Marcelo Bassols Raseira, Evandro Pires Leal Câmara e Mauro Luis Ruffino
A pesca na Amazônia se caracteriza pela riqueza de espécies exploradas, pela quantidade de pescado capturado e pela dependência da população local por essa atividade. Ao longo dos últimos 40 anos, as bases da economia ribeirinha sofreram profundas modificações, com a intensificação da pesca comercial a partir dos anos 70, o declínio da agricultura como atividade principal e a expansão da pecuária na várzea. A grande transferência de mão-de-obra da agricultura para a pesca comercial, somada à demanda crescente de pescado pelos mercados nacionais e internacionais e à introdução de novas tecnologias de pesca (barcos motorizados, caixas de gelo, redes de nylon etc.), resultou no aumento da exploração dos estoques pesqueiros da região, prejudicando os pescadores residentes nas comunidades de várzea. Essa situ- ação levou ao surgimento de inúmeros conflitos sociais, em função da disputa pela utilização dos recursos pesqueiros.
Para reverter esse quadro, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) vem executando, desde 2001, o Projeto Manejo dos Recursos Naturais da Várzea (ProVárzea). O objetivo é contribuir para a elaboração de políticas públicas que promovam e regulem a gestão coletiva dos recursos pesqueiros e favoreçam o desenvolvimento de sistemas de conservação e manejo sustentável dos recursos naturais da várzea dos rios Solimões e Amazonas (Fig. 2).
PROJETOS INOVADORES INSPIRAM POLÍTICAS
O ProVárzea adotou como enfoque estratégico principal o fortalecimento de organizações de base por meio da promoção e apoio a projetos que funcionem como catalisadores de mudanças nos locais em que são executados, mas que também gerem metodologias e lições passíveis de replicação em outras áreas e regiões.
Além disso, os projetos implementados têm o objetivo de desenvolver e testar sistemas inovado- res de manejo dos recursos naturais da várzea que sejam econômica, social e ambientalmente sustentáveis. Por meio de seu “Componente de Iniciativas Promissoras ”, o ProVárzea/Ibama viabiliza o financiamento de subprojetos que estejam dentro de seu foco de atuação, além de acompanhar, monitorar e prestar consultoria técnica no desenvolvimento dos mesmos. Atualmente, são 24 subprojetos em execução em 32 municípios dos estados do Pará e Amazonas e que abrangem um amplo leque de temáticas, todas diretamente relacionadas ao intuito de reduzir a pressão sobre os estoques pesqueiros. Dentre elas, estão: ecoturismo; manejo dos recursos pesqueiros em lagos; fortalecimento de organizações de base; educação ambiental indígena; manejo florestal comunitário com ou sem fins madeireiros; agricultura e pecuária; manejo de quelônios; criação de abelhas sem ferrão e reflorestamento.
As iniciativas promovem ainda a aproximação dos órgãos governamentais com a comunidade, criando novos canais de participação cidadã da população ribeirinha. Dos projetos apoiados pelo ProVárzea, doze se referem diretamente ao manejo participativo dos recursos pesqueiros. São projetos com distintas abrangências que envolvem as comunidades organizadas em diferentes escalas. Na escala local, com apoio a iniciativas comunitárias de controle da pesca em lagos de várzea (ver Quadro 1). Em âmbito municipal, apoiando ações em Santarém (PA), Silves (AM) e Fonte Boa (AM). Na escala regional, abrange todo o baixo Amazonas, desde a fronteira do estado do Pará com o Amazonas até as proximidades do estuário do rio Amazonas, no município de Gurupá (PA).
DA AÇÃO LOCAL ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS
As experiências apoiadas pelos projetos de âmbito local têm mobilizado diretamente as comunidades e geram resultados concretos no que se refere à recuperação de estoques pesqueiros e à melhoria dos meios de vida das populações envolvidas. Em Fonte Boa (AM), a população de pirarucu (Arapaima gigas) já aumentou em 360% desde o início das atividades há três anos. Em Gurupá (PA), com a disseminação de métodos inovadores de manejo de pesca do camarão (Macrobrachium amazonicum), a renda das famílias pescadoras foi incrementada em 55%. Simultaneamente, verificou-se a diminuição da pressão de pesca sobre a população da espécie com a redução em 41% do número de armadilhas para a sua captura (Fig. 1).
Além da conservação dos estoques e da mobilização social, esses projetos têm possibilitado a disseminação das tecnologias desenvolvidas por meio de intercâmbios entre os pescadores de diferentes áreas e municípios. Por outro lado, apresentam limitações em sua escala de influência. Seus efeitos ir- radiam-se na escala de uma comunidade, de um lago ou de uma região de um município.
Quando atingem o âmbito municipal e regional, porém, os projetos têm maiores dificuldades para manter o envolvimento ativo das organizações de base. No plano municipal, operam por meio de representações de comunidades ou de grupos. Por outro lado, apresentam melhores condições de influenciar as políticas públicas que regulam mais amplamente o setor pesqueiro na Amazônia, já que estimulam o surgimento de lideranças capazes de atuar de forma qualificada nos projetos em nível municipal e regional. Ao mesmo tempo, essas mesmas lideranças têm condições de favorecer as ações locais. Além disso, as experiências mais abrangentes propiciam o estabelecimento de parcerias entre instituições de base e os órgãos públicos, facilitando o encaminhamento de demandas sociais, econômicas e ambientais das populações ribeirinhas.
Qualquer que seja a escala de abrangência social e geográfica, a estratégia do ProVárzea/Ibama é apoiar ações simultâneas que estimulem o desenvolvimento de alternativas sustentáveis para o manejo pesqueiro por meio de processos de construção social e política que venham de baixo para cima.
OS ACORDOS DE PESCA
Acordo de pesca é um mecanismo de ordenamento e regulamentação participativa da gestão dos recursos pesqueiros, cujo principal objetivo é a estabilização ou a redução da pressão sobre os estoques de pesca e o aumento da produtividade da pesca em longo prazo (Santos, 2005). O processo de elaboração dos acordos de pesca deve atender a regras especificadas na Instrução Normativa nº 29, publicada pelo Ibama em 31/12/2002. Uma vez negociados, os acordos são publicados oficialmente, passando a ser reconhecidos pelo Instituto.
Movimentos sociais e ONGs já estavam envolvidos em processos de elaboração dos acordos de pesca antes mesmo da oficialização desse método pelo Ibama. A ação do ProVárzea se deu no sentido de consolidar essa experiência anterior da sociedade civil. Os resultados práticos dos projetos apoiados pelo Ibama têm sido inspiradores para a formulação de propostas de gestão de recursos pesqueiros incorporadas nos acordos. Além disso, o programa capacita técnicos do próprio Ibama, de instituições estaduais de meio ambiente e de ONGs para que assessorem organizações comunitárias.
ALGUNS APRENDIZADOS
Aumento da renda familiar, fortalecimento das organizações das colônias e maior participação dos usuários nos processos de tomada de decisões são alguns dos impactos positivos das ações de manejo participativo dos recursos pesqueiros reguladas pelos acordos de pesca. Entretanto, se o estoque pesqueiro da bacia amazônica é considerado como um todo, percebe-se que o alcance das ações é ainda limitado. Como observado por Isaac & Cerdeira (2004), os principais efeitos dos acordos de pesca até o momento têm sido a redução dos conflitos entre os pescadores, uma vez que eles participam diretamente na formulação das propostas de manejo que visam atender aos seus próprios interesses concretos. Os acordos também têm desempenhado um papel importante no desenvolvimento de comunidades pesqueiras e contribuído para a descentralização dos procedimentos de gestão dos recursos naturais.
O ProVárzea/Ibama acredita que a participação da população, integrada como agente ativo na administração dos processos de desenvolvimento, favorece a tomada descentralizada de decisões. Isso implica na sua intervenção direta na produção de conhecimento da realidade, no planejamento, na execução, no controle, na avaliação e no redimensionamento das ações a partir das demandas locais. Contudo, a participação da sociedade nesse processo somente se dará de forma efetiva se ela se estiver organizada e legitimamente representada por suas organizações nas instâncias de tomada de decisões.
Marcelo Bassols Raseira:
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Mauro Luis Ruffino:
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Evandro Pires Leal Câmara:
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Técnicos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama)
Maiores informações sobre o projeto podem ser encontradas no site: www.ibama.gov.br/provarzea
Referências
ISAAC, V. J.; CERDEIRA, R. G. P. Avaliação e Monitoramento de Impacto dos Acordos de Pesca – Região Médio Amazonas. Manaus: ProVárzea/Ibama, 2004.
SANTOS, M. Aprendizados do Projeto Manejo dos Recursos Naturais da Várzea – ProVárzea. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 2005. Série Estudos 4. 53p.
Baixe o artigo completo:
Revista V3N1 – Gestão participativa dos recursos pesqueiros na várzea amazônica