Os dois dias de feira, com a participação de mais de quatro mil pessoas, foram uma verdadeira celebração da vida e da resistência dos povos
“Salve a Semente Crioula
É a herança do chão
De geração em geração
Crioulo Sim! Transgênico Não”
“É muita coisa, né?”. Essa foi uma das frases mais escutadas ao longo dos dias 16 e 17 de setembro de 2022, sempre acompanhada de um largo sorriso no rosto e um olhar esperançoso. O entusiasmo bastante presente pelo encontro físico após quase três anos de isolamento. Era uma oportunidade de abraçar e rever pessoas queridas há muito não vistas e poder conhecer tantas outras.
A 18ª Feira Regional de Sementes Crioulas e da Agrobiodiversidade, realizada no Centro de Tradições Willy Laars, em Irati, na região centro sul do Paraná, foi uma demonstração de força, cooperação, diversidade de culturas e tudo que elas carregam consigo, solidariedade e afeto. O tema da feira deste ano foi “De geração em geração: sementes crioulas, sim! Transgênicos, não!”, exaltando a importância do diálogo com as juventudes, com o público urbano, a fortificação da rede de famílias guardiãs do campo, das águas, florestas e cidades a partir da preservação de um bem comum.
Para o presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Irati, Edilson Santos, “a importância da feira para o município e o território centro-sul do Paraná é enorme para mantermos a diversidade de sementes crioulas e de tudo que tem na feira hoje. Para nós do município ela é fundamental para sabermos do histórico do trabalho com agroecologia e que é uma região da agricultura familiar”, assegura.
Convocada pelo Grupo Coletivo Triunfo, a feira contou com o apoio da Prefeitura Municipal e Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Irati, da Rede Sementes da Agroecologia e assessoria da AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia. O Coletivo Triunfo é formado por famílias agricultoras guardiãs e organizações de base do campo e da cidade que atuam na promoção da agroecologia, conservação e multiplicação da agrobiodiversidade no centro-sul do Paraná e planalto norte catarinense,
Eram mais de 100 famílias guardiãs vindas de 56 municípios do estado do Paraná e além dele: de nove estados de quatro regiões desse imenso Brasil. Elas coloriram o pavilhão em Irati ao expor o que lhes é mais caro, as preciosidades que produzem em seus quintais produtivos e roças e que melhoram ano após ano com seu trabalho.
Esse encontro de origens e culturas é uma das expressões do movimento agroecológico, e nesta 18ª edição da feira estiveram presentes 10 comunidades quilombolas do Paraná e uma de São Paulo, além de cinco aldeias indígenas dos povos Guarani e Kaingang.
Dentre a participação de novos grupos e associações, destaca-se o aumento do número de mulheres, que representaram 75% das bancas e estiveram em maior número de visitantes também. Em um levantamento inicial, a estimativa é de que mais de R$150 mil tenham circulado nos dois dias de feira, gerando renda e valorizando o trabalho de quem coloca comida de verdade na mesa da população.
“A diversidade que vimos nas bancas, diversidade de pessoas, culturas, conhecimentos e produtos expostos nas mesas mostra a cara da agrobiodiversidade da nossa região, mostra quanto a agricultura familiar se torna resposta para os percalços criados pelo agronegócio, que tenta desmobilizar as práticas tradicionais que dão sustento às famílias”, reflete Miriane Serrato, assessora técnica da AS-PTA e do Grupo de Mulheres do Coletivo Triunfo.
As protagonistas do encontro foram (e são) as famílias guardiãs da agrobiodiversidade, que presentearam as mais de quatro mil pessoas que participaram da feira com sua imensa variedade de sementes crioulas, mudas de flores e plantas medicinais, ramas e tubérculos, artesanatos, alimentos beneficiados, práticas tradicionais, tecnologias sociais e o mais importante para todas e todos: a partilha.
Todas as bancas tinham, no mínimo, cinco variedades de sementes crioulas e/ou mudas produzidas nas propriedades, seguindo um dos critérios de participação na feira e expressando a riqueza presente nos agroecossistemas das famílias guardiãs.
Para a organização, os critérios de participação são fundamentais para garantir a origem dos produtos trocados e comercializados, resguardando o espaço das pessoas que constroem as feiras há mais de 20 anos.
Dentre os critérios estão a realização de teste de transgenia nas sementes de milho antes da entrada no encontro, participação em organizações de base da agricultura familiar, proibição de revenda de produtos industrializados ou que não tenham conexão direta com a conservação da agrobiodiversidade.
Em um contexto de contínuo desmonte da teia de políticas de seguridade social, corte de recursos aos programas institucionais de compras públicas, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), a feira expressa a capacidade de resposta da agricultura familiar de base agroecológica à séria crise alimentar que enfrentamos, a partir de uma produção de alimentos territorializada, em sinergia com o meio ambiente e as pessoas.
“É a semente da vida, é a semente do amor
Traz a memória das lutas, do povo trabalhador
Esta semente é a certeza, da nossa libertação
Vamos fazer a mudança, de geração em geração”
Novos berçários para semeadura
O movimento da sexta-feira(16/09) surpreendeu todas as pessoas que já estavam no centro de tradições, ao chegarem centenas de estudantes de escolas estaduais, municipais e instituições de ensino superior. Em um processo de mobilização descentralizado, as caravanas começaram a desembarcar no local da feira logo pela manhã. Proporcionar um momento de diálogo mais próximo entre as juventudes e as famílias guardiãs, trocando experiências e conhecimentos, foi um dos objetivos do dia.
A presença da comunidade escolar é um marco muito importante nas feiras regionais de sementes crioulas. Os/as educandos/as e educadores/as trazem suas experiências e retornam para casa com as mochilas carregadas. Nessa construção conjunta do conhecimento, novos horizontes apontam, incentivando a permanência das juventudes no campo.
Caravanas da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) – Campus Laranjeiras do Sul; Universidade Federal do Paraná (UFPR) Setor Litoral; Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG); Universidade Estadual do Centro-Oeste Campus (UniCentro) – Guarapuava e Irati; Instituto Federal do Paraná (IFPR) – Campus União da Vitória, Campo Largo, Coronel Vivida e Irati; Casa Familiar Rural de São Mateus do Sul e de União da Vitória, Colégio Agrícola de Palmeira, e dezenas de escolas estaduais e municipais do campo e da cidade de diversos municípios do Paraná e de São Paulo, mostraram que as juventudes e a dinâmica do ensino da educação do campo, estão organizadas na preservação das histórias de suas famílias e territórios.
Para Silvana Moreira, coordenadora do curso de agronomia do IFPR Campus Irati que tem um enfoque agroecológico, “a importância dos estudantes dos cursos das ciências agrárias e do ensino fundamental participarem da feira de sementes é grande. Primeiro porque possibilita conhecer uma diversidade enorme de espécies que no dia a dia não estão disponíveis; segundo porque sensibiliza a juventude para a valorização de um patrimônio genético rico que estão em mãos camponesas, e, terceiro porque possibilita o acesso a materiais (sementes e mudas) para enriquecer a diversidade que tem nas escolas, até mesmo na elaboração de trabalhos de conclusão de curso e outros”.
Durante o dia, foram realizadas cinco oficinas autogestionadas, oferecidas por famílias agricultoras, grupos de pesquisa e instituições de ensino. Dentre elas, estão a de manejo e processamento de frutas nativas da Mata Atlântica, facilitada por Julian Perez e João Pedro Olkoski, professor e estudante da UFFS e Antônio Vaz – agricultor do Coletivo Frutas Nativas e Laboratório Vivan de Sistemas Agroflorestais da universidade.
O objetivo era mostrar as possibilidades de manejo e processamento das frutas nativas do estado do Paraná. “A atividade teve boa participação e muito interesse dos participantes, foi possível passar parte dos conceitos, bem como as práticas de colheitas e processamento de polpas de frutas nativas”, conta o professor.
Na avaliação do grupo, que veio de Laranjeiras do Sul, a feira foi um “espaço muito rico em diversidade agrícola e cultural, muito boa participação e que conseguiu mostrar a agroecologia como alternativa concreta ao agronegócio”.
Outro momento muito aguardado foi a oficina de macarrão de fubá de milho crioulo livre de transgênicos, organizada por José Nicolau Fernandes, extensionista rural da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (EPAGRI).
O objetivo da oficina era o resgate da cultura alimentar e das infinitas possibilidades de beneficiar o milho. A atividade difundiu a tecnologia no aproveitamento do milho crioulo em mais uma opção alimentar. “Para mim foi muito boa a aceitação do público, e saí muito satisfeito com o evento e nas próximas estaremos presente”, conta Nicolau animado e já se preparando para a 19ª Feira Regional.
As quatro mil pessoas que passaram pela feira também puderam provar um pouco dessa diversidade. De tudo que foi servido pela organização nos dois dias de encontro, mais de 90% veio da agricultura familiar de base agroecológica da região. Foram mais de 300 quilos de verduras, legumes e tubérculos, colhidos dias antes da feira. Pelo menos 60 quilos de feijão, 400 quilos de carne de porco, da raça crioula Moura, chá mate tostado e ovos. Bem como se deliciar nas mesas da partilha, que são tradição nas feiras, recheada pelos pratos trazidos pelos participantes, dos pães, cerveja caseira, bolos e compotas , possibilitando assim provar os diversos sabores da região.
No almoço de sábado (17/09), a tradicional quirerada de milho crioulo livre de transgênicos, com 60 quilos da variedade amarelão, que veio da comunidade da Invernada, em Rio Azul, distribuídos em oito tachos. Junto ao milho, a carne de porco crioulo da raça Moura, criado por famílias da comunidade de Butiazal, no mesmo município.
“Vou ensinar pros meus filhos, o que aprendi com meus pais
Esta semente é herança, dos povos tradicionais
Esta semente é a certeza, de um novo amanhã
É o resultado da luta, dos guardiões e guardiãs”
Alimento que nutre
Ainda na tarde de sexta, aconteceu o seminário sobre alimentação saudável, reunindo participantes de diversos municípios e entidades da agricultura familiar. Cristiani Roveda, nutricionista da Secretaria de Educação de São Mateus do Sul, responsável pela dinâmica de atendimento ao PNAE junto às famílias agricultoras, abriu o diálogo trazendo dados sobre o programa, seu histórico e a importância das crianças e adolescentes terem acesso a um alimento de qualidade no âmbito escolar.
Na sequência, a nutricionista e doutoranda em Saúde Pública, Vanessa Daufenback, trouxe a questão da alimentação no Brasil a partir do atual contexto sóciopolítico, enfatizando a presença dos desertos alimentares em todos os territórios devido ao avanço do agronegócio e investimento da indústria de processados.
Ao final, o público pode escutar o relato da agricultora experimentadora Márcia Patrícia, do município de Queimadas, do território da Borborema, no estado da Paraíba. Através de sua experiência, a agricultora compartilhou a importância do trabalho das mulheres e dos quintais produtivos na garantia de uma alimentação adequada para a família e geração de renda, cultivando comida de verdade e diversa ao redor de casa.
O debate foi inspirador, motivando a reflexão sobre quais processos os alimentos consumidos todos os dias nutrem e incentivando o público a levantar a bandeira da alimentação saudável em meio a tantos produtos ultraprocessados que o sistema nos impõe, que massacram e apagam a história e as memórias afetivas dos alimentos com as culturas e tradições do povo.
Para finalizar, houve a partilha do alimento que tanto foi mencionado ao longo do seminário – aquele produzido com respeito ao meio ambiente, justiça social, em circuitos curtos de comercialização. Um café vindo das mãos das famílias agricultoras com uma diversidade de itens para mostrar a riqueza que vem dos diversos espaços produtivos, como os roçados e quintais das casas.
Consumir alimentos saudáveis é um ato de amor. Produzi-los é revolucionário.
“É o poder dos pequenos, contra a privatização
Lutando contra os venenos, na nossa alimentação
Traga a bandeira de luta, vamos fazer mutirão
Vamos fazer a mudança, de geração em geração
De geração em geração – Banda Mãe Terra”
Sementes crioulas cariocas e paraibanas
“Isso é uma troca muito rica, deles conhecerem um pouco do que a gente tem aqui e da gente trazer o que eles têm lá. Da experiência que trouxe da feira é que não precisa muito pra guardar a semente. É possível colocar em prática aqui”, conta a agricultora carioca Maria Aparecida, da Horta Brisa, que participa das ações do programa de Agricultura Urbana da AS-PTA, no Rio de Janeiro. Junto com ela estava também Eduardo Ribeiro Duarte, agricultor guardião integrante da Feira da Roça de Vargem Grande.
Da Paraíba, veio Márcia Patrícia que compartilhou a experiência de participar da Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia, realizada há 13 anos no território da Borborema. Márcia também contou como se dá a valorização do trabalho das mulheres a partir dos trabalhos nos quintais produtivos.
Os intercâmbios são uma metodologia que favorece as trocas de experiências, instigando o olhar para as diferentes realidades. A caravana da Paraíba e Rio de Janeiro, seguiram em intercâmbio no domingo, dia 18/09, visitando duas propriedades – uma no campo e outra na cidade. Nas numerosas e frutíferas trocas, as sementes crioulas se movimentam e seguem sendo a esperança de um melhor amanhã.