Enfrentamos a mais crítica crise em nossa experiência planetária enquanto espécie. Ela resulta da combinação entre o acelerado esgotamento dos recursos naturais e o aumento sem precedentes das desigualdades sociais, fenômenos articulados que representam as duas faces de um sistema econômico globalizado e globalizante. É hora de resgatar formas de organização da vida social baseadas em cosmovisões e valores distintos do pensamento econômico dominante. A Agroecologia e o Feminismo têm papeis essenciais a desempenhar nesse resgate.
Janneke Bruil, Francois Delvaux, Assane Diouf, Rose Hogan, Jessica Milgroom, Paulo Petersen, Bruno Prado e Suzy Serneels
A agricultura e a alimentação industrializadas são elementos centrais da crise de civilização que atravessamos. Crise cujas consequências são bem conhecidas: deterioração dos solos e das águas, perda acelerada da biodiversidade, desmatamento, violação dos direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais e indígenas, condições de trabalho inseguras e precarizadas (em algumas situações análogas à escravidão), precariedade de serviços públicos no mundo rural, agravos à saúde gerados pela má alimentação (combinação de obesidade e desnutrição) e concentração de riqueza e poder político.
O sistema capitalista, patriarcal e colonialista dividiu o mundo entre quem tem voz e quem é silenciado. Como resultado, mulheres, indígenas, negros, entre outros grupos foram subalternizados por séculos. O surto da Covid-19 amplifica, aprofunda e explicita essas desigualdades e injustiças.
Já é tempo de ouvir e aprender com outros modos de ser, de viver e de trabalhar, outras cosmovisões, formas alternativas de organização da sociedade baseadas em outros valores – precisamente aqueles que são despreza- dos no sistema politico-econômico dominante.
Vivemos um momento de inflexão, uma verdadeira encruzilhada histórica. Os caminhos que tomarmos agora poderão nos conduzir à destruição ecológica e à anomia social ou a sociedades mais justas, democráticas e sustentáveis. Esta edição da revista Agriculturas: experiências em Agroeclogia apresenta relatos e reflexões iluminadoras sobre o segundo caminho. Sistematizados nos diferentes continentes do planeta, os artigos evidenciam diálogos e convergências entre a Agroecologia e o Feminismo a partir de exemplos concretos da construção de economias regenerativas e redistributivas orientadas pela justa divisão do trabalho entre homens e mulheres, inclusive nas tarefas domésticas e de cuidados.
AGROECOLOGIA: UM NOVO CONTRATO SOCIAL E NATURAL
Para responder adequadamente à crise estrutural em suas múltiplas dimensões (climática, econômica, alimentar, ecológica, sanitária, política), necessitamos que um novo contrato social1, baseado em valores como justiça, equidade e solidariedade, seja combina do com um novo contrato natural, estabelecido entre a comunidade humana planetária e os demais seres da Biosfera. Diante da crise estrutural que atravessamos, a Coalizão de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento e a Solidariedade (CIDSE)2, a rede AgriCultures (rede internacional da qual a AS-PTA faz parte) e o Coletivo Cultivate!3 concordam que a Agroecologia, pelo seu enfoque sistêmico e muldimensional, é a abordagem adequada para a transformação dos sistemas alimentares. Portanto, não pode ser reduzida a um conjunto de práticas de manejo agrícola. Os Princípios da Agroecologia4 sistematizados e divulgados pela CIDSE em 2018 enfatizam as dimensões socioculturais, ecológicas, econômicas e políticas da Agroecologia. Também em 2018, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês) propôs um documento com os 10 Elementos da Agroecologia5 orientadores da transição para sistemas alimentares e agrícolas sustentáveis.
No relatório Abordagens agroecológicas e outras abordagens inovadoras para a segurança alimentar e nu-tricional6, divulgado em 2019 pelo Painel de Expertos de Alto Nível em Segurança Alimentar e Nutricional (HLPE, na sigla em inglês), o reconhecimento global da Agroecologia foi reiterado de forma patente. Hoje, diante da gritante fragilidade dos sistemas alimentares e agrícolas globalizados revelada pela pandemia, a Agroecologia mais uma vez apresenta-se como um enfoque indispensável para a construção de resiliência.
Ao promover a reconexão da agricultura com a dinâmica ecológica dos ecossistemas locais e ao encurtar as distâncias físicas e sociais entre a produção e o consumo de alimentos, as experiências agroecológicas apontam para a importância da construção de geografias alimentares baseadas em economias ecologicamente regenerativas, socialmente equitativas, politicamente autônomas e democráticas. No lugar do produtivismo econômico voltado para a acumulação de capital, a economia da Agroecologia está ancorada em práticas de solidariedade social e cuidado com o ecossistema vivo. Isso inclui práticas orientadas para a reprodução social e ecológica, que sempre estiveram, e ainda estão, disseminadas na humanidade, mas foram deslegitimadas, invisibilizadas e até perseguidas pelas instituições políticas. A reconstrução da governança justa e democrática dos sistemas agroalimentares enraizados em economias do cuidado é o que os movimentos agroecológicos vêm praticando e defendendo há décadas.
CONVERGÊNCIAS ENTRE FEMINISMO E AGROECOLOGIA
Agroecologia, soberania alimentar, economia solidária e feminismo são ao mesmo tempo enfoques analíticos e movimentos sociais alinhados ao objetivo de construir outras formas de ser e de estar no mundo a partir da reconfiguração das relações de poder na sociedade. O feminismo questiona as estruturas de poder estabelecidas pelo patriarcado que definem as relações sociais hegemônicas. Já a Agroecologia e a soberania alimentar questionam as estruturas de poder que controlam a produção, a transformação, a distribuição e o consumo de alimentos. São teorias críticas e movimentos sociais que surgiram em resposta às injustiças sociais e à destruição ecológica geradas pelo capitalismo e pelo patriarcado. O sucesso do agronegócio depende justamente da imposição política em favor de economias de escala e da industrialização da produção e do processamento dos alimentos. Uma imposição que expropria os povos do controle sobre sua alimentação e, em diferentes níveis, que reforça estruturas de subordinação das mulheres.
Em muitos países, as agricultoras produzem a maior parte dos alimentos. Mas poucas detêm a propriedade das terras que cultivam. Muitas não têm acesso a serviços públicos e carecem de direitos básicos de cidadania. A devastação de florestas, manguezais e outros ecossistemas silvestres para a expansão de áreas de cultivo representa a devastação de áreas onde as mulheres obtêm alimentos, medicamentos, fontes de energia. Esses ecossistemas são também fonte inesgotável de biodiversidade ainda não conhecida. As mulheres não só têm pouca voz na tomada de decisões, como seus conhecimentos tradicionais estão se perdendo rapidamente. Durante séculos, foram forçadas a assumir alguns trabalhos agrícolas, a preparação de alimentos e demais tarefas domésticas, de criação de filhos/as e cuidado com idosos/as. Especialmente nas áreas rurais, elas foram amplamente excluídas dos espaços políticos, de educação, de voto e até mesmo de livre socialização e de decisões sobre seus próprios corpos.
Na sociedade moderna, o que é considerado produtivo é visto como aquilo que se traduz em dinheiro e contribui para o crescimento econômico. No entanto, essa produtividade só é viável se for sustentada por um trabalho reprodutivo, que inclui cozinhar, limpar, lavar roupas, comprar ou cultivar alimentos, cuidar, apoiar emocionalmente e o trabalho de alimentar a comunidade. Essas tarefas costumam ser atribuídas às mulheres. Apesar do aumento da igualdade de gênero no mundo, esses trabalhos permanecem sendo invisibilizados e subestimados pelo sistemas econômicos e culturais dominantes.
Nesse sentido, a perspectiva feminista de transformação social vai além da luta por igualdade de gênero. Uma perspectiva feminista da Agroecologia significa não só criar espaços para que as mulheres tenham pelo menos as mesmas condições e direitos que os homens, mas também reavaliar o trabalho reprodutivo que as mulheres fazem e reconhecê-lo como parte fundamental não só da economia, mas do bem-estar das famílias, de suas comunidades e, por extensão, de toda a sociedade. Uma perspectiva feminista da Agroecologia também implica que os homens assumam mais responsabilidade pelo trabalho reprodutivo. Na Agroecologia feminista, valores como relações de confiança, reciprocidade, solidariedade e cuidado devem orientar a organização dos sistemas alimentares. Por essa razão, além de reconhecer que as mulheres detêm conhecimentos e saberes fundamentais para a Agroecologia, muitos militantes dos movimentos agroecológico e pela soberania alimentar incorporaram o feminismo como um elemento inalienável da luta por um sistema alimentar global justo e sustentável.
EXPERIÊNCIAS INSPIRADORAS
Nesta edição da revista Agriculturas, apresentamos valiosas experiências vividas por homens e mulheres em todo o mundo. Lutar contra a invisibilidade das práticas econômicas solidárias, cooperativas e de cuidado com outras pessoas e com os ecossistemas é um desafio central para a construção da Agroecologia. A articulação de redes e movimentos é um fator crucial da mudança. Na Bolívia (p. 28), mulheres camponesas desempenharam um papel fundamental na recuperação das variedades locais de batata, o que mostra como suas capacidades inovadoras podem ser reforçadas quando elas se unem. Da mesma forma, no caso da Índia (p. 14), redes de mulheres desenvolveram novas práticas econômicas, garantiram o acesso à terra, aprimoraram técnicas agroecológicas e criaram cooperativas lideradas por mulheres. Como argumentam Jan Douwe van der Ploeg e Janneke Bruil (p. 17), mesmo na Europa é muito importante trazer à luz o trabalho muitas vezes invisibilizado das mulheres camponesas, uma vez que o conhecimento e as habilidades delas são cruciais para tornar a Agroecologia economicamente viável.
Após décadas de trabalho na região africana do Sahel, as autoras do artigo da página 48 destacam que a principal lição que fica é que o fortalecimento do papel econômico e político das mulheres é possível por meio da abordagem agroecológica, desde que acompanhado por melhores níveis de nutrição e por metodologias de ação explicitamente voltadas a favorecer a inclusão de membros marginalizados da comunidade nos processos.
De fato, para que projetos orientados pela perspectiva agroecológica evitem a reprodução de padrões de exclusão e de injustiça de gênero, é necessário um trabalho incisivo na construção de redes, baseadas na solidariedade e em alianças com pessoas de diferentes origens, refletem autores do Centro de Agroecologia, Água e Resiliência do Reino Unido (p. 43). Nas palavras de Rachel Bezner Kerr (p. 31), se queremos uma Agroecologia feminista, devemos considerar a justiça social como elemento central.
Mas como promover isso? Como mostram as experiências apresentadas nesta edição, é fundamental que as agricultoras comecem por uma reflexão sobre suas realidades e condições cotidianas. Isso pode servir como um catalisador para enfrentar as desigualdades geradas pelo patriarcado e pelo agronegócio. Em Uganda (p. 40), uma metodologia específica que utiliza elementos visuais e combina questões de gênero e Agroecologia foi usada para aumentar a conscientização visando alterar a divisão (desigual) de tarefas entre homens e mulheres. Em entrevista, a ativista queniana pela justiça alimentar Leonida Odongo (p. 32) explica como uma reflexão crítica sobre o impacto dos agrotóxicos estimulou as mulheres a desenvolverem alternativas como compostagem, repelentes naturais de pragas e biofertilizantes. Já no caso do Movimento das Mulheres Camponesas no Brasil (p. 44), tais reflexões serviram de base para incentivar as mulheres a se unirem para elaborar e defender políticas públicas.
No entanto, o envolvimento com a política pode ser um caminho tortuoso e arriscado para as mulheres. Experiências de fortalecimento e disseminação da Agroecologia (p. 18) evidenciam como esse processo fica sujeito à cooptação e pode excluir as mulheres que foram as pioneiras no protagonismo das iniciativas agroecológicas. A história da Assembleia das Mulheres
Rurais da África do Sul (p. 21) sugere que o risco de cooptação pode ser bastante reduzido quando a Agroecologia é assimilada não apenas como uma prática, mas como um movimento orientado por demandas fundamentais, incluindo aquelas que buscam ampliar espaços de liderança das mulheres, estabelecer formas horizontais de colaboração e incorporar perspectivas que enfatizam o cuidado, e não o lucro.
A centralidade do cuidado na Agroecologia feminista é também destacada em outros artigos. Iniciativas de abastecimento alimentar no Equador (p. 10) mostram que as mudanças de poder não surgem somente ao tornar a produção mais agroecológica. É também necessário cultivar relações de afeto entre as pessoas e seus alimentos, especialmente em tempos de Covid-19. Acadêmicos no México (p. 24) relatam um caso semelhante no meio científico, demonstrando que o conhecimento agroecológico não deve se concentrar apenas na teoria abstrata, mas também em experiências concretas e relações de cuidado entre pesquisadores, camponeses e povos indígenas.
Conforme explicado pelos autores dos artigos sobre a Rede Nacional de Defesa da Soberania Alimentar na Guatemala (Redsag) (p. 36) e a Aliança Americana Nativa para a Soberania Alimentar (Nafsa, na sigla em inglês) (p. 39), essas éticas transcendentais que primam pelo cuidado com os outros e com a natureza costumam ser intrínsecas às cosmovisões indígenas. Essas visões de mundo inspiram a construção de uma Agroecologia feminista e a revalorização do trabalho das mulheres agricultoras no presente.
PROMOVENDO A MUDANÇA
Os artigos apresentados nesta edição permitem vislumbrar como a Agroecologia, enquanto inspiração para a elaboração de um novo contrato socioecológico baseado na justiça, na equidade, na solidariedade e na harmonia com a natureza viva, está se desenvolvendo por meio de experiências concretas em diferentes partes do mundo. É preciso avançar nessas experiências para que maiores capacidades de incidência política sejam construídas e que sejam dadas respostas adequadas à crise estrutural de uma sociedade que caminha para o colapso. A pandemia da Covid-19 nos mostra o valor e a importância de sistemas agrícolas e alimentares resilientes e diversos, baseados na ética feminista de cuidado e solidariedade.
Em todo o mundo, as pessoas que produzem seus próprios alimentos ou que integram redes territoriais de produção e abastecimento alimentar estão muito menos vulneráveis do que as que dependem exclusivamente de mercados e cadeias de valor globalizadas. Há mundialmente uma redescoberta do prazer da comida caseira, valorizando os alimentos frescos e saudáveis, produzidos localmente, em detrimento da comida ultraprocessada encontrada nas prateleiras de supermercados. As organizações de agricultores rapidamente estabeleceram sistemas de entrega direta. Novas relações urbano-rurais foram forjadas para combater a fome nas cidades e nas áreas rurais e para salvar as pequenas empresas atuantes no ramo do varejo de alimentos. Mesmo diante dessa realidade, muitos governos deixam de apoiar essas iniciativas construídas a partir do protagonismo social. Com isso, em vez de aprendermos com as experiências sociais, corre-se o risco de que a pandemia contribua para consolidar ainda mais o poder das corporações sobre os sistemas de produção e abastecimento alimentar.
Portanto, apesar da criatividade das pessoas no enfrentamento aos efeitos da pandemia, é patente a inadequação das medidas públicas que continuam dependentes do status quo político e econômico. As economias não podem continuar a ser organizadas como se as pessoas fossem força de trabalho barata e os ecossistemas fontes inesgotáveis de recursos e sumidouros infinitos de resíduos. Temos que lutar pela transformação das sociedades para que elas voltem a se integrar organicamente nas dinâmicas ecológicas do planeta.
Para que a Agroecologia seja efetivamente assumida como um enfoque orientador das transformações socioecológicas necessárias e urgentes, é preciso que seja incorporada em íntima associação com valores societais e perspectivas analíticas defendidas pelo feminismo. A pandemia surge nesse momento como um teste de surpresa para nossas instituições políticas. Assumirão elas esses valores e perspectivas a fim de promover as mudanças que o nosso tempo histórico nos exige?
Os autores compõem a equipe editorial desta edição especial da revista AgriCultures: experiências em Agroecologia.
Pela Rede AgriCultures: Paulo Petersen e Bruno Prado (AS-PTA, Brasil) e Assane Diouf (IED Afrique, Senegal).
pela CIDSE: Francois Delvaux (CIDSE), Rose Hogan (Trocaire) e Suzy Serneels (Broederlijk Delen).
Pelo Cultivate !: Janneke Bruil e Jessica Milgroom.
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