e outras organizações).
- Encontrão com todos os grupos para a análise e identificação conjunta de lições.
- Elaboração do documento final.
- Produção de materiais para a divulgação da experiência do programa.
Uma equipe de sistematização, composta por três membros do CTA, uma assessora e duas estagiárias, estudantes da Universidade Federal de Viçosa (UFV), se responsabilizou por elaborar e conduzir o processo.
A metodologia adotada foi inspirada na proposta de Hurtado (2001), segundo a qual a experiência deve ser analisada por intermédio de uma matriz, em que as informações são ordenadas em eixos (na horizontal) que se desdobram em componentes (na vertical). A figura 1 apresenta os eixos e componentes que integram a matriz adotada para a sistematização do PFA.
As células da matriz foram preenchidas com questões orientadoras do trabalho de campo, conduzido de forma a levantar informações sobre o contexto local antes, durante e após a implementação do programa (ver exemplo na fig. 2). Por meio da elaboração dessas questões, foi possível estabelecer um método coletivo de busca, compilação e análise de informações que favoreceu a apropriação das conclusões e lições por todas as pessoas envolvidas no processo.
O QUE APRENDEMOS COM O PROCESSO?
Em uma sistematização, identificar o foco ou os recortes prioritários de análise é tão importante quanto definir os objetivos que se pretende alcançar. Isso porquê, na ausência desse foco, a equipe tende a ampliar cada vez mais o leque de informações – todas sempre consideradas muito importantes. No entanto, essa profusão de informações dificulta uma análise coerente e a obtenção de lições.
A metodologia empregada na sistematização do PFA permitiu orientar de forma criteriosa a busca de informações, facilitando o tratamento analítico das mesmas, o diálogo entre os diferentes atores envolvidos no processo, além de representar um ganho expressivo de tempo. Aplica-se especialmente a experiências complexas, como as que têm como objeto de análise as estratégias de entidades que atuam na promoção da agroecologia. Apesar da complexidade da experiência sistematizada, a metodologia permitiu que todos os agentes nela envolvi- dos participassem ativamente, ao contribuir com suas diferentes percepções, interpretações e análises. Esse envolvimento amplo favorece que todos(as) aprendam com o processo e possam assim aprimorar suas práticas.
Segundo os(as) agricultores(as) que participaram da sistematização, o método ressaltou o papel preponderante que eles(as) exercem na construção do PFA e deu visibilidade ao conjunto de informações e conhecimentos gerados. Representantes das organizações de agricultores(as) também saíram do processo com uma noção mais ampla dos impactos do programa e mais convictos de que a abordagem metodológica de assistência técnica e extensão rural empregada traz resultados mais significativos em relação às suas expectativas. Essas conclusões geraram motivação e fortaleceram a parceria. Além disso, professores e professoras da UFV identificaram nessa experiência abordagens inovadoras de ensino/aprendizagem e passaram a incorporar novos métodos pedagógicos, inclusive em suas aulas.
Para a equipe do CTA, a sistematização foi fundamental para que os conhecimentos acumulados pelos profissionais responsáveis pelo PFA fossem socializados com os demais colegas da entidade. Com isso, as inovações metodológicas experimentadas acabaram sendo incorporadas por outros programas institucionais. O processo de sistematização resultou assim em um aprendizado que permitiu ao CTA repensar suas rotinas e incorporar novas habilidades que contribuíram para o fortalecimento institucional.
Finalmente, cabe ressaltar que foi rico e prazeroso ver e ouvir homens e mulheres, agricultores e técnicos, jovens e adultos formulando e reformulando seus pontos de vista e construindo novos conhecimentos. O processo de sistematização, partindo do saber partilhado por todos, dá novo sentido à experiência prática e ao conhecimento construído. Como nos diz Paulo Freire “…o conhecimento mais crítico da realidade, que adquirimos através de seu desvelamento, não opera, por si só, a mudança da realidade… mas ao desvelá-la, contudo, dá um passo para superá-la.”
Simone Ribeiro:
pedagoga , MS em educação, técnica do CTA-ZM
[email protected]
Fernanda Testa Monteiro:
agrônoma, assessora
[email protected]
Eugênio A. Ferrari:
agrônomo, técnico do CTA-ZM
[email protected]
Referências Bibliográficas
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Porto: Afrontamento, 1975.
HURTADO, A. D. Guía metodológica para la sistematización de experiências en el S.R. Bolívia: Secretariado Rural Peru, 2001. 47 p.
Baixe o artigo completo:
Revista V3N2 – Sistematização de experiências: saber construído e partilhado artigo5v3n2