“Ninguém esperava que 2021 fosse dessa forma. Ao contrário, as pessoas estavam animadas pensando que o ano seria bom”. Essa foi a primeira afirmação de Mateus Manassés na entrevista sobre as perspectivas da criação animal no território da Borborema para este ano. Mateus é um jovem de 25 anos, criador de animais em Queimadas, município bem próximo do Cariri paraibano, uma das regiões com o clima mais seco no estado.
“As primeiras chuvas, em março, encheram os barreiros, que há muito não eram enchidos. No início de abril, todo mundo começa a plantar. Nesse mês, sempre tinha uma chuvada. Em maio, foi mais ou menos, mas deu para sustentar o roçado. Já em junho, época da florada no milho, não houve um pingo de chuva e aí se perdeu a safra.”
Quando a safra não é boa/ Sabiá não entoa/ Não dá milho e feijão/ Na Paraíba, Ceará, nas Alagoas/ Retirantes que passam/ Vão cantando seu rojão, diz um verso da letra de Luiz Gonzaga que cantou muito as agruras de quem dependia só das águas caídas do céu para ter comida no prato e umas pequenas criações de animais.
Mas, diferente da letra do rei do baião, no território da Borborema paraibana, espaço onde se constrói há mais de 20 anos a agroecologia e a convivência com o Semiárido, apesar dos tempos difíceis, as famílias agricultoras têm construído estratégias para resistir.
E, pelo que se sabe das mudanças climáticas que afetam todo o planeta e já provocou o aquecimento médio do planeta em 1,1º C em comparação com a temperatura medida em 1850, período pré-industrial, os fenômenos climáticos extremos, como as secas mais intensas, só tendem a piorar.
Ou seja, a hora é de se munir de estratégias para superar os tempos desafiadores que virão. Lendo os sinais que anunciam as mudanças climáticas no território, o Polo da Borborema e a AS-PTA têm multiplicado a atenção aos sistemas de criação animal, seja trazendo para a região raças de ovinos adaptados à escassez de água e ao alimento disponível no Semiárido, seja cuidando da diversificação das reservas de forragem para os animais e das formas de fazer silagens.
Apesar dos pesares, a família de Mateus, o rapaz que relatou mês a mês as chuvas deste ano, conseguiu juntar uma reserva de duas toneladas de silo de palha dos pés de milho que não frutificaram por falta das chuvas juninas. Numa propriedade de 16 hectares, Mateus, o pai, a mãe e a irmã criam seis vacas e duas novilhas, 16 cabras, 25 ovelhas, além das aves. O silo deste ano não vai ter o reforço nutricional do capim sorgo, cujo plantio se perdeu com a falta de chuvas, igual ao milho.
Antes de abrir os silos, eles estão oferecendo o capim elefante e as palmas plantados na propriedade, além das plantas nativas que nasceram com as chuvas. “Com isso, vamos tentar fazer com que os silos cheguem até dezembro, comenta Mateus, que é biólogo e tem formação técnica em agroecologia.
“A palma é uma das culturas que mais defendo no Semiárido, porque é muito resistente à falta de água”, destaca ele que renovou seu campo de palma com as espécies resistentes à praga da cochonilha de carmim, que dizimou as plantações do todo o Nordeste. Apesar de novas, as palmas plantadas já pegaram e até deram “uma filha”.
Infelizmente, as famílias do território estão órfãs de seus velhos campos de palma que foram atacados e dizimados pela praga. Este ano, cerca 200 famílias receberam raquetes com espécies de palmas resistentes à cochonilha, mas ainda não deu tempo suficiente para que estes novos campos sustentem os animais neste ano, mas hão de servir para os próximos
“Até o momento, poucos sistemas pecuários conseguiram, nestes 10 anos desde a perda da palma comum, constituir uma reserva a ponto de ter condições de usá-la para alimentar os animais”, lamenta Felipe Teodoro, assessor técnico da AS-PTA para o tema de criação animal desde 2008.
As raquetes das palmas resistentes à cochonilha do carmim foram distribuídas às famílias envolvidas no projeto Borborema Agroecológica, que faz parte do projeto regional INNOVA AF, financiado pelo FIDA e executado pelo IICA que busca fortalecer as capacidades das famílias camponesas, por meio da gestão participativa do conhecimento e disseminação de boas práticas para a adaptação às mudanças climáticas.
A diversificação – Enquanto os novos campos de palma se estruturam, o estímulo da Comissão de Criação Animal do Polo é para as famílias diversificarem os cultivos de plantas forrageiras e também das nativas que servem para este fim.
“De acordo com cada região do território da Borborema, temos uma série de iniciativas. Desde o plantio de cactáceas, leguminosas, palmas resistentes à cochonilha, como a construção de um banco de proteínas com a separação de uma área da propriedade destinada exclusivamente à produção de alimentos para os animais, como áreas de milho, capim sorgo e abóbora forrageira”, conta Felipe.
Outra estratégia recomendada é o plantio de mudas de plantas nativas e exóticas para recomposição das matas, utilizando espaços marginais na propriedade, assim como a área do próprio campo de palmas.
E para favorecer o estoque de alimentos, mais seis máquinas ensiladeiras foram adquiridas também através do projeto Borborema Agroecológica, a novidade dessa vez é que esses equipamentos serão geridos diretamente pelas comunidades beneficiadas com o projeto.
“A gente acredita que assim facilitará o processo de armazenamento porque a gestão é mais próxima das famílias. E as demandas conseguem ser atendidas de forma mais rápida”, conta Felipe.
No campo das inovações para dotar as famílias de mais capacidade de resistência, há os sacos para guardar de 30 a 35kg de forragem por cada unidade, o que permite o uso parcelado das reservas feitas. É que quando se abre um silo, é preciso consumi-lo todo num certo tempo para evitar que o material se estrague. Nos sacos, dá para racionar mais este uso e evitar possíveis perdas, a opção de silagem em saco no formato trincheira depende da realidade de cada sistema de criação No território, foram distribuídos 3000 sacos para este fim.
E não dá para falar de criação animal no Semiárido sem destacar a necessidade de adotar as raças adaptadas ao clima cada vez mais extremo. “Sempre quando estamos passando por anos difíceis como esse, a gente vê o quanto a introdução de animais exóticos [na região] os faz sofrer. Cuidar destes animais é muito dispendioso em termos de trabalho, energia, alimentos e uma série de insumos”, comenta o assessor da AS-PTA.
“Esses animais sofrem, morrem, não reproduzem. É um grande erro manter um sistema de raças não adaptadas”, atesta Mateus, que também faz parte da diretoria do Sindicato dos trabalhadores Rurais de Queimadas e acumula várias outras responsabilidades como integrar as Comissões Executivas da Juventude de Queimadas e do Polo, animador os Fundos Rotativos Solidários da ovelha Morada Nova na sua comunidade, fazer parte do Banco Comunitário de Sementes e presidir a Associação Comunitária.
“O pior é que quando vamos pedir financiamento no banco para comprar animal, o próprio banco desacredita nas raças nativas e incentiva a compra das exóticas. O banco nem tem conhecimento das raças nativas. Nos comerciais de TV também é o mesmo processo. Em todos esses meios, há a desvalorização destes animais que são superimportantes para a convivência com o Semiárido”, indigna-se Mateus.
Sinal vermelho – Segundo estimativa da AS-PTA, no território da Borborema, o estoque de forragem animal de 2021 deve ficar na metade dos anos anteriores. “Se nos anos anteriores, também de seca, fizemos mais ou menos 2 mil toneladas que serviram de 180 a 200 famílias, este ano, alcançaremos de mil a 1,3 mil toneladas, beneficiando, no máximo, entre 100 a 120 famílias”, mensura Felipe.
“Desde o início de julho observamos cenas comuns de acontecer no auge da seca, nos meses de novembro e dezembro. As famílias estão usando as plantas de espinhos – mandacaru, xique-xique, coroa de frade, macambira, palma de espinhos – para alimentação dos animais. Imagine como se configurará este cenário quando estivermos em novembro e dezembro? Poucas foram as famílias que conseguiram constituir alguma reserva”, relata o assessor.
Felipe comenta que tem ouvido muitas famílias falarem que vão vender algumas cabeças para evitar um prejuízo maior ao sistema de produção animal a ponto de comprometê-lo integralmente, parecido ao que aconteceu em 2013 com o colapso da pecuária em todo o nordeste. Se as famílias acompanhadas pelo Polo e pela AS-PTA estão falando em diminuição dos rebanhos, imagine a situação daquelas completamente desassistidas de acompanhamento técnico e que não acessam conhecimentos que possibilitam a convivência com o Semiárido?
Nestas ocasiões, se destaca a importância de políticas públicas adequadas para dotar as famílias agricultoras de capacidades de reação ou resistência. Mas, infelizmente, “as políticas públicas que chegam em anos como este ainda são de carácter assistencialista e insuficientes”, sustenta Felipe.
O Polo é um coletivo que agrega 13 sindicatos rurais, mais de 150 associações comunitárias, uma associação regional de agricultores/as familiares, a EcoBorborema, e uma cooperativa com capacidade de atuar em todo o Estado, a CoopBorborema. E a AS-PTA oferece assessoria técnica e apoio aos processos organizativos do Polo.