O encontro dos saberes das famílias agricultoras com o acadêmico reforça o trabalho de monitoramento dos estoques dos bancos comunitários de sementes crioulas da Borborema
Um dos potenciais que a Agroecologia aporta aos territórios da agricultura familiar camponesa é a construção de diálogos e parcerias com os centros de pesquisa e conhecimento acadêmico, como as universidades. No território agroecológico da Borborema, no semiárido paraibano, a Universidade Federal da Paraíba (UFPB), por meio dos departamentos de engenharia de produção, agroecologia e agronomia, desenvolve há cinco anos um trabalho que têm sido um ‘divisor de água’ no monitoramento participativo dos estoques de sementes crioulas dos bancos comunitários. Esta ação é desenvolvida no território há 12 anos.
Por meio da metodologia de pesquisa proposta pela UFPB, foi desenvolvido o ‘Sistema de Monitoramento da Biodiversidade de Sementes Crioulas’ que devolve a informação às comunidades por meio de um código de cores, facilitando a leitura e o entendimento das guardiãs e guardiões da biodiversidade.
Com jeito didático, a professora e doutora em Engenharia de Produção, Christine Saldanha, que coordena o estudo, resume os resultados do monitoramento que, por sua vez, já direcionam a ação prioritária: “A análise do conjunto das 145 variedades mostra que apenas cinco variedades encontram-se com estoques elevados, 14 com estoques bons, 15 regular, 47 estoques baixos e 64 estoques críticos, estas últimas exigindo estratégias de ação urgentes para evitar a erosão genética.”
Para além das análises quantitativas, Christine destaca, como um dos seus aprendizados, uma questão de ordem qualitativa fundamental para dar sentido à união dos saberes tradicionais e populares ao acadêmico: “A possibilidade dos envolvidos compreenderem criticamente sua região e sua história, reconhecendo a importância da articulação entre conhecimentos teóricos e conhecimentos tácitos para o desenvolvimento social sustentável.”
Como tudo o que é bem sucedido na vida gera vontade de ampliar e aprofundar, o trabalho de monitoramento dos estoques das sementes da Paixão gerou a pergunta: O que vamos encontrar nos bancos de sementes familiares se lançarmos um olhar semelhante? Movidos por este interesse, um trabalho experimental foi feito, no início do ano passado, com 27 bancos familiares em 11 municípios do território. Os resultados apontaram um horizonte interessante, demonstrando que agregar este campo de pesquisa vale muito a pena.
Dona de um olhar respeitoso e cheio de reverência ao trabalho das famílias agricultoras e das instituições de assessoria política e técnica que atuam no território, Christine é professora do Departamento de Engenharia de Produção (DEP) e do Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Produção e Sistemas (PPGEPS) da UFPB. Também, coordena o Grupo de Extensão e Pesquisa em Ergonomia (UFPB). Além de ser pesquisadora da Rede Brasil de Ergonomia e Resiliência.
Como surgiu tua aproximação enquanto pesquisadora com este trabalho com os bancos de sementes comunitários da Borborema?
Em 2014 eu comecei a desenvolver um projeto de pesquisa e desenvolvimento em conjunto com a AS-PTA, voltado para a Concepção e Implementação de Indicadores de Desempenho da Agricultura Familiar de base Agroecológica, financiado pela FAPESQ-PB [Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da Paraíba]. A partir deste projeto fui conhecendo mais o trabalho desenvolvido pela AS-PTA e instituições parceiras, os agroecossistemas do território da Borborema, os agricultores e guardiões/guardiãs de sementes… Participei do Encontro dos Guardiões e Guardiãs de Sementes da Paixão, em Campina Grande, onde foram apresentados resultados do monitoramento das sementes nos BSCs [Bancos de Sementes Comunitários]. Fiquei encantada com a diversidade e com a relação dos agricultores com as sementes e, fiz alguns comentários e sugestões, agregando os conhecimentos da engenharia de produção e ergonomia. Em 2017, fui convidada para contribuir com o projeto de Monitoramento dos Bancos de Sementes Comunitários. Foi o início deste grande projeto participativo envolvendo o corpo técnico da AS-PTA, a Comissão de Sementes, docentes e discentes da Universidade. Um projeto de pesquisa e desenvolvimento que tem como objetivo, contribuir para a conservação da biodiversidade dos BSC e do Território da Borborema-PB.
Como tem sido o apoio dado por vocês a este monitoramento?
Este é um trabalho desenvolvido por muitas mãos, a partir de uma análise situada, de forma participativa, que conta bolsistas de Iniciação Científica (IC-CNPQ, IC-PROPESQ-UFPB) e de Extensão (PROBEX-UFPB; UFPB em seu Município). Desenvolvemos um Sistema de Monitoramento da Biodiversidade de Sementes Crioulas, das Sementes da Paixão, nos BSCs, que vem permitindo a classificação e análise da biodiversidade e dos estoques de semente. O Sistema de Monitoramento é uma ferramenta gerencial, que possibilita a tomada de decisão em diferentes níveis: nos BSC, nos municípios e no Território e, que poderá contribuir para a elaboração de Políticas Públicas. Os Cadernos de Sementes dos BSCs e os Anuários de Sementes dos Municípios e do Território, elaborados e entregues anualmente para os gestores dos Bancos [de Sementes], Sindicatos, Comissão de Sementes e AS-PTA, possibilitam a análise e o desenvolvimento de estratégias de ação. Buscamos elaborar os cadernos a partir de uma linguagem acessível, com a utilização de cores, facilitando a leitura e o entendimento dos resultados
O que foi agregado ao método que estava sendo usado antes de acompanhamento dos bancos?
O monitoramento permite fazer uma leitura anual da diversidade e dos estoques da Rede de BSCs do Território. Considero que a maior contribuição foi o desenvolvimento de uma escala de classificação dos estoques para os BSCs, municípios e Território. Esta classificação – estoques elevado, bom, regular, baixo e crítico – permite o desenvolvimento de estratégias de ação para conservação da biodiversidade, em especial, das variedades com estoques críticos (EC ≤ 2 kg), que necessitam ser multiplicadas em campos de multiplicação de salvação.
Os resultados do monitoramento permitem que os gestores e associados dos BSC possam identificar e localizar espécies perdidas nas comunidades e fazer intercâmbio, receber doações de outros BSCs ou aporte do Banco Mãe. As variedades em estoques críticos ou muito baixo em um BSC, que não são classificadas como críticas no Território, podem ser multiplicadas nas próprias comunidades. No entanto, as 64 variedades que estão com estoque crítico no Território, muitas delas identificadas em um único BSC, precisam ser multiplicadas nos campos de multiplicação de salvação, garantindo assim sua conservação.
No monitoramento realizado no início de 2020, na Rede de Bancos Comunitários de Sementes do Território da Borborema-PB, foram identificados 60 BSCs em 12 municípios, distribuídos da seguinte forma: Queimadas (13), Solânea (8), Areial (6), Casserengue (6), Remígio (5), Massaranduba (7), Alagoa Nova (4), Arara (3), Esperança (3), Montadas (2), Lagoa Seca (2) e Lagoa de Roça (1), totalizando 1.061 associados e atendendo 1.490 famílias de agricultores nas comunidades correspondentes. Os 60 BSC estocavam, conjuntamente, 9,294 kg de sementes distribuídos em 11 espécies e 145 variedades, assim distribuídas: feijão de arranque (34 variedades), feijão macassar (23 variedades), fava (29 variedades), feijão guandú (2 variedades), milho (18 variedades), forrageiras (13 variedades), hortaliças (6 variedades), oleaginosas (5 variedades), tubérculos (3 variedades), fruteiras (8 variedades) e flores (3 variedades).
Dentre as 11 espécies identificadas, quatro destacam-se por possuírem estoque elevado (≥ 500 kg): feijão de arranque (34 variedades: 3.729,66 kg) e milho (18 variedades: 3.277,14 kg), feijão macassar (23 variedades: 1.119,15 kg) e fava (29 variedades: 768,96 kg. Duas espécies possuem estoques bons (igual ou maior que 100kg e menor que 500kg): forrageira (13 variedades: 219 kg) e o feijão guandú (2 variedades: 184,05 kg). Três espécies com estoques baixos (maior que 2 kg e menor que 30 kg): hortaliças (6 variedades: 8,65 kg), oleoginosas (5 variedades: 6,65 kg), tubérculos (3 variedades: 3,85 kg). E duas com estoques críticos (igual ou menor que 2 kg): fruteiras (8 variedades: 1,75 kg) e flores (3 variedades: 0,60 kg).
A análise do conjunto das 145 variedades mostra que apenas cinco variedades se encontram com estoques elevados, 14 com estoques bons, 15 regular, 47 estoques baixos e 64 estoques críticos, estas últimas exigindo estratégias de ação urgentes para evitar a erosão genética.
Qual tem sido sua avaliação deste trabalho que se realiza em parceria universidade e comunidade?
Considero a parceria da universidade com a comunidade uma “ação de mão dupla”, em que os dois lados se beneficiam. Para a universidade, é uma oportunidade de aplicação prática dos conhecimentos em situações reais.
Ouvi depoimentos de que a aproximação com você está sendo bem positiva para a comunidade no sentido de retorno que algumas pesquisas realizadas antes não deram. Pra você, qual o papel da universidade numa ação como essa?
Este projeto possibilita a articulação de diversas áreas do conhecimento técnico com os conhecimentos tácitos, buscando, conjuntamente, desenvolver e implementar ações voltadas para desenvolvimento sustentável e, encaminhamento de questões sociais e ambientais prioritárias.
O que você percebe de aprendizados enquanto acadêmica que pode compartilhar com que tem interesse em desenvolver pesquisas ou projetos junto aos agricultores familiares?
É difícil descrever o aprendizado em um projeto como este, são inúmeros e em diversos âmbitos. Além profissional e pessoal, inclui aspectos mais globais, ambientais e humanos. Um aspecto que destaco, é a possibilidade dos envolvidos compreenderem criticamente sua região e sua história, reconhecendo a importância da articulação entre conhecimentos teóricos e conhecimentos tácitos para o desenvolvimento social sustentável.
Estão sendo desenhadas outras iniciativas em parceria com a AS-PTA e Polo da Borborema, não é? Elas já podem ser anunciadas?
No início de 2020, realizamos um monitoramento experimental em 27 Bancos de Sementes Familiares (BSF) em 11 municípios do território. Contabilizamos, nesta amostra, 9 espécies e 72 variedades, sendo 17 variedades diferentes das catalogadas nos Bancos Comunitários, comprovando a elevada diversidade dos BSCs e justificando a importância de pesquisas mais abrangentes. É uma ampliação do Sistema de Monitoramento que gostaria de desenvolver, entre outros projetos.
Você quer acrescentar algo mais?
Minha Gratidão a todas as pessoas que tornam este projeto uma realidade, em especial a Emanoel Dias da Silva, da AS-PTA, aos alunos bolsistas de Iniciação Científica e de Extensão da UFPB, Tharine da Silva Santos e Isabella de Oliveira Araújo (engenharia de produção), Daniel Ferreira da Silva (agroecologia) e, Vitória Azevedo de Andrade (agronomia) e, principalmente, a todos os agricultores familiares de base agroecológica do Território da Borborema, guardiões e guardiãs das Sementes da Paixão que conservam a biodiversidade do Brasil, um patrimônio genético e cultural da Humanidade.