Debater sobre as políticas públicas federais e estaduais de combate à fome e de promoção da saúde, da soberania e segurança alimentar e da justiça climática, a partir da escuta atenta às redes territoriais de agroecologia tem sido um esforço realizado pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). O intuito? Potencializar processos de incidência política, reunir e sistematizar as contribuições da sociedade civil para a construção de políticas públicas no campo da agroecologia.
De agosto a dezembro de 2023, a ANA promoveu a iniciativa “Políticas Públicas de Agroecologia na Boca do Povo”. Entre as atividades desenvolvidas pela iniciativa, está um conjunto de oficinas sobre a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO) – criada em 2012 para integrar as ações do governo federal nesse âmbito – e sobre a construção do terceiro Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo) 2024-2027, instrumento de execução da Política a ser implementado no triênio 2024-2027.
De forma descentralizada e seguindo diferentes formatos, as atividades foram realizadas nos 26 estados da federação e no Distrito Federal, em parceria com organizações, redes e articulações do campo agroecológico, que mobilizaram cerca de 800 pessoas, entre agricultoras/es, lideranças e suas organizações sociais.
Parte dos resultados das discussões foi reunida no documento “Propostas da Articulação Nacional de Agroecologia para o Planapo 2024-2027” e entregue à Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo) na última terça-feira, 19, durante a primeira reunião presencial após a recriação do colegiado em 2023 pelo governo federal. “Nos estados, tivemos dois conjuntos de oficinas. Um deles foi para discutir propostas para o terceiro Planapo. O outro foi para discutir as políticas estaduais que apoiam a agroecologia. Muitos estados já possuem Políticas Estaduais de Agroecologia e Produção Orgânica (Peapos), enquanto outros não possuem, mas estão interessados nisso”, conta Flavia Londres, da secretaria executiva da ANA.
O ideal, de acordo com ela, é que as políticas relacionadas à agroecologia no Brasil venham a constituir um sistema, a exemplo do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. “Nesse caso, nós temos uma Política Nacional [de Segurança Alimentar e Nutricional], as políticas estaduais e os conselhos nacional, estaduais e municipais. Na política de agroecologia ainda estamos longe disso, mas a ideia é nos aproximarmos desse caminho, tendo políticas estaduais que dialoguem com a nacional, de maneira horizontal”, explica Flavia.
O fortalecimento das políticas públicas no campo da agroecologia é fator essencial para a preservação dos bens comuns, como solo, águas e agrobiodiversidade. Para os agricultores familiares, que estão na ponta do processo, as necessidades estão claras: “Em primeiro lugar, é preciso incentivo para os agricultores conseguirem fazer a transição para o modelo agroecológico. Para a maioria, é cômodo plantar com agrotóxicos, pois eles já sabem como produzir. Para a produção agroecológica há menos formação”, exemplifica Sandra Mara Ponijaleki Lopes, agricultora de 35 anos que tem acompanhado o processo de construção de políticas públicas no Paraná. A oficina estadual foi em sua comunidade, Passo do Tio Paulo, em Palmeira (PR), realizada na zona rural para garantir maior participação de famílias agricultoras.
Além disso, diz ela, o Estado precisa aumentar o investimento financeiro em programas que favorecem a produção familiar, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
Mas, se por um lado, é preciso oferecer estímulo a quem protege os bens comuns, por outro é necessário também fiscalizar e punir quem desmata, polui e provoca adoecimento. “Tem todo um sistema de controle que precisa ser aprimorado: a taxação adequada de agrotóxicos, o acompanhamento efetivo das contaminações e das violações de direitos nos territórios”, avalia Flavia.
Nesse sentido, é emblemático o caso da agricultora Lídia Maria Bandacheski do Prado, que tem uma doença degenerativa devido à exposição crônica a agrotóxicos e resolveu entrar na Justiça para responsabilizar a empresa que a contratou durante décadas.
Lídia trabalhou para a fumageira Alliance One desde os 13 anos de idade, por meio de contratos em que sua família se comprometia a plantar a quantidade de pés de fumo estabelecida pela empresa, utilizando as sementes, adubos e agrotóxicos fornecidos pela companhia. A agricultora desenvolveu polineuropatia tardia induzida por organofosforados, uma doença que não tem cura e que lhe fez perder o movimento das pernas, além de gerar dores, formigamento, fraqueza e espasmos.
Em 2015, aos 40 anos, Lídia recebeu um laudo médico indicando que estava permanentemente incapacitada para trabalhar, e entrou de imediato com uma ação contra a Alliance One na Justiça do Trabalho. “Eu fiz corretamente tudo o que a empresa orientou e estou pagando com minha própria vida. Chega uma hora que alguém tem que ser responsabilizado por isso”, desabafa a agricultora.
Ela já venceu na primeira e segunda instâncias e, atualmente, a empresa é obrigada a cobrir os custos do tratamento mínimo necessário para o alívio dos sintomas da doença. A Alliance One ainda pode ter um recurso julgado pelos ministros do Tribunal Superior do Trabalho, que terão a última palavra sobre o caso.
“Esse tipo de vitória é importantíssima, seja pela necessidade que esses trabalhadores têm de custear tratamentos caros, seja porque a indústria precisa ser responsabilizada de todas as formas, inclusive economicamente. Porque ela tem lucrado muito explorando os produtores. Infelizmente, são poucas as condenações até o momento, mas o caso de Lídia serve para que outros trabalhadores se atentem para os seus direitos e tenham coragem de buscar essa reparação”, avalia Margaret Matos de Carvalho, procuradora do Ministério Público do Trabalho do Paraná (MPT-PR) que acompanha o caso há anos.
Raquel Torres | Centro de Estudos Sobre Tabaco e Saúde (CETAB/Fiocruz)
Luiza Damigo | AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia