Enfrentamento das mudanças climáticas, diversificação da produção de alimentos, combate à contaminação por agrotóxicos e aos desmatamentos, garantia de crédito, alimentação escolar agroecológica e políticas públicas de incentivo são algumas das preocupações urgentes apontadas por agricultoras e agricultores dos três estados.
Um dia, as plantas murcham na lavoura pelo calor excessivo; no outro, os temporais, vendavais e o granizo é que ameaçam a produção de alimentos. “Por causa de cenas assim e pela força das catástrofes, as mudanças climáticas chegaram finalmente a ganhar espaço no noticiário. Mas o que ainda falta ir parar na boca do povo mesmo é a agroecologia e um modelo saudável, sustentável de cultivo, que gere a vida e não a destruição da natureza”. As palavras da agricultora agroecológica Sandra Ponijaleki, da Comunidade de Passo do Tio Paulo, em Palmeira (PR), revelam os desafios das famílias que vivem no campo e a importância e urgência de valorizar e de fortalecer a produção orgânica, agroecológica e diversificada de comida no país.
Ela lembra que proteger as fontes, preservar as florestas e as matas ciliares, entre outras ações, também integram esse modelo sustentável, em vez dos desmatamentos que assoreiam os rios, destroem os ecossistemas e não impedem o rastro de destruição deixado pela passagem de ventos mais fortes e violentos. Na opinião da agricultora, passa da hora de se compreender a relação entre essas catástrofes climáticas e a necessidade de ampliar os modos de produção equilibrados e não predatórios, que começam no cuidado com a semente plantada no solo, com a saúde preventiva da população e se estendem até a geração de trabalho, de renda e de riquezas no país.
Com 33,1 milhões de pessoas sem ter o que comer e mais da metade da população brasileira em situação de insegurança alimentar, segundo os estudos da Rede Penssan, o fortalecimento da agroecologia não pode mais ser protelado e nem ser tratado sem a devida prioridade. Ex-fumicultora no município da região dos Campos Gerais do Paraná, Sandra conta que foi muito criticada quando decidiu fazer a conversão das lavouras em sua pequena propriedade rural, migrando do cultivo convencional para o agroecológico. Hoje é referência local tanto do sucesso da diversificação e da organização da produção, quanto das vantagens da agroecologia para a saúde, a economia local e a segurança alimentar e nutricional do estado.
No dia 6 de outubro, a comunidade onde Sandra mora – Passo do Tio Paulo, em Palmeira (PR) –, sediou uma oficina com mais de 50 agricultoras/es, técnicas/os e especialistas das organizações e redes agroecológicas do Paraná para debater e elaborar propostas para o III Planapo – Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica. A partir dessas contribuições, organizadas em seis eixos temáticos, a intenção foi formular propostas de políticas públicas para serem adotadas pelo governo federal, mas também para orientar as redes e articulações agroecológicas de todo o país nas suas ações conjuntas e bandeiras de luta comuns.
As oficinas para elaboração de propostas para o III Planapo foram realizadas nos três estados do Sul – Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul –, neste mês de outubro, e integram o calendário da iniciativa “Políticas Públicas de Agroecologia na Boca do Povo”, promovida pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). Além destas, ocorrem em todos os estados brasileiros e no Distrito Federal atividades voltadas à coleta de propostas que serão sistematizadas em um único documento.
No Sul do Brasil, região bastante castigada pelas adversidades climáticas, coube novamente à agricultura familiar camponesa, aos povos que vivem em comunidades tradicionais, aos indígenas e aos quilombolas, bem como às suas entidades representativas e ativistas das redes de agroecologia, a tarefa de propor soluções e pensar alternativas práticas e duradouras na forma de políticas públicas que visem assegurar saúde, abastecimento e vida digna. O desafio passa por pautar o tema da agroecologia nos debates populares e colocar as medidas de apoio de fato na boca do povo, para fomentar um modelo sustentável, cultivador da vida e da preservação dos recursos naturais, em que ninguém mais passe fome. Os resultados dessa mobilização serão amplamente divulgados, para conhecimento dos atores e da população em geral de cada estado.
Clima e respeito à diversidade em destaque no Paraná
Um dos diferenciais do encontro ocorrido no Paraná foi a ideia de incluir a preocupação com o impacto das mudanças climáticas e reforçar as temáticas de gênero, geração e raça no bojo das formulações de políticas públicas para a agroecologia. “É uma exigência da nossa realidade não descolar esses temas do nosso dia a dia, no propósito de pensar uma sociedade mais equilibrada, justa e humana. A gente compreende a agroecologia dentro de um modelo integral de qualidade de vida, de sustentabilidade, de solidariedade entre as pessoas e de compromisso com a natureza”, argumenta o consultor da iniciativa no Paraná, Claudio Luiz Marques. Ele destaca que, no estado, a oficina contou ainda com a organização da Articulação Paranaense de Agroecologia (APRA) e do Coletivo Triunfo.
A oficina paranaense também extraiu dos debates propostas que apontam no sentido de assegurar a efetivação de um sistema específico de crédito para a agroecologia, não apenas uma modalidade dentro de um programa nacional; de garantir o protagonismo das comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas e faxinalenses; de reforçar a atenção do Ministério Público (MPPR) para o cumprimento da legislação, a fim de inibir a contaminação por agrotóxicos e produtos transgênicos nas lavouras orgânicas e agroecológicas; e de ampliar a merenda escolar orgânica nas instituições públicas de ensino, entre outras intenções.
Resistência indígena em Santa Catarina
No estado de Santa Catarina, a coleta de contribuições para o III Planapo contou com momentos presenciais e virtuais. Foram realizadas duas atividades presenciais: uma em Florianópolis, dia 6 de outubro, com a participação de agricultoras e agricultores do núcleo da Rede Ecovida de Agroecologia, e outra em Chapecó, na Aldeia Condá, com as lideranças Kaingang, no dia 16. Já a atividade virtual realizada em Santa Catarina, reunindo lideranças de diferentes movimentos sociais e organizações do campo, ocorreu em dois turnos, nos dias 6 e 17 de outubro.
Foram mobilizadas ao todo nessas atividades cerca de 40 lideranças catarinenses, que promoveram a leitura, debates e sugestões para agregar ao III Planapo. Segundo Anderson Munarini, consultor da iniciativa pelo estado, o que marcou essa rodada de oficinas foi o apelo feito pelo Sr. Efésio, cacique Kaingang da Aldeia Condá, que solicitou ajuda para concluir os plantios. Com as roças prontas, faltavam na aldeia mudas de mandioca e de batata doce, sementes de milho e de feijão, entre outras. “A pobreza no meio rural, em especial nas áreas indígenas, é preocupante e esse povo precisa ser ouvido, reconhecido, respeitado e incluído de fato na atenção dos poderes públicos”, avalia Munarini.
“Essa realidade aponta também a necessidade de implementação de um programa governamental de fomento à agricultura indígena, com todos os cuidados dos manejos de preservação, mas motivado pelo cuidado também de combater a fome no campo e entre os povos tradicionais”, afirma Luis Carlos Borsuk, assessor técnico da Associação dos Pequenos Agricultores do Oeste Catarinense (APACO). A utilização de tecnologias sociais para promover segurança hídrica nas comunidades rurais e a elaboração de um programa de bioinsumos, entre outras questões, também foram propostas levantadas nas oficinas da iniciativa catarinense.
Em Santa Catarina, com base no documento elaborado para o plano anterior, o II Planapo, foram sugeridas pequenas alterações para qualificar as 18 propostas formuladas. No debate, surgiu a necessidade de mudar a lógica das políticas públicas de agroecologia, em especial as de crédito – hoje focadas mais no viés econômico e da geração de renda -, para fortalecer o conceito da alimentação saudável e da promoção da saúde. Com isso, busca-se atrair mais os setores de saúde para essas iniciativas e também criar fundos de fomento para agroecologia, apoiada na lógica da produção de alimentos saudáveis.
RS quer maior rigor na fiscalização e responsabilização das contaminações por agrotóxicos
No Rio Grande do Sul, a oficina do III Planapo ocorreu no dia 5 de outubro, de modo híbrido, com participação de representantes das redes agroecológicas e de órgãos públicos do estado e do governo federal. Reuniu mais de 50 lideranças, entre participações presenciais e remotas.
A preocupação com a emergência climática e com a pulverização por agrotóxicos também foi destaque no debate e na formulação de propostas pelos participantes do Rio Grande do Sul, o que demanda o estabelecimento de poligonais ou de zonas de exclusão de pulverização aérea de agrotóxicos, além de uma maior fiscalização desses crimes socioambientais no estado e da reparação imediata das perdas. Ao todo, a oficina apontou 16 reivindicações gerais para intensificar a promoção da produção agroecológica e outras 6 demandas específicas.
“Também discutimos e indicamos ações que visem assegurar a permanência dos jovens nas unidades de produção e nos territórios, além da necessidade de criação de mecanismos de financiamentos para atender comunidades de povos tradicionais e originários, que não têm título ou posse da terra legalizada”, destaca a consultora da iniciativa “Políticas Públicas de Agroecologia na Boca do Povo” para o Rio Grande do Sul, Cecile Follet. Outro ponto que merece prioridade, na avaliação das/os participantes do encontro gaúcho, diz respeito ao combate aos agroquímicos e à revisão de grande parte das autorizações e liberação para uso de moléculas, princípios ativos e venenos agrícolas comerciais. “A maioria desses agrotóxicos e componentes resulta em prejuízos ao equilíbrio ecológico e à saúde pública e há casos até de produtos que vêm pra cá, mas estão proibidos de serem comercializados nos seus países de origem”, conta Cecile.
E um diferencial das propostas tiradas na oficina do III Planapo no Rio Grande do Sul, até pelo compromisso dos organismos governamentais presentes com a agroecologia, foi o de repensar os arranjos institucionais para qualificar a execução do plano e agregar a atuação de mais órgãos no sentido de avançar nas relações com outros países. Trazer para estes debates e aproximar mais a pauta da agroecologia à agenda, por exemplo, do Ministério das Relações Exteriores (MRE), pode significar o alcance de melhores resultados futuros em questões que dizem respeito ao comércio exterior do Brasil, à constituição de fundos de financiamento, marcos legais compatíveis e à sociobiodiversidade.
Próximos passos
Em novembro, se inicia a próxima etapa dos trabalhos da iniciativa “Políticas Públicas de Agroecologia na Boca do Povo” na região Sul. A partir de agora, serão realizadas atividades para debater e formular propostas voltadas às políticas públicas estaduais que fortaleçam a agroecologia, em especial as Políticas Estaduais de Agroecologia e Produção Orgânica (PEAPOs).
“O produtor e a produtora agroecológicos preservam. Se tem uma nascente de água na propriedade, eles vão lá e fazem a preservação, plantam mais árvores ao redor e cuidam para cada dia aumentar mais a água. Não usam agrotóxicos para não matar os bichinhos que fazem o controle natural e não desmatam para plantar. Cultivam vida e alimentos saudáveis. Isso faz toda a diferença!”, completa a agricultora agroecológica Sandra Ponijaleki.
Crédito das fotos da oficina em Palmeira, PR: Renato K. Ribeiro e André Jantara / Coletivo Triunfo.
Imagens das atividades em SC: Arquivo da APACO.
Referências para linkar na publicação:
Site da ANA – Articulação Nacional de Agroecologia: https://agroecologia.org.br/
Rede Penssan | 2º Inquérito Nacional Sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil:
https://pesquisassan.net.br/2o-inquerito-nacional-sobre-inseguranca-alimentar-no-contexto-da-pandemia-da-covid-19-no-brasil/