Durante mais de trinta anos, organizações de produtores familiares assessoradas por ONGs e outras instituições de apoio desenvolveram grande diversidade de experiências de produção agroecológica (inicialmente conhecidas como agricultura alternativa) em todos os biomas do país. Nesse período, as políticas públicas voltadas para o desenvolvimento agrícola estiveram essencialmente orientadas para a disseminação de um paradigma científico-tecnológico cujo traço principal é o uso intensivo de insumos externos aos agroecossistemas, que chegam às famílias produtoras na forma de pacotes técnicos. Durante a maior parte desse tempo, os poucos incentivos governamentais recebidos por essas experiências foram pontuais, irregulares e marginais. Nos últimos anos, entretanto, esse quadro vem se alterando.
A influência das organizações do campo agroecológico sobre as políticas públicas de âmbito federal tornou-se mais efetiva durante o atual governo, embora o agronegócio e o capital financeiro continuem a figurar como os grandes beneficiários das diretrizes governamentais para o mundo rural brasileiro. Programas de crédito, de pesquisa, de capacitação, de assistência técnica e extensão rural e de educação voltados para a agricultura familiar começam a incorporar, ao menos em parte, proposições elaboradas por organizações promotoras da agroecologia. Apesar de já implementados, esses programas inovadores coexistem com outros que os contradizem e que ainda exercem, infeliz- mente, maior influência sobre as orientações para o desenvolvimento da agricultura familiar.
As poucas políticas de apoio à agroecologia implementadas até o momento ainda têm um alcance restrito. Em geral, são operacionalizadas por programas mal ajustados às necessidades concretas das famílias agricultoras ou, em alguns casos, ainda pouco demandados por elas. A cultura institucional de vários organismos executores das políticas de Estado também tem sido um entrave para que elas sejam acessadas por produtores e suas organizações. Habituados há muito tempo a rotinas operacionais concebidas para a implementação de um outro padrão de desenvolvimento, esses organismos encontram enormes dificuldades para operar em coerência com os conceitos e métodos do enfoque agroecológico. Apesar dessas limitações, as novas políticas permitiram destra- var alguns programas governamentais, abrindo espaços para avanços (desiguais, é verdade) da agroecologia no plano nacional.
Embora o movimento agroecológico brasileiro tenha amadurecido e se capilarizado bastante na última década, a generalização desse conceito em meio ao universo da agricultura familiar exige um nível de compreensão e adesão das organizações dos produtores ainda não alcançado. Não obstante o posicionamento favorável à agroecologia por parte de organizações e movimentos sociais de abrangência nacional, essa questão ainda não mereceu um lugar de destaque na pauta de suas negociações com o governo.
As experiências apresentadas nesta revista evidenciam o quanto é fundamental que as entidades da sociedade civil, em particular as organizações dos produtores familiares, atuem decididamente para que as políticas públicas em favor da agroecologia se tornem mais abrangentes e consistentes e as resistências do aparelho do Estado sejam debeladas.
AVANÇOS E LIMITES DA FORMULAÇÃO E EXECUÇÃO DE ALGUMAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE APOIO À AGROECOLOGIA
A política de crédito foi, sem dúvida, aquela de maior abrangência dos últimos três anos. Beneficiou por volta de 2,5 milhões de famílias no plano de safra 2005/2006 com o emprego de quase nove bilhões de reais. Entretanto, grande parte desse montante foi despendida em créditos de custeio orientados para a compra de insumos do modelo convencional. Negociações entre o Grupo de Trabalho de Financiamento da Produção (GT-Financiamento), da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), e o Programa Nacional da Agricultura Familiar (Pronaf) resultaram na criação de mecanismos inovadores de crédito orientados para a transição agroecológica (Pronaf Agroecologia, Pronaf Semi-Árido, Pronaf Florestal). Apesar de terem sido implementadas, essas novas modalidades de crédito foram muito pouco acessadas, por não serem adequadas às condições dos agricultores ecologistas ou daqueles interessados em ingressar em trajetórias de transição agroecológica. Somam-se a esse fator as dificuldades dos agentes financeiros para operacionalizar esses créditos. Em outras palavras, entreabriram-se portas, mas poucos passaram por elas (Ver artigo A transição agroecológica das políticas de crédito voltadas para a agricultura familiar – pág. 18).
Outras modalidades de financiamento da transição agroecológica, de caráter mais estrutural e de longo prazo, foram testadas na Amazônia pelo Ministério do Meio Ambiente, a partir de uma formulação intensamente discutida por praticantes da agroecologia naquela região. Trata-se do Proambiente (Ver artigo Proambiente: um programa inovador de desenvolvimento rural – pág. 15), programa que teve sua execução limitada pelos poucos recursos disponibilizados, por bloqueios de natureza jurídico-institucionais e pela inadequação operacional dos aparelhos do Estado. Apesar disso, ele deve servir como modelo a ser seguido, pelo que representa de inovação no próprio conceito de financiamento da transição agroecológica, já que incorpora a idéia de remuneração dos serviços ambientais prestados pelos agricultores ecológicos.
A candente questão das sementes de variedades crioulas não chegou a ser tratada como uma política específica pelo governo federal. O tema só veio à baila em 2005, com a explicitação das contradições existentes entre a Lei de Sementes e a política de seguro agrícola. Tendo sido um ano de seca no sul do Brasil, foi grande a procura pelo seguro agrícola por aqueles que tiveram frustradas as suas safras financiadas pelo Pronaf. Os agricultores que utilizaram variedades crioulas em seus cultivos tiveram acesso negado ao benefício, pelo fato de que tais sementes não estão incluídas no zoneamento agrícola que orienta o Programa de Garantia da Atividade Agropecuária (Proagro). Essa questão foi tratada no artigo da página 11, que evidencia como o reconhecimento oficial das variedades crioulas ainda é um tema a ser aprofundado nos debates relacionados às políticas de conservação e fomento da agrobiodiversidade.
Já alguns programas do Ministério do Meio Ambiente (MMA) apontam para inovadores instrumentos de política voltados para o desenvolvimento agroecológico. Os acúmulos metodológicos e conceituais neles obtidos estão ainda longe de serem explorados em políticas de maior alcance que envolvam mais recursos. Nesta edição de Agriculturas, são apresentados dois artigos que ilustram essas iniciativas. O que trata do Projeto de Manejo dos Recursos Naturais da Várzea (ProVárzea), executado pelo Ibama, na página 32, e o que apresenta o Programa Projetos Demonstrativos (PDA), do MMA, na página 36.
As políticas favoráveis ao agronegócio que prevaleceram no governo Lula, mesmo com a campanha por parte de vigorosos nichos pró-agricultura familiar e pró-agroecologia, são abordadas na revista com foco em seu efeito mais deletério e ameaçador: a liberação do cultivo de transgênicos no Brasil. O artigo Remando contra a maré transgênica (pág. 7) revela como a sociedade civil lutou contra essa liberação, apoiando-se nas experiências agroecológicas para mostrar porque a opção pela transgenia não é uma necessidade nacional, como apregoam seus defensores, mas o produto de um poderoso lobby que o governo não quis enfrentar. Apesar da luta desigual, o resultado ainda não é definitivo. Foram ganhos espaços relevantes para deter a maré transgênica.
O artigo A institucionalização da agricultura orgânica no Brasil (pág. 25) discute o importante acúmulo conquistado pela sociedade civil na regulamentação da produção orgânica, em particular no que se refere à defesa dos sistemas de certificação participativa, que abrem caminho para uma maior inserção da agricultura familiar ecológica nos mercados.
Outro exemplo de políticas que tiveram a participação da sociedade civil foi o Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Pnater) adotado pela Secretaria de Agricultura Familiar (SAF), do Ministério de Desenvolvimento Agrário. A sua elaboração foi fortemente influenciada pelas discussões realizadas pelo Grupo de Trabalho sobre Assistência Técnica e Extensão Rural (GT-Ater) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável da Agricultura Familiar (Condraf) . Essa foi uma conquista importante que permitiu às organizações de agricultores e entidades de assessoria vinculadas à ANA apresentarem suas concepções e propostas. Além disso, a política e os programas nacionais de Ater abriram espaço para que setores da sociedade civil comprometidos com a promoção da agroecologia fossem financiados com recursos governamentais para a implementação de seus projetos.
Já no campo da pesquisa em agroecologia, pode-se dizer que foram dados passos modestos, mas importantes, em meio aos sistemas oficiais, como alguns institutos de pesquisa estaduais e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Esta última implementou uma rede de pesquisas em agricultura orgânica, envolvendo pesquisadores de diversas unidades. Embora represente um avanço, esse programa peca ainda pelo emprego de uma concepção convencional de pesquisa, na medida em que se orienta essencialmente para o desenvolvimento de protocolos técnicos de manejo orgânico em sistemas especializados de produção. Apesar disso, essa orientação teórica poderá ser fonte de conhecimentos novos à disposição daqueles que procuram soluções técnicas para seus sistemas diversificados de produção. Em outra frente, um grupo significativo de pesquisadores apoiado pela atual diretoria da Embrapa iniciou um esforço, mais ambicioso, de formular uma estratégia de incorporação do enfoque agroecológico na empresa. Mesmo que essa iniciativa ainda não tenha se traduzido em formulação de propostas de pesquisa articuladas a processos de desenvolvimento local, condição essencial para que venham a ser efetivas, ela permitiu que se fortalecessem institucionalmente núcleos precursores e ainda isolados de pesquisadores empenhados nessa perspectiva.
UMA AVALIAÇÃO DO CONJUNTO DAS POLÍTICAS
Feita a contextualização, podemos dizer que a construção das políticas para a promoção da agroecologia depende dos acúmulos alcançados por inúmeras comunidades de agricultores e agricultoras, suas organizações e entidades de apoio, tanto na formulação de propostas mais adequadas como no desenvolvimento de capacidades próprias para influenciar diretrizes de governo.
Cabe sublinhar, no entanto, que o maior limitante da efetividade do notável esforço do “campo agroecológico” para influenciar as políticas públicas parece residir na própria concepção e institucionalidade dessas políticas, marcadas por forte dispersão estrutural. Não apenas o governo é incapaz de estabelecer uma coerência de conjunto em suas ações para a agricultura, como também não se empenha em integrar os vários componentes que deveriam orientá-las ao apoio ao desenvolvi- mento. Cada uma das políticas segue sua lógica autônoma, dotando-se de instrumentos próprios e diferenciados que funcionam como verdadeiras barreiras de acesso a elas por parte dos promotores do desenvolvimento e dos próprios agricultores. Além disso, o governo padece de um vício operacional, ao conceber programas e políticas com horizontes de curto prazo, delimitados pela vigência dos mandatos. Pior do que isso, condiciona a alocação de recursos para os programas implementados por organizações sociais promotoras do desenvolvimento à execução de projetos em prazos ainda mais curtos, de um ano. Essas condições se antepõem à lógica das experiências acumuladas por essas organizações, que apontam para a necessidade de fluxos de recursos sustentados e de longo prazo para que se alcancem resultados significativos e eficientes da aplicação dos investimentos.
Para além do aperfeiçoamento das políticas tratadas nesta edição da revista, está colocada a necessidade candente de se promover um esforço de integração das ações do governo relacionadas ao desenvolvimento rural e à liberação de recursos, que deve ser mais significativa, para que venham a ser efetivas. Esse é um debate presente e que cabe ser intensificado nos diferentes fóruns da sociedade em que são avaliadas e propostas políticas públicas favorecedoras do desenvolvimento da agricultura com base no enfoque agroecológico.
Jean Marc von der Weid:
economista, coordenador do Programa de Políticas Públicas da AS-PTA
[email protected]
Baixe o artigo completo:
Revista V3N1 – Construindo políticas públicas em apoio à agroecologia