Morosidade no julgamento da ação ajuizada em 2009 é acompanhada de relatos de agricultores de perda de agrobiodiversidade.
A norma que trata dos parâmetros de distância para o plantio de milho transgênico para evitar a contaminação das espécies não geneticamente modificadas é objeto de recurso a ser julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), nesta terça-feira (07). Ajuizada em 2009 pela Terra de Direitos, AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia, Associação Nacional de Pequenos Agricultores e Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), a Ação Civil Pública questiona a insuficiência da Resolução Normativa N° 4/2007. A ação, que já tramitou no Tribunal Regional da 4ª Região, agora pende de julgamento de recurso especial sob relatoria do Ministro Manoel Erhardt, no STJ.
De acordo com as organizações, a ação busca garantir aos agricultores e consumidores o direito de cultivar e produzir milho livre de transgênicos, garantindo medidas de coexistência realmente eficazes entre cultivos de sementes crioulas e transgênicas. Institutos de pesquisa têm apontado que a contaminação genética reduz a agrobiodiversidade nacional e prejudica os direitos culturais, sociais, econômicos e ambientais dos agricultores familiares que não utilizam sementes modificadas.
Editada pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), a Resolução 04/2007 trata da separação física entre cultivos de espécies de milho transgênico e os que não são geneticamente modificados, como lavouras de sementes crioulas de milho. O atual parâmetro determina uma distância igual ou superior a cem metros entre uma lavoura comercial de milho transgênico e outra de milho crioulo. Na avaliação de pesquisadores, agricultores, movimentos populares e organizações sociais, a distância determinada pela norma é insuficiente porque desconsidera – sendo o milho uma espécie de polinização aberta (cruzada) – que fatores como diversidade dos biomas, clima, a ação do vento e de animais polinizadores, como abelhas, podem implicar risco de contaminação entre os diferentes cultivos.
“ A contaminação pelos transgênicos causa danos extensos aos agricultores, que perpassam dos impactos econômicos, como royalties e dependência do mercado de sementes caras modificadas, além de danos culturais, de erosão genética e consequentemente os conhecimentos tradicionais dos povos, agricultores e comunidades que cultivam variedades de milho como a base alimentar e artesanal por gerações”, afirma Naiara Bittencourt, advogada na Terra de Direitos.
“A CNTbio estabeleceu que bastaria a distância de 100 metros entre as lavouras de milho transgênico e a de crioulo. Essa distância seria suficiente para evitar a contaminação. Verifica-se que esta decisão é absolutamente inadequada. Cem metros na direção ao vento é bem diferente de 100 metros contra o vento. Mais gritante, com o tempo se verificou que mesmo com os agricultores cumprindo estas normas eles têm suas lavouras contaminadas e perdem os direitos sobre as características que selecionaram”, destaca o engenheiro agrônomo integrante da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) e ex-membro da CNTBio, Leonardo Melgarejo.
Além da contaminação dos cultivos de sementes crioulas, a resolução vigente ainda fere a autonomia do consumidor, como aponta a advogada do Idec, Mariana Gondo. “A norma atual é ineficaz para garantir que os cultivos convencionais de milho não sejam contaminados por transgênicos. Estamos falando de sistemas de produção no campo, mas isso implica uma série de violações de direitos, inclusive para os consumidores. A contaminação genética dos cultivos convencionais significa que o consumidor deixará de poder exercer o seu direito de escolher não comer milho transgênico”, complementa.
Orientado também pela crítica a CNTBio da ausência de análises de risco e estudos sobre a contaminação das sementes para aprovação da Resolução – como medida de precaução, a expectativa é de que os cinco ministros da 1ª turma do STJ reconheçam a insuficiência da norma para garantir proteção à biodiversidade, à saúde humana e animal. “Esperamos que o STJ decida pela declaração de ilegalidade do artigo 2º da Resolução Normativa nº 4 da CTNBio, pela determinação da tomada de medidas precautórias em relação a contaminação de milhos transgênicos aos milhos convencionais ou crioulos, além das distâncias de plantio, considerando os fatores externos que devem influenciar na definição dessas distâncias”, explica Naiara Bittencourt.
Contaminação de sementes
Atualmente, 93% da área total cultivada com o milho no país é de sementes geneticamente modificadas, segundo uma publicação da Embrapa, de maio de 2020. Com cerca de 80% da produção de grãos voltado para o consumo interno – especialmente para a ração de alimentação de aves, porcos e gado de grandes áreas – a permanência da atual norma tem ocasionado a perda de controle sobre a produção pelo pequeno agricultor de sementes crioulas.
“Eu plantava a variedade de milho astequinha sabugo fino e preservava a semente pura há mais de 40 anos e, agora foi contaminada toda a minha produção por transgênico. Perdi todo o meu esforço e trabalho de mais de 40 anos”, lamenta o agricultor Antônio Carlos dos Santos, de 76 anos, da comunidade de Rio Baio, município de São João do Triunfo (PR), em carta ao Ministro relator do recurso especial no STJ.
A referência à perda do trabalho de mais de 40 anos pelo Seu Antônio tem relação direta com a relação que é estabelecida entre o agricultor e a semente crioula para além das safras.
Diferentemente do cultivo de sementes geneticamente modificadas – dependentes do mercado, no plantio de sementes crioulas a atual safra assegura a semente da safra seguinte. “Nas áreas de produção comercial de milho colhe-se apenas grãos, as sementes são insumos comprados todos os anos. Na agricultura familiar, as áreas de cultivo de milho são ao mesmo tempo áreas de produção de sementes. As melhores espigas são selecionadas para os próximos plantios e é isso que garante a diversidade e permanente evolução da espécie. Assim, é importante que o Judiciário entenda essa diferença e a necessidade urgente de normas que garantam aos agricultores familiares o direito de continuar tanto produzindo grãos quanto multiplicando sementes em suas áreas”, destaca o assessor do Grupo de Trabalho Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), Gabriel Fernandes.