O primeiro fim de semana de abril marcou o início da safra do pinhão, de acordo com a regulação dos órgãos ambientais catarinenses. A data foi celebrada com a Festa da Colheita do Pinhão, com duração de 2 dias, organizada pelo Centro Vianei de Educação Popular e o SINTRAF (Sindicato dos Trabalhadores na Agricultura Familiar de São Joaquim e Região) no município de São Joaquim. Composto por um Seminário e uma Travessia (vivência ao ar livre), o evento abriu espaço para discussão sobre as demandas da cadeia extrativista aliadas à urgente regeneração das Araucárias e conservação dos seus remanescentes.
Originária do período Jurássico, há cerca de 200 milhões de anos, a espécie Araucaria angustifolia encontrou nas latitudes baixas da América do Sul as condições ideais para se multiplicar e resistir ao longo das eras. Este fóssil vivo teve seu auge mais especificamente nas regiões Sul e Sudeste do Brasil, tendo ocupado, segundo o Atlas Nacional do Brasil (IBGE, 2000), um extenso território de planaltos entre as Serras do Mar e Geral, a leste, e o Rio Paraná, a Oeste, regiões de clima temperado, úmido e sem estação seca marcante.
A pressão antrópica sobre a espécie passou a ser verificada ainda no século XIX, com as levas de imigrantes italianos e alemães que colonizaram principalmente o Sul do Brasil. A necessidade de abertura de áreas para agricultura, além da demanda por madeira para suas habitações e artigos domésticos, deram início à derrubada das Araucárias, árvores dominantes da Floresta Ombrófila Mista que é um ecossistema do bioma Mata Atlântica. Nos últimos 80 anos, porém, o avanço das monoculturas e o abastecimento de mercados nacionais e internacionais com madeira nativa levou ao seu declínio em escala geométrica.
Neste período, estima-se que 100 milhões de exemplares tenham sido cortados apenas para a fabricação de móveis. Dos cerca de 200 mil quilômetros quadrados ocupados originalmente pelas matas de araucárias, apenas 3% da cobertura permanece em pé, em fragmentos descontínuos que comprometem sua reprodução e variabilidade genética. Esta drástica redução coloca em risco de extinção não somente a própria espécie, mas também de outras plantas e animais que desempenham interações ecológicas com as araucárias, como as canelas, imbuias, xaxins, papagaios-de-peito-roxo, onças-pardas, gralhas-azuis, macucos, inhambus e jacutingas, entre outros.
O reconhecimento público da ameaça sofrida pelas Araucárias aconteceu em 1992, por meio da portaria nº 37-N executada pelo Ibama. A partir de então, a espécie Araucaria angustifolia passou a integrar a Lista Oficial de Espécies da Flora Brasileira Ameaçadas de Extinção. Em Santa Catarina, tal reconhecimento aconteceu apenas em 2014, através da resolução nº 51 do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema). Além de tardias, as medidas não foram suficientes para conter a pressão sobre as matas de araucárias, que ainda sofrem com o desmatamento ilegal.
Na outra ponta da interação humana com as Araucárias estão as comunidades tradicionais e indígenas que historicamente ocupam os planaltos e serras das regiões Sul e Sudeste. A prática do extrativismo sustentável do pinhão possibilita um considerável incremento de renda e favorece a regeneração da Floresta Ombrófila Mista em estabelecimentos da agricultura familiar, numa relação simbiótica que utiliza os ativos florestais não madeireiros para dinamizar as redes de abastecimento alimentar dos territórios. Em Santa Catarina, a concentração dessas áreas de regeneração está na Serra Catarinense. A região da Associação dos Municípios da Região Serrana (AMURES) concentra os 10 principais municípios produtores de pinhão, responsáveis por 75% a 80% da produção estadual.
Um patrimônio cultural a ser preservado
Um desses municípios é São Joaquim, que sediou a última Festa da Colheita do Pinhão. Na tarde de sexta (31/03), o Seminário da Cadeia Produtiva do Pinhão foi ocupado por 4 mesas-redondas, com discussões de projetos e políticas públicas de incremento ao extrativismo sustentável do pinhão aliado à conservação da floresta ombrófila mista pelo manejo da Araucaria angustifolia. O evento reuniu técnicos, professores, extrativistas e representantes de órgãos públicos das 3 esferas da federação.
Na mesa de abertura, Natal João Magnanti, membro do Centro Vianei e doutor em agroecossistemas com tese sobre a sociobiodiversidade no extrativismo do pinhão, apresentou um dimensionamento da atividade na perspectiva de um patrimônio cultural a ser preservado e melhorado. O olhar é baseado no diagnóstico e plano de ação da cadeia produtiva do pinhão, um estudo apoiado pelo Plano de Ação Territorial para Conservação de Espécies Ameaçadas de Extinção do Planalto Sul (PAT Planalto Sul).
Os dados apontam que milhares de famílias da Serra Catarinense incrementam suas rendas com a coleta do pinhão, movimentando anualnente cerca de R$ 15 milhões – embora apenas R$ 6 milhões tenham sido comercializados formalmente em 2022. “Mesmo com essa importância, ainda há precariedade, como falta de equipamentos e máquinas de extração, beneficiamento, processamento e armazenamento adequados, além da baixa utilização de políticas públicas. Os atacadistas concentram as decisões da cadeia produtiva e a maioria dos recursos provenientes da comercialização do produto no território”, analisa Natal, abrindo um campo de demanda de ações do poder público para auxiliar na organização e fortalecimento dos demais elos da cadeia.
Ainda na mesa de abertura, Alexandre Siminski, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC/Campus Curitibanos) e doutor em Recursos Genéticos Vegetais, explanou sobre a presença das Araucárias em sistemas agroflorestais (SAFs). “São como um manejo da própria paisagem, integrando o gado com roçadas, recolhimento de grimpas e outras atividades que vão além da extração das pinhas”, explica Siminski. Para o professor, a chance de tirar a Araucárias da lista de ameaçadas de extinção somente acontece com a concretização de um correto manejo, enfrentando gargalos como a falta de “tiradores” (pessoas que escalam os pinheiros com mais de 10 metros, de maneira muito precária e arriscada, para coletar as pinhas) e o adensamento de pinheiros nas áreas de extrativismo que dificultam a produção e a produtividade do pinhão, segundo ele.
Perspectivas no agroturismo e comercialização de créditos de carbono
A segunda mesa redonda trouxe as perspectivas sindical, agroturística e preservacionista em relação com a cadeia produtiva do pinhão. Jandir Selzler, coordenador da Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar em Santa Catarina (FETRAF), ressaltou as ameaças que atingem o segmento no Estado, representadas por 40 mil propriedades sem perspectiva de sucessão e diferença de 90 mil pessoas entre os números de homens e mulheres que ocupam as regiões rurais. “É necessária uma inter-cooperação entre o campo e a cidade, de modo que os agricultores familiares sejam não apenas beneficiários, mas sujeitos das cadeias de abastecimento”, apontou Jandir.
Daniele Gelbcke, da Associação de Agroturismo Acolhida na Colônia, defendeu o uso dos saberes tradicionais envolvidos na cadeia do pinhão como um ativo para diferenciar o Turismo de Base Comunitária, realçando os recursos do próprio território. Como linhas de ação, Daniele cita o fortalecimento da produção agroecológica e diversificada, o levantamento dos recursos da sociobiodiversidade no interior e no entorno das propriedades e a valorização dos mesmos através de livros de receitas, programas culinários e roteiros turísticos.
Representante da Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida (Apremavi), ONG com destaque nacional nas iniciativas de recuperação da Mata Atlântica, Wigold Schäffer ratificou a importância das araucárias em sistemas agroflorestais, alertando, no entanto, ser contrário a qualquer iniciativa de manejo que considere o corte da árvore para prevenir o adensamento e potencialmente aumentar a produtividade de pinhão por hectare.
“Temos que olhar a floresta como um todo, não cada propriedade individualmente. Se alguém cortar uma árvore, mesmo numa propriedade pequena, pode abrir um precedente perigoso nas mãos de latifundiários”, explica Wigold. Ele aponta para a oportunidade da conservação ser financiada pelo pagamento por créditos de carbono, citando como exemplo o projeto Conservador das Araucárias. Fruto da parceria entre Apremavi e TetraPak, a iniciativa é focada na recuperação florestal de 7 mil km2 de áreas degradadas, com plantio de espécies nativas atrelado ao cálculo da captura de carbono para mitigação das mudanças climáticas. Através do investimento, a maior fabricante de embalagens longa vida do mundo pretende zerar suas emissões de gases-estufa até 2030.
Ações de fortalecimento da cadeia produtiva
Com a pauta das políticas públicas estaduais, a terceira mesa redonda foi aberta por Marquito (PSOL), deputado estadual e presidente da Comissão de Turismo e Meio Ambiente da Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc). Para o deputado, que é agrônomo e mestre em agroecossistemas, a atuação parlamentar deve buscar caminhos para pacificar os manejos que acontecem nos sistemas agroflorestais. Ele argumenta que as leis com objetivo de ampliar a cobertura das espécies nativas devem também colaborar com um modelo econômico que traga emprego e renda.
“As monoculturas tem um modelo pronto para plantar e vender, o extrativismo e a agricultura familiar precisam avançar neste sentido”, reforça Marquito. O deputado sugere ainda o intercâmbio com outras 2 importantes espécies manejadas pelo extrativismo em áreas de Mata Atlântica, o butiá e a palmeira juçara, na perspectiva de aperfeiçoamento das cadeias produtivas e busca por soluções comuns.
Representando a Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri), Marlon Couto apresentou os programas voltados à agricultura familiar realizados pela estatal, como o Fomento Agro SC, voltado a sistemas produtivos, turismo e agroindústrias, e o Jovens e Mulheres em Ação, que realiza formações baseadas na Pedagogia da Alternância.
Em seguida, a bióloga Luthiana Carbonell dos Santos, coordenadora do PAT Planalto Sul, apresentou este plano de conservação que inclui 22 espécies ameaçadas, denominadas de “focais”, trazendo em seu escopo ações para o fortalecimento das cadeias produtivas da sociobiodiversidade do Território de atuação. O PAT avançará de sua fase de diagnóstico da cadeia produtiva do pinhão para execução de ações dirigidas a suprir gargalos identificados, como o incremento do seu uso na alimentação escolar. É também prevista a criação de um selo para indicar a procedência do produto, estimulando o consumo responsável.
Diante de um imprevisto que impediu a participação da superintendência da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), o fechamento da terceira mesa foi realizado por Natal Magnanti, do Centro Vianei. Em sua fala ele abordou o PGPM Bio (Programa Garantia dos Preços Mínimos do Produtos da Sociobiodiversidade), política de Estado operacionalizada pela CONAB voltada para 16 produtos no país, sendo 2 na região Sul (palmeira juçara e pinhão). Com este mecanismo, os extrativistas podem receber até R$ 4 mil por ano para cobrir eventuais vendas realizadas abaixo do preço mínimo, atualmente fixado em R$ 3,19 para o quilo do pinhão. “Infelizmente o PGPM beneficia poucas pessoas aqui em SC, pois o requisito básico é a emissão de nota de produtor rural. Com isso Perdemos de R$ 500 mil a R$ 1 milhão por ano, dependendo do tamanho da safra e do preço de comercialização do pinhão, em função de não acessarmos a política”, conclui Magnanti.
Salvaguarda de sistemas produtivos únicos
As políticas públicas federais foram o tema da quarta e última mesa redonda. Representando a Coordenação de Sociobiodiversidade e Bens Comuns do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), pasta reaberta pelo atual governo, Fernanda de Sá concentrou sua explanação no programa Sistemas Importantes do Patrimônio Agrícola Mundial (Sipam). Convergindo com outras políticas públicas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o Sipam visa a salvaguarda dos sistemas agrícolas únicos e suas paisagens culturais associadas, reconhecendo sua importância na segurança alimentar, agrobiodiversidade e diversidade social.
A mesa foi concluída por Moisés Savian, da Secretário de Governança Fundiária, Desenvolvimento Territorial e Socioambiental do MDA. Sua fala refletiu a ampliação dos espaços públicos para a agricultura familiar no atual governo, como a transferência da gestão do abastecimento público do Brasil do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) para o MDA. Como ação de curto prazo cita a possibilidade de destravamento do convênio com o Consórcio Intermunicipal Serra Catarinense (Cisama), que pode aportar 1,2 milhão para a cadeia produtiva do pinhão na Serra Catarinense.
Vivência no Sistema Agrícola Tradicional (SAT) para produção de pinhão
Na manhã de sábado (01/04), a Festa da Colheita do Pinhão foi marcada por uma travessia na comunidade do Rincão do Tigre, na área rural de São Joaquim. Na atividade, realizada em um SAT Pinhão, os convidados puderam testemunhar os diversos desafios envolvidos na coleta. Diante do público, o extrativista Vilmar Camargo escalou um exemplar de aproximadamente 7 metros, somente com esporas na bota, e derrubou 27 pinhas manejando uma vara de bambu com gancho na ponta. O resultado da coleta foi servido aos participantes ali mesmo, com a tradicional sapecada, em que os pinhões são assados com o fogo produzido pelas próprias grimpas (as folhas em formato de espinhos) dos pinheiros.
O extrativismo do pinhão ainda depende basicamente deste e de alguns outros métodos, que trazem sérios riscos aos envolvidos – conta-se que todos os anos são registradas mortes por quedas das árvores. Na atividade há 17 anos, o sr. Vilmar atualmente conta com a ajuda da família, especialmente do filho William, de 19 anos. Boa parte do trabalho acontece em áreas de terceiros, que recebem 1/3 da produção extraída. Neste ano, porém, a renda do pinhão vai possibilitar a seu Vilmar o pagamento final da aquisição de uma área de 11 hectares onde exerce a atividade.
No salão comunitário do Rincão do Tigre, o espetáculo de bonecos Praga de Mãe, realizado pelo ator Márcio Rosa Machado acompanhado do acordeonista Eduardo Carvalho, animou o público com cerca de 100 convidados. Na sequência foi servido um farto almoço preparado pelos anfitriões, com saladas, carreteiro e a presença do pinhão na tradicional paçoca e na sobremesa. No encerramento, uma roda de conversa entre os participantes registrou a avaliação das atividades e propostas de encaminhamentos para a melhoria da cadeia produtiva do pinhão.
Campanha permanente foi lançada durante a Festa da Colheita do Pinhão
A campanha Saberes e Fazeres do Pinhão, idealizada pelo Centro Vianei, foi lançada durante o Seminário na tarde de sexta feira (31/03). A iniciativa tem por objetivo principal ampliar a comunicação sobre o produto para além da Serra Catarinense, focando principalmente nas regiões Litoral e Alto Vale de SC. Pretende-se ainda dar visibilidade para as mulheres que participam da cadeia produtiva do pinhão e evidenciar os serviços ecossistêmicos prestados pelos extrativistas e processadores à Floresta Ombrófila Mista e ao bioma Mata Atlântica. A campanha reunirá os contatos das famílias que trabalham com o produto, tanto in natura como processado, para estimular meios de comercialização direta. Os materiais estarão em breve disponibilizados pelo site www.vianei.org.br.
Texto e imagens por Fernando Angeoletto / jornalista do projeto Consumidores e Agricultores em Rede