O Semiárido nordestino virou área de expansão das indústrias de produção de energia renovável. Seria ótimo se não fossem os impactos causados pelo modelo centralizado que concentra a produção de energia em grandes parques eólicos ou usinas solares, promovendo uma série de violações de direitos das famílias que vivem desde sempre no campo. A chegada desses empreendimentos mexe até com o direito ao uso da terra que pertence às famílias e comunidades tradicionais.
Na semana passada, um grupo de 32 pessoas, sendo a maioria jovens e mulheres de 10 municípios que fazem parte da área de atuação do Polo da Borborema, viajaram mais de 300 km para conhecer de perto como os parques eólicos e as usinas solares mudam a vida de quem mora no campo, como eles e elas, e como as experiências de geração de energia de forma descentralizada tendem a trazer melhorias para a comunidade, dividindo as riquezas e não concentrando-as.
Com energia produzida a partir de placas solares, unidades de beneficiamento aumentam sua capacidade de produção, terão mais produtos para vender e o lucro aumenta, gerando mais renda para quem trabalha nesses empreendimentos de economia solidária.
11 de agosto de 2022
Manhã
E a resistência se mantém em movimento
No território do Polo da Borborema, o dia começou com 14 jovens e 13 mulheres agricultoras saindo de suas comunidades e se dirigindo para as sedes dos sindicatos de 10 municípios da Borborema: Arara, Solânea, Queimadas, Alagoa Nova, Remígio, Lagoa Seca, Esperança, Areial, Montadas e Algodão de Jandaíra.
Nos sindicatos, eles e elas pegaram duas vans em direção ao Médio Sertão da Paraíba. O destino do rolê eram os municípios de São José do Sabugi, Teixeira e Malta.
O motivo da viagem? Conhecer de perto os modelos de geração de energia, os centralizados, cuja produção e lucros estão sob poder das empresas, e os descentralizados, no qual a energia do sol é transformada em eletricidade para uso e benefício das comunidades rurais.
Cada van passou em sindicatos distintos e o primeiro ponto de encontro foi em Soledade, onde os viajantes se encontraram para o almoço. As carinhas estavam animadas e sorridentes.
Tarde
Ao lado das gigantes
Guiados pelo companheiro e representante do Comitê de Energia Renovável do Semiárido (CERSA), José Anchieta de Assis, o grupo de 32 pessoas – além dos/as jovens e mulheres, havia também três assessores da AS-PTA, um fotógrafo e os dois motoristas – se embrenhou pelas estradas de terra de São José do Sabugi para conhecer de perto das torres gigantes dos parques eólicos Canoas 1 e 2.
Da BR 302 até a associação da comunidade, foram cerca de 30km na estrada de barro. Na paisagem, novas vias largas abertas na vegetação nativa, cercas margeando o caminho o tempo todo, algumas porteiras com placas avisando que a entrada era proibida, placas de trânsito de forma inusitada na estrada de terra, muitos fios cortando o céu e muita-muita torre.
Pra onde olhávamos aqueles gigantes aerogeradores se faziam presentes. Por vezes, estavam bem pertinho da estrada e sua sombra era projetada sobre nós. A sensação era de que estava caindo algo do céu sobre nossas cabeças. Se pra nós humanos a experiência é esquisita, fiquei imaginando para os animais e plantas ter aquela sombra passando sempre sobre seus corpos.
Num determinado local, paramos as vans, saímos delas e, em pé, tivemos outra percepção da dimensão das torres. E olhe que nem ficamos ao lado de uma torre porque o acesso era cercado. Aproveitamos para fazer fotos e aguçar nossos ouvidos na captação do som das torres.
Na associação da comunidade Redinha, fomos recebidos/as por dois homens e uma mulher. João Evangelista, conhecido como João de Joca, vice-presidente da associação. Outro João, chamado de João da Lama, e Djanete.
Na conversa, vimos que a chegada da empresa foi por meio de uma pessoa da própria comunidade, como tem sido em outros locais. Soubemos que o tempo de validade dos contratos de arrendamento é de 30 anos e que as famílias continuam pagando contas de luz, que ficaram mais caras.
Soubemos também que, na etapa de fundição das torres, era um passa-passa grande de caminhões. Seu João de Joca mesmo contou que, por dia, passavam 30 caminhões na frente de sua casa e era uma poeira grande. E, nas contas dele, só de caminhão pipa eram 20 por dia de 20 mil litros de capacidade. A água, conta eles, vinha de um poço da comunidade. A sorte era que esse poço não servia à comunidade, que tinha outras fontes. Caso não, a situação tinha se complicado para os moradores.
As perguntas do grupo para os anfitriões eram muitas. Seu João de Joca dominava a fala. João da Lama e Djanete mal falavam.
– Aqui tem pássaros?
– Muito pouco. Não se vê mais nenhuma rolinha, responde o João de Joca.
– Como é não usufruir de toda essa estrutura instalada na comunidade? Eu sentiria muita raiva!, dispara Elisa, de Queimadas.
– Danificou alguma coisa nas casas por conta do trânsito dos caminhões?, indaga Flaviana.
– Derrubaram muito pé de umbu?
– Se meu marido quiser assinar e eu não, o que acontece?
– Se não for consenso, o terreno não é arrendado, responde seu João.
– E o arrendamento é só da área que vai ser usada na instalação da torre ou em toda a propriedade?
– Em toda a propriedade, diz seu João.
– O que a empresa fez para a comunidade?
Para uma comunidade com cerca de 100 famílias, a Iberdrola construiu cinco fogões ecoeficientes, 10 cisternas e ofereceram um curso de corte de roupa para 10 mulheres.
No final da conversa, Mateus Manassés, um jovem de Queimadas, abraçou seu João de Joca e agradeceu a atenção ao grupo. “De onde nós viemos é bem diferente daqui. Lá, as propriedades são todas juntinhas umas das outras. Se fosse passar uma estrada da largura dessas abertas aqui, muita gente ficaria sem terra para plantar”, enfatiza ele para seu João.
O grupo entrou novamente nas vans. Destino: município de Teixeira.
12 de agosto de 2022
Manhã
Como produzir energia renovável de outro jeito?
A primeira visita do dia foi para conhecer outra forma de produção de energia renovável. O grupo visitou uma unidade de beneficiamento de frutas da comunidade de Poços, na zona rural de Teixeira, onde foram instaladas oito placas solares, que deram um bom impulso para a produção de polpas.
Essas placas solares foram doadas pelo projeto experimental do Comitê de Energia Renovável do Semiárido, o CERSA. O projeto “Cuidando da Nossa Casa Comum” instalou em 20 empreendimento sociais e coletivos estruturas como a que beneficiou a comunidade de Poços.
“Antes de 2020, tínhamos um grande problema com a energia que não era suficiente para manter ligados os 10 freezers e a câmara fria”, conta Vânia Alves, que faz parte da associação desde 2001. “Depois da energia solar, além de deixarmos tudo ligado 24 horas por dia, ainda tivemos uma economia de R$ 500 por mês”, complementa.
A unidade de beneficiamento gera renda para as mulheres que trabalham lá e para mais de 60 famílias que vendem as frutas. E ainda contribuiu para mudar o hábito alimentar da comunidade que foi dando mais valor ao suco de frutas do quintal de casa. “Muitas famílias começaram a cuidar mais do seu quintal, a plantar mais mudas frutíferas”, acrescenta Vânia.
É um bom exemplo de como a energia renovável pode ser gerada com benefício direto para a comunidade rural. A riqueza gerada é distribuída com várias famílias, não fica centralizada nas empresas e nem há uma grande devastação ambiental com o desmatamento de áreas enormes, nem uma grande pressão na água da comunidade que passa a ser disputada para a construção e manutenção do sistema.
Ainda pela manhã, os visitantes do Médio Sertão conheceram de perto a mini-usina solar no espaço experimental do CEPFS, que fica na zona rural de Teixeira. A estrutura gera energia para 25 famílias de oito municípios, que são sócios da Cooperativa Bem Viver criada justo para a geração descentralizada de energia.
Com a criação de uma mini-usina, equipamentos caros de conversão de energia são adquiridos dividindo o valor entre as famílias associadas. É uma forma mais em conta de produção e ainda mais solidária uma vez que a cooperativa tem como regra que, cada sócio, doe uma placa solar para geração de energia para famílias rurais.
Tarde
Concentração de energia, de água e de terra
Após o almoço, chegou a hora da comitiva conhecer uma grande usina solar. Visitamos as Usinas de Angico e Malta, instaladas em 2017 pela Proton Energy, nos municípios que dão nome ao empreendimento. Para a instalação do mar de placas solares, mais de 190 mil, foram desmatados quase 200 hectares de vegetação nativa. Essa mesma empresa tem outras duas usinas em Agrestina, em Pernambuco, e em casa Nova, na Bahia.
Nas vans, percorremos cerca de 10 quilômetros para dar conta de passar por toda a área com os equipamentos. É uma monotonia sem fim. Tudo igual. Tudo mecânico. Quase nenhum bicho se via nas placas instaladas no lugar onde eles viviam.
Hoje, as plantinhas que insistem em crescer naquele chão não passam dos 60 centímetros. Nessa altura, elas causam prejuízos para a empresa, pois qualquer sombra nas placas provoca danos ao equipamento.
E quanto de água se gasta para lavar as placas?, pergunta alguém do grupo para os funcionários da usina. “A lavagem é manual e anual. São necessários quatro meses para lavar tudo com a equipe de oito pessoas. E se gasta, por dia, quatro mil litros de água”.
Fazendo umas contas rapidinho, ao final dos quatro meses, são usados 488 mil litros para lavar esse tanto de placas solares. Se essa água fosse usada no abastecimento das cisternas de 16 mil litros construídas ao lado das casas rurais, daria para encher 305 cisternas. Ou seja, 305 famílias de cinco pessoas teriam água para usar ao longo de 8 meses, que é o período médio sem chuva no Semiárido.
Um sinal de que o modelo que concentra a produção de energia em um só lugar, gerando riqueza para poucas empresas, concentra também a terra, que é arrendada e não comprada das famílias agricultoras, e concentra também a água.
Nós, os visitantes, estávamos super impressionados com os números e a dimensão do empreendimento quando soubemos que outra usina 80 vezes maior está sendo instalada numa área gigante entre os municípios de Santa Luzia e São Mamede.
Ou seja: a ganância não tem limite e, a depender dos governantes, não terá. Se quisermos intervir no avanço desmedido dessas indústrias no Semiárido, teremos que demonstrar muita força de articulação das famílias e de mobilização social. De outra forma, não conseguiremos nada.
Fotos: Túlio Martins