“É possível disputar orçamento para a agricultura familiar a partir do município.” E “a gestão pública municipal não é inimiga. Queremos mudança nesta relação”. Essas sentenças resumem um dos mais importantes aprendizados que a iniciativa Agroecologia nos Municípios trouxe para o Polo da Borborema.
O Polo é um coletivo que reúne 13 sindicatos rurais, mais de 150 associações comunitárias, uma cooperativa da agricultura familiar, a CoopBorborema, e uma associação territorial, a EcoBorborema.
O Agroecologia nos Municípios foi criado pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) para dar continuidade ao movimento iniciado com o ‘Agroecologia nas Eleições’ em 2020, que pautou a agroecologia junto aos candidatos aos pleitos municipais, seja para o Executivo, seja para o Legislativo.
Coube ao Agroecologia nos Municípios, posto em prática entre maio de 2021 e fevereiro desse ano, identificar e sistematizar experiências de incidência política junto às prefeituras de 38 municípios de todo o Brasil. O objetivo era identificar aprendizados que orientem o processo de acompanhamento social das gestões municipais.
Na Paraíba, a sistematização promovida pelo Agroecologia nos Municípios aconteceu em dois municípios: Lagoa Seca, cujo sindicato rural e associações comunitárias fazem parte do Polo da Borborema, e Soledade, na região do Cariri, uma das mais secas do estado.
“O Agroecologia nos Municípios não é um projeto. Trata-se de uma iniciativa que possibilita a caminhada das organizações no âmbito da incidência política”, assegura a consultora da ANA na Paraíba, Mirian Farias. “O Sindicato de Lagoa Seca tem essa trajetória de incidência política, que foi reforçada. E também o Polo no território”, complementa.
“De 2017 pra cá, com o afastamento das políticas públicas para agricultura familiar [a nível federal], a Carta da Agroecologia na política [ação do Agroecologia nas Eleições] foi um grande avanço, porque gerou um debate, foi divulgado nos programas de rádios e ampliou o diálogo com os gestores. Facilitou, após as eleições, pautar a agroecologia nos municípios e precisamos avançar, fortalecer o diálogo nos municípios”, avalia Manoel Oliveira, conhecido como ‘Nequinho’, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Nova e da coordenação do Polo.
Nequinho fez esta leitura política no dia 4 de fevereiro passado, quando as lideranças do Polo se reuniram para avaliar o processo do Agroecologia nos Municípios em Lagoa Seca. A experiência que o Polo escolheu para ser sistematizada foi a construção do Programa de Sementes, criado a partir da Lei de Sementes de 2012 .
Avaliação e aprendizados – A pergunta que norteava o debate do dia 4 de fevereiro era: “Como o Polo se apropria desse processo de Lagoa Seca, desse laboratório, e pensa estratégias para construir incidência na política pública municipal e articular territorialmente?”, questiona Marcelo Galassi, que faz parte da coordenação da AS-PTA, organização que oferece assessoria ao Polo da Borborema.
E continua: “O Projeto Agroecologia nos Municípios é uma oportunidade, mas ele passa. O objetivo é se apropriar, deixar para os atores do território ferramentas, uma apropriação mais coletiva. Quem gere o trabalho do Agroecologia nos Municípios são os Sindicatos, que precisam qualificar a sua incidência. Imagina todos os Sindicatos que compõe o Polo cobrarem a compra de Sementes? O impacto é maior do que um município sozinho.”
Uma das diretoras do Polo da Borborema, Gizelda Beserra, reconhece que a importância do movimento sindical construir um diálogo com o poder público municipal para reivindicar a construção de políticas públicas. “É importante o fortalecimento dos laços com os poderes municipal e estadual para influenciarmos a construção e implementação de políticas públicas municipais e territoriais. Atualmente, quando o sindicato tem uma atuação forte nos conselhos municipais, como o Conselho de Desenvolvimento Rural Sustentável (CDRS), de Educação e de Saúde, conseguimos chegar mais nas gestões públicas.”
E Gizelda destaca várias iniciativas que avançaram por meio da voz ativa dos sindicatos rurais nos Conselhos municipais: “A construção de cisternas, no diálogo com as prefeituras para escavação dos buracos que antes era manual, é uma iniciativa pequena mais não deixa de ter sua importância. O próprio PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar] que fortalece uma atuação do Conselho Municipal de Educação. Tem a experiência no Território da Ciranda da Borborema, um trabalho com crianças e jovens, que traz o tema da agroecologia para escola e comunidade, fortalecendo a relação com a Secretaria de Educação com professores/as e gestores. No município de Remígio, o Sindicato e a AS-PTA foram procurados recentemente para fazer um projeto de arborização nas escolas rurais, já aconteceu à terceira reunião e vamos apoiar com o conhecimento, nossa experiência.”
Para Maria do Céu Silva, uma das diretoras do Sindicato de Solânea, “todo ano, através do CMDRS, é feito o enfrentamento ao Programa de Sementes do Governo do Estado, uma queda de braço”. E acrescenta a importância de “beber da experiência de Lagoa Seca: do diálogo, por provocar e construir possibilidades”.
Nelson Anacleto, uma liderança do Sindicato que já exerceu dois mandatos como vereador e hoje atua como secretário de Agricultura Familiar e Abastecimento do município, também esteve presente na avaliação do Agroecologia nos Municípios e contribuiu com um olhar de quem está dentro da máquina pública:
“A iniciativa foi bastante positiva. Reanimou a discussão sobre agroecologia, principalmente, nos momentos adversos que vivemos com a destruição da natureza, uso indiscriminado de agrotóxicos e prática e discursos do governo federal desconsiderando a agroecologia. O Agroecologia nos Municípios acendeu a discussão sobre agroecologia dentro do poder público”, destaca o secretário.
Nelson destaca também como um dos méritos da iniciativa, a construção de perspectivas conjuntas, com parceiros, para fortalecer e retomar com muita força o trabalho com os/as agricultores/as. “O projeto teve a capacidade de estimular a rearticulação de vários parceiros para enfrentar desafios comuns”.
Olhando para o território da Borborema, Nelson destaca a mobilização de outros secretários de agricultura familiar em torno do tema da compra de sementes com recursos públicos do município. Ele conta que iniciou uma articulação com secretários de 16 municípios do Território da Borborema e já se planeja um próximo encontro.
Desdobramentos – Quais as iniciativas que a experiência do Agroecologia nos Municípios pode gerar mesmo após o encerramento de sua ação? Esta pergunta também norteou a reflexão do dia 4 de fevereiro, convidando os/as participantes a olharem para o que está nascendo ou se fortalecendo com o reforço do debate sobre agroecologia nas gestões municipais.
Um dos movimentos facilmente identificado é o interesse de outros municípios na aquisição de sementes crioulas para distribuir junto às famílias agricultoras, como acontece com Montadas e Alagoa Nova.
Outra ação que surge com força é a realização da I Conferência Municipal da Agricultura Familiar de Lagoa Seca. “É uma proposta do Sindicato de Lagoa Seca numa reunião de avaliação do Programa Municipal de Sementes”, lembra Nelson.
A Conferência tem um papel fundamental de pensar a agricultura familiar para os próximos três anos tendo como referência a agroecologia e, sem dúvida, é um espaço de pressão social. “A Conferência cria uma capacidade de formulação de propostas para a agricultura familiar. Como queremos fazer a agricultura familiar nos próximos anos? E como queremos que a secretaria se comporte independente do prefeito?”, agrega Nelson.
Na continuidade da entrevista, o secretário de Lagoa Seca comenta uma frase que ouviu de um agricultor: “‘Temos a semente crioula, mas a nossa terra é fraca.’ Como enfrentar juntos – secretaria, sindicato, associações e famílias – a questão da terra pequena e da fragilidade do nosso solo, além da escassez da água, que são questões que necessitam de outras metodologias?”
Ainda olhando para o desdobramento do Agroecologia nos Municípios dentro de Lagoa Seca, a consultora da ANA na Paraíba, Mirian Farias, destaca a revisão do Plano Diretor que foi realizado pela primeira vez em 2006 e serve de referência para a construção de políticas públicas até os dias atuais. “Vai ser um momento de o município fazer a leitura dos seus problemas e desafios”.
Lançando o olhar para além dos limites geográficos de Lagoa Seca, o que se identifica hoje como impulso do Agroecologia nos Municípios?
Uma das iniciativas que ganha fôlego é o programa Cirandas da Borborema que, via o CMDRS, busca o diálogo com as prefeituras para melhorar as condições de ensino das crianças e adolescentes do campo. Em Remígio, por exemplo, o Sindicato tem dialogado com a prefeitura sobre as sementes, o acesso à água e a rearborização do ambiente escolar.
“Por conta da seca, a comunidade escolar viu a necessidade de construir, este ano, um projeto junto às comunidades rurais, sindicato e Polo”, conta Gizelda. “Aproveitamos o debate do projeto de rearborização e trouxemos o tema das escolas fechadas. O secretário garantiu que não tem interesse em fechar nenhuma escola rural”,
Gizelda também destaca que um tema prioritário no Polo da Borborema para o diálogo com as prefeituras é o combate à violência contra as mulheres. “O serviço municipal de atendimento às mulheres tem muita burocracia, queremos o reforço das equipes para dar assistência às mulheres vítimas de violência.”
Plano Safra – Segundo Mirian, os CMDRS que foram reformulados, cerca de 203 na Paraíba, vão construir os respectivos Planos Safra Municipais do triênio 2022 a 2024. “O acompanhamento da criação dos Planos Safra está sendo priorizado pelas organizações que compõem a ANA”, revela.
Ainda no tema da produção, no âmbito federal há um programa chamado Garantia Safra, que funciona com a contrapartida das prefeituras. Segundo Maria do Céu, de Solânea, para a execução do Garantia Safra é necessário o controle social dos Sindicatos e do CMDRS. “Apesar das 900 famílias agricultoras inscritas em Solânea, só 600 foram beneficiadas, porque o município só pagou o aporte para 600.”
Construir pontes – O reconhecimento do distanciamento dos sindicatos da gestão municipal foi um importante passo para ampliar e fortalecer as estratégias de incidência política nos municípios e na Borborema paraibana.
Maria do Céu foi uma das pessoas que ressaltou a necessidade de desconstruir a percepção da gestão municipal como inimiga. Segundo ela, a agroecologia precisa ser um debate permanente e os olhares da sociedade civil e dos gestores públicos podem ser complementares. “Devem ser leitura que agregue, que some ao movimento agroecológico.”
E como os Sindicatos podem avançar no diálogo com o poder público? Esta foi uma pergunta feita por Gizelda durante a entrevista, na qual ela já trouxe um possível caminho: “Provocar uma assembleia na Câmara Municipal de Vereadores/as para discutir temas importantes para a agricultura familiar”.
Nelson Anacleto, a partir da sua experiência enquanto vereador por dois mandatos e secretário de agricultura do município, considera importante ocupar os espaços institucionais, até como forma de “diminuir a estranheza das organizações da sociedade civil, que veem o espaço político muitas vezes como demônio”. Ele elenca essa estratégia como um eixo de ação dos sindicatos “até para dialogar melhor com a base para apoiar as lideranças que vão para disputa eleitoral.”