As Feiras de Sementes Crioulas e da Agrobiodiversidade são espaços privilegiados da livre circulação da biodiversidade e de convergência dos atores que conservam essas sementes e aí compartilham experiências e recriam seus conhecimentos. A região de atuação do Coletivo Triunfo, no Centro-sul do Paraná e no Planalto norte catarinense, tem uma longa trajetória na organização dessas feiras. Como bem nos lembra um agricultor guardião de sementes, essa história, assim como nossas vidas, não pode ser contada na forma de uma linha reta. Segue muito mais como o curso de um rio, com curvas, nascentes, afluentes, baixas e cheias.
A partir de um plano de navegação, capaz de transitar pelo rio das Feiras de Sementes Crioulas e da Agrobiodiversidade, a AS-PTA e o Coletivo Triunfo organizaram uma viagem na história desses eventos, ouvindo agricultoras, agricultores e muitos parceiros envolvidos na conservação e na troca de sementes.
A primeira Feira da região, uma das nascentes desse rio, aconteceu no município de Pinhalão, no Paraná, em 1999. A abundância de espécies e de variedades crioulas então expostas foi uma bonita surpresa trazida pelas famílias agricultoras, face ao contexto regional marcado pelo processo acelerado de erosão genética disparado desde a década de 1970 com a chamada modernização da agricultura. Ao promover a integração subordinada da agricultura à indústria como única via para o desenvolvimento rural, esse processo – amplamente apoiado pelas políticas públicas – teve forte impacto desorganizador sobre as práticas socioprodutivas camponesas fundadas na produção, conservação e uso das sementes próprias. A “modernização da agricultura”, também chamada de Revolução Verde, estimulou a adoção de insumos produtivos dependentes dos pacotes tecnológicos que amarram agrotóxicos, adubos químicos e sementes de origem empresarial comprados nos mercados.
A viagem no rio das Feiras demonstrou como as variedades localmente adaptadas de milho e soja foram desaparecendo dos territórios do Paraná e de Santa Catarina, sobretudo, pela entrada das sementes híbridas e dos organismos geneticamente modificados (OGMs), que têm contaminado das variedades crioulas, algumas cultivadas ao longo de gerações. Outro impacto negativo evidenciado pela crescente utilização dos insumos químicos na agricultura convencional foi a redução do uso da adubação verde para a fertilização dos solos. Tornou-se difícil encontrar nas feiras variedades antes abundantes de sementes de plantas adubadeiras.
Apesar dos desafios, o rio das Feiras de Sementes Crioulas e da Agrobiodiversidade não deixou de correr e de receber novas águas. Os testemunhos dos agricultores e agricultoras guardiões e guardiãs das sementes participantes das feiras destacam como, com o passar do tempo, houve um aumento notável da participação das mulheres agricultoras. A guardiãs das sementes enriqueceram as feiras com espécies e variedades de hortaliças, flores, medicinais e mudas. Além da diversificação dos produtos aportados, as agricultoras introduziram nas feiras ao debate as questões de gênero, fomentando a reflexão e o amadurecimento coletivo sobre o papel fundamental da mulher na agricultura camponesa e no crescimento da agroecologia.
Na medida em que as feiras foram se popularizando e se enraizando nos municípios, elas assumiram também uma dimensão regional. Um grande evento anual passou então a polarizar vários municípios do Centro-sul do Paraná, ampliando-se, em seguida, para o conjunto do estado e municípios do Planalto norte de Santa Catarina. Essa trajetória de ampliação da abrangência das Feiras da Agrobiodiversidade se fortaleceu, sobretudo na década de 2010, com o apoio das políticas públicas voltadas ao fortalecimento da produção agrícola familiar e da agroecologia, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Esse cenário positivo da evolução sofreu uma forte inflexão a partir de 2016, com o golpe parlamentar e o drástico desmonte dessas políticas e a ruptura dos canais de cooperação e controle social Sociedade-Estado.
Em que pesem os revezes, a capacidade de resistência e de iniciativa das organizações da agricultura familiar da região, principalmente o Coletivo Triunfo, manteve cheio o leito do rio. O calendário de Feiras da região Centro-sul e do Planalto norte Catarinense previa para 2020 a realização de mais de 30 feiras envolvendo cerca de 700 famílias agricultoras. No entanto, com o surgimento e a propagação da pandemia de Covid-19, os protocolos de isolamento social impediram a organização das feiras no formato tradicional. O fortalecimento da biodiversidade e dos intercâmbios que elas vinham promovendo nos territórios, porém, inspiraram iniciativas inovadoras, a fim de garantir que as sementes circulassem, gerando renda, produção de alimentos e a continuidade da partilha de saberes entre guardiãs e guardiões.
As feiras passaram a ocupar os espaços virtuais, por meio de trocas de saberes, seminários e cursos, nos quais agricultoras e agricultores foram protagonistas. Além disso, as organizações territoriais, notadamente o Coletivo Triunfo, a AS-PTA e a Rede Sementes da Agroecologia (ReSA) desenvolveram ações de solidariedade, face à conjuntura de agravamento da fome no país e diminuição da renda das famílias guardiãs, sob o impacto desorganizador do distanciamento social sobre os circuitos da comercialização direta de suas produções. Com o apoio do Ministério Público do Trabalho e a mobilização das redes locais foi constituído um sistema de compra de sementes crioulas da agricultura familiar e sua distribuição às famílias camponesas em situação de vulnerabilidade. Foram, assim, distribuídas mais de 30 toneladas de grãos de 69 variedades de sementes e 50 mil mudas de batata-salsa, além de aproximadamente 16 mil envelopes de 135 variedades de sementes de hortaliças.
Essas sementes passaram das mãos dos/as agricultores/as para mais de 3 mil famílias, envolvendo comunidades indígenas, quilombolas e camponesas. As Feiras, por aquilo que são capazes de mobilizar, encontraram formas de se refazer, reafirmando que são mais do que um evento anual nos municípios e na região. Trata-se, na verdade, de arranjos coletivos inspirados em valores como a solidariedade e a cooperação, que fortalecem as ações territoriais, como as redes de agroecologia, as organizações e o trabalho das mulheres e a conservação da agrobiodiversidade, ao mesmo tempo em que são também alimentadas por essas inteligências coletivas. O rio das Feiras se espraia fortalecendo a relação entre seus afluentes, cada nascente e cada olho d’água.